a alma

se não existir a alma, tenho de inventar-lhe
um molde

uma forma que lhe dou
é a do pesadelo que se casa

com o meu coração destroçado

a gota de mágoa

Fulano partia todos os dias, manhã cedo,
para um trabalho a tempo inteiro

e só à terça lhe sobrava uma hora
para fazer o que estou a escrever agora.

Ao domingo comia com o vidro do tinteiro
o rio de tinta por onde no barco, que metia medo
em vez de água,
havia de remar a partir de segunda

desde a foz até à gota de mágoa
uma demanda fecunda

da nascente

da indústria pesada

A última semana de alguns é a primeira semana de outros, sendo que uns e outros podem ser os mesmos enquanto afirmam a diferença que farão no futuro relativamente ao que foram no passado próximo. Para muitos estas diferenças têm sido negativas ou dão resultado negativo, porque os da primeira semana de futuro têm uma última semana de passadão e de passivo.
Os noticiários alertaram-me para a novidade do novo dirigente da indústria não vir de qualquer clube de industriais. Em nenhum pormenor do cenário da cerimónia transmitida em directo consegui vislumbrar razões para o alerta. Aliás, todos os figurões e até os figurantes pareceram-me caras conhecidas do mesmo clube. Percebo pouco de indústria, mas tenho de confessar que me senti a assistir a uma celebração do clube central do país. De que clube falavam os comentadores? Ainda estou para descobrir.
No discurso, muitas frases do ex-secretário presidente começavam por "Comigo,..." para parecerem ora uma ameaça ao porvir ora uma promessa de diferença relativamente ao passado ali omnipresente e, diga-se, omnipotente e omnipatente de major para cima. Queria ele dizer-nos que nunca tinha estado naquele mundo e eu sem ter imaginação que chegue para o ver fora daquele mundo. E gostei de o ver ex-secretário a falar ao secretário do respeito sagrado que a indústria pede e merece e de como exigirá isto, aquilo e transparência nos números das relações da indústria com o estado das secretárias polidas até à transparência. Como terá sido ao tempo em que foi secretário o ex-secretário do estado a que isto chegou? Não tenho memória. Sei que foi transparente até passar de secretário de estado a estado maior da indústria. E dou graças a deus por não ter estado presente quando se mostraram transparentes (e certamente medonhos).
O mais medonho foi quando, sem passar procuração, o ex-secretário começou a transferir as nódoas dos fatos dos industriais da sua liga de metais raros para as togas das justiças interna e externa à indústria. É uma piada bem portuguesa.
Com mais um peso pesado na direcção da indústria, Aveiro arrisca-se a precisar de tratamento... por excesso de peso político.

[o aveiro;5/10/2006]

rasgões


vasculho entre os papéis para escolher um papel - é sempre alguma coisa que já foi outra coisa nesta vida - onde se desenhe uma curva. e encontro papéis pintados que mais vale serem pedaços sem sentido.

a cultura no olhar

Dia a dia, lá vamos mudando. Damos pelas mudanças reais já elas tomaram conta de nós, já nos acomodámos a elas e, mesmo que o quiséssemos, não podemos mudar de passeio e acabamos a falar com as mudanças que dentro de nós moram.

Algumas mudanças seguem-se a pequenas decisões, a pequenas desistências, a pequenas guinadas nos pontos de vista.

Há pouco tempo, decidi apurar ainda mais a vista a olhar para o ensino no pequeno círculo em que me movo. Trabalhamos aqui, mas se não focamos o olhar para ver perto, acabamos por falar do nosso círculo, contaminados pela ideia do que acontece em geral. Se apuramos o olhar sobre a realidade da nossa esquina, esquecendo o que sabemos de ouvir falar, vimos aspectos que nos escapavam mesmo sendo parte da nossa circunstância. Ou nos tornamos mais optimistas ou nos tornamos mais pessimistas, porque desistimos de muitas desculpas e porque recusamos culpas que, não sendo nossas, são a nossa circunstância.

Deixamos também de tentar ser exemplo para fora de nós. Desistimos um pouco, para tentarmos ocupar um espaço feito tanto de intimidade como de exposição. Contamos pouco. E sabemos que somos esse pouco que é tudo o que podemos dar. Precisamos dos outros só no que eles nos possam dar e recusamos nos outros o que eles nos podem tirar. Não queremos receber qualquer totalidade de outros e celebramos os pequenos detalhes.

Por exemplo, comecei a ficar muito sensível a todos os comentários que apoucam a matemática no que ela tem de parte da cultura geral ou que diminuem a matemática, ao considerá-la tema impróprio para o quotidiano, desnecessidade, actividade improvável e interesse exótico de excêntricos, razão particular tanto quanto a literatura ou a tecnologia respondem a necessidades e se tornam razão da sociedade toda. A escola trata do culto da cultura geral, dos bens do espírito e da saúde do corpo. Pequenos disparates que se repetem, dia após dia, constituem a persistente vontade de amputar a cultura em nome do maioritário (des)gosto.

Estou a mudar-me para dentro do olhar. Como estão a ver.

[o aveiro; 28/09/2006]

depois vieram tambêm cá