um pouco mais de azul

1. Temos o direito de comentar todas as decisões e comportamentos das figuras públicas, mais ainda quando as suas acções influenciam directamente a vida colectiva. Não achei descabidos os comentários sobre actos de Freitas do Amaral enquanto Ministro dos Negócios Estrangeiros. Nem achei desproporcionadas as reprovações feitas em alguns momentos e os pedidos de remodelação ministerial a partir de algumas declarações do Ministro ou deste ou daquele acto.

Mas não posso concordar com a exploração que foi feita sobre a figura de Freitas do Amaral quando foi consumada a sua substituição objectivamente por razões de saúde. Acrescentar desnecessariamente cansaços políticos ao cansaço físico ao momento da exoneração, para além de rumores, é baixa política a roçar a baixa vingança sobre a diferença de opinião. Temos de reconhecer que, a partir do momento em que é clara a doença e se consuma a substituição, as fotografias da debilidade e os comentários oportunistas servem para diminuir os jornais que aceitam brincar sobre a glória dos vencidos... pela doença. Para mostrar força e estabilidade do governo e apesar da doença de Freitas do Amaral, Sócrates insistiu em mantê-lo como Ministro? Se isso tiver acontecido, Sócrates merece as mais duras críticas, como merecem as mais duras críticas todos aqueles que insistem em aproveitar estes acontecimentos para vender papel e alma.


2. Descalcei os sapatos do inverno para olhar e escutar o vaivém das ondas uma a uma, uma depois de outra depois de outra. O verão aparece-me como uma borda que separa a luz da sombra, o calor do frio, a areia da água,... Muitas vezes dou por mim a pensar que o verão me aparece de noite. Imagino-me a descalçar os sapatos do inverno numa noite escura e estrelada, Ainda sinto por dentro dos pés a água gelada, mas sinto que passei para o meu verão. Nada disto me acontece. Nada disto me acontece, mas falo disto como se pudesse ter acontecido.

Posso fazer a passagem de uma estação para outra em S. Jacinto, onde a bandeira azul se agita. Damos a cara à brisa salgada e, à queda da estrela cadente, acrescentamos um desejo à boa sorte que a bandeira azul é. Que a bandeira azul não apague as estrelas que precisam da escuridão para se acenderem lá no alto. Se perdermos a visão dos luzeiros no céu, o que nos resta?

[o aveiro; 6/7/2006]

inveja da crítica

Quando comecei a escrever aquele conto que podia ser uma novela e acabou romance entre mim e a dactilógrafa que batia na sua velha máquina, letra a letra, as letras das palavras que eu ditava, disse para mim que mais valia ler antes a crítica que do meu livro fariam. E assim fiz. Peguei em dois maços de jornais que estavam para sair daí a alguns meses e pus-me a ler as críticas. Fiquei mais ou menos assarapantado ao constatar que nenhuma das dezenas de recensões críticas, publicadas na época, se referia ao meu livro. Telefonei a um amigo que andava pelos corredores das redacções a perguntar-lhe o que se passava, se ele não tinha ouvido falar do livro que eu estava prestes a concluir muito a tempo de merecer um comentário crítico antecipado. Ele disse-me que sim, que tinha sabido, mas que não lhe viera à memória e tinha escrito sobre o anunciado livro do conselheiro. Disse-lhe que ia esperar mais uns meses para ler alguma coisa que ele quisesse escrever a respeito do que pensa que eu estou a escrever. Ele disse-me que podia fazer a referência de favor, até porque me tinha em grande consideração e a tudo o que eu nem pensava. Agradeci-lhe e desliguei. Despedi a dactilógrafa a quem me tinha afeiçoado e comprei uma máquina eléctrica que podia ajudar nas lides da casa. E adormeci. Tinha uns meses para descansar sobre as ideias que pululavam entre a minha cabeça e a chocadeira eléctrica.

Lembro-me de ter ouvido, no sonho, a voz de um antigo primeiro ministro, em lugar mais elevado agora, a tecer considerações sobre acções do seu antigo governo, do que devia ter sido feito e ainda estávamos a tempo de não fazer, para o bem de todos nós. Mas o melhor de tudo, foi quando ao falar de uma cimeira ainda fresca, o comissário disse que, mais voo menos guantanamo, tinha aprofundado alguns problemas com o seu colega de cimeiras passadas, presentes e futuras. Esquecidas as babas do jornalista, assessor não tarda, dei comigo pasmado! O comissário reconhecera finalmente a verdade: ele aprofunda problemas.

Com a realidade a portar-se assim, nem me cansei a ver o que os jornais escreveram sobre o meu romance quando chegou a hora de não escrever. Ouvi o grito do povo: Golo! E da minha mãe: Menos um pinto!


[o aveiro; 29/06/2006]

entrelinhas



umas vezes escrevo notas fabricando as linhas e
mais tarde se passo outra vez pelo mesmo tempo
escrevo entrelinhas

e se ainda tiver as folhas perto de mim
e elas forem tristes e descoradas como eu
penduro-as para que se bronzeiem ao sol

os santos da casa

a missa por alma da tia mais viva e mais robusta
foi prevista há muitos anos para ser rezada

ao sétimo dia da sua morte ou em dia de finados
caso ela não morresse a tempo de ser lembrada

hoje é muito difícil garantir a missa em exclusivo
pela alma de alguém que parte sem avisar com antecedência
que é o que acontece com mais frequência

pesadelo

uma tia afastada
à medida que de mim
se ia afastando
deixava uma ladaínha vaga como rasto

já a vaca sagrada
sem medida, objectivo ou outro fim
que não fosse ir pastando
o meu caminho fazia desaparecer por ser o seu pasto

quando acordei
alagado em suor
descobri que a vaca com que sonhei
me limpava com mais língua que amor

ponho-me a pensar

Alternam nos governos e demais poderes - públicos e privados - os dois partidos ps com e sem d. Quando vejo nascer um ministro, nunca tendo visto, ouvido ou lido qualquer intervenção do dito sobre os assuntos que vai governar, ponho-me a pensar que é o partido que vai governar. E fico à espera de um fio condutor qualquer que dê consistência e seriedade à política. Quando isso não acontece, ponho-me a pensar que o partido recusou a política anteriormente seguida e procuro o balanço e a crítica para encontrar as razões e compreender a mudança. Mas algumas vezes fico perplexo quando não encontro nem o antes nem o depois do ministro. Como se não houvesse responsáveis e não houvesse partidos de governo. Menos ainda se compreende se pensarmos que os partidos que disputam o governo usam a disciplina de voto contra o voto em consciência em questões de governo.... Ponho-me a pensar.

o exame




lugares comuns

Repito alguns lugares comuns. Quem diria que o que eu escrevo hoje é um lugar comum?
Escrevo sobre lugares comuns impróprios para consumo de quem tem uma pátria no goto e por ela deita lágrimas como qualquer crocodilo em ânsias de a comer.

Eles dizem que quem não vai em futebóis não é bom pai de família e nem é patriótico, porque a afirmação da cidade é a afirmação do clube de futebol, a afirmação do país é a vitória europeia de um clube de profissionais de futebol ou as vitórias das nossas selecções de futebolistas profissionais que já são tudo menos selecções nacionais, qualquer que seja o ângulo por que as veja. Dizem-me que sou o lugar comum das frases feitas que recusam o espectáculo da actualidade da pátria que se cumpre a pontapé.
Já escrevi as mesmas tolices quando a pátria decidiu que as grandes obras do regime eram estádios de futebol onde coubessem todos. Quantos? Então? Vamos lá cambada, todos à molhada.

Eles dizem que não é patriota quem não dá o devido valor ao dinheiro que entra na pátria e entra em bolsos dos filhos da pátria. Para muita gente, o que é preciso é haver dinheiro a circular. Até pode ser que pingue algum para lado de cada um. Com o novo quadro comunitário de apoio, Portugal prepara-se para receber, nos próximos seis anos, cerca de 20 mil milhões de euros em fundos comunitários. Há quem saia à rua de arquinho e balão a cantar louvores aos negociadores. Recebemos muito dinheiro. Viva. Só que isso significa o reconhecimento pelos restantes países da união do nosso subdesenvolvimento relativo e significa que os milhões que entraram no país não foram utilizados para o desenvolvimento. Dizia o poeta que Portugal é a face com que a Europa olha para ocidente e para o longe, mas todos reconhecem que a incompetência na gestão dos fundos pelos políticos e gestores portugueses fez de Portugal a cauda da Europa. E onde estão os grandes responsáveis pelas políticas seguidas?

Sabemos que eles estão onde sempre estiveram, que não assumiram os desastres nem fizeram propósito firme de emenda. Por isso, tememos que seja uma euforia de patos bravos e afins a tomar conta do dinheiro. Já conseguiram conduzir-nos até à cauda do tal "pelotão da frente". Em 2013, quantos à nossa frente? (Menos no futebol, dirão, com a glória pela mão.)

Eu quero estar enganado. Mas eles habituaram-se a ganhar nas negociações e nos negócios. E vão desenganar-me, não é? E eu não saio dos meus lugares comuns.

[o aveiro; 22/06/2006]

escalada

há quem não te leve a sério: ao avental sujo
limpaste as mãos e o farelo agora seco colado
como reboco ou casca grossa descasca-se
ainda uma pevide se vê, sobressai entre os fios de cor
de rosa da abóbora menina da lavagem aos porcos

não sabem eles que o teu jeito vem do convívio
com os porcos que te deram a conhecer as vantagens
evidentes que os humanos e os porcos têm
sobre todos os outros animais por serem porcos
e omnívoros mesmo em tempo de paz e de fartura

eles não podem compreender que tenhas chegado
aonde chegaste e perguntam-se que raio de linha
tomaste para lá chegar e não vais ser tu a dizer-lhes
que mandaste fechar o ramal mal passaste para o lado
de cá onde refocilam ministros como tu

caras de cu.

nem podes dizer

nem podes dizer que a tua vitória
é a minha derrota
porque hás-de ser tu a limpar-me o pó
e a chorar comigo a minha dor ao perder-


-te.

a minha mãe lia as cartas

a minha mãe lia as cartas do meu pai
e gostava de nos ler uma passagem:
para o ano que vem a família inteira vai
a fátima a pé mal eu chegue de viagem



quando se zangava a minha mãe dizia
até a nossa senhora o desgraçado mente!
mas tu vais olá se vais até de rastos vais à cova d'iria,
em nome do pai, do filho e de toda a gente

as duas pastas

Trago sempre duas pastas dentífricas dentro da pasta onde guardo também alguma roupa interior e lenços de assoar. Nunca me foram úteis a...