eu sou a cova em que o meu corpo cabe

hoje

as flores estão a murchar nos castiçais

que marcam o território, a cova aberta,

o brusco rasgão na terra que me cabe em herança

e para onde a alma me foge,


alma errante, sem corpo ansiando o meu corpo

escondido como uma cova fora da cova

como um sulco por quem a finados dobram silêncios

os ocos dos sinos


hoje

eu sou a cova em que o meu corpo cabe

e nela falta.

perto de longe

Uma vez por outra, dou por mim a prometer que não volto a fazer isto ou aquilo. Porque sou velho demais para continuar a fazer isso, porque é preciso deslocar-me e as pernas não ajudam, porque é muito importante dedicar-me às minhas aulas e à minha escola e a nada mais que isso, porque posso estar a perder o norte e já começam a amontoar-se disparates à minha porta da boca, na ponta da língua. Depois, acabo por ceder a quem manda (que são outros que não eu) e lá vou fazer uma ou outra viagem para defender pontos de vista sobre a matemática e o seu ensino. Depois de cada surtida para fora de mim mesmo, ensimesmo e penso nas tiradas que me parecem excessivas. É claro que, se há debate real, mais do que a descrição da ideia e dos seus contornos, é preciso atrair atenção para o ponto de vista que empurramos da penumbra dos bastidores para a luz da ribalta. Precisamos de empolgar uma mente até que suba ao palco e contracene com a nossa ideia, ainda que seja para a condenar. Nesse instante trágico em que damos lugar a uma ideia, prometemos não voltar a sair de casa. Até que um novo compromisso nos atira para longe de nós e contra nós.

Na semana passada, atei os olhos no abandono da estação dos caminhos de ferro de Oliveira do Bairro. O que mais me espantou nesta viagem foi a distância real entre Aveiro e Oliveira do Bairro para quem lá vai de comboio. Não devia ser longe. Mas é.

Na mesma surtida, espantou-me ver como são curtos os caminhos entre as pessoas que se ocupam do saber, da educação, da cultura científica no futuro, da fala entre as gerações. Onde alguns me apontaram a distância de um abismo, vi como fica perto a porta da casa onde comungamos o privilégio de chamar pelos nomes os jovens que trabalham e se destacam nas escolas locais. Havia uma ponta de vaidade e orgulho na voz dos responsáveis do "Jornal da Bairrada" quando chamavam pelos melhores filhos da terra. É esse fio de voz que nos leva daqui até ao futuro. Os jornais locais são o fio em que nos equilibramos quando encetamos a nossa travessia de funâmbulos. Se cairmos nesse caminho, caímos em casa. Esse é o conforto que anseio ao procurar uma casa comum em Aveiro

A ver passar os comboios em Oliveira do Bairro, liguei os quatro cantos da casa comum de Aveiro por comboio. Linha por linha.


[o aveiro; 16/11/2006]

a língua da tecnologia

As novas tecnologias de comunicação global permitem novas formas de ensinar e aprender. Os professores portugueses podem aproveitar a tecnologia para multiplicar as possibilidades de levar até aos outros os conteúdos de ensino, mas também para organizar os trabalhos necessários aos aprendizes para aprenderem a matéria do seu ensino. Podemos mesmo utilizar, a favor do nosso ensino, os contributos que um mundo de pessoas cria e nos dá de mão beijada no momento propício. Uma parte do que precisamos aparece em outras línguas e, por via disso, o nosso ensino fica acrescentado de valor com aprendizagens úteis.
Neste mundo de oportunidades, somos infinitamente mais livres que a geração que nos precedeu. Mas podemos cair na tentação de deixarmos de ser utilizadores e produtores de conteúdos próprios e podemos deixar que as línguas dominantes nos comam a língua até ao ponto de deixarmos que, no nosso trabalho quotidiano, todos os textos do nosso dia a dia estejam impregnados de termos de outras línguas e, particularmente, de termos e palavras de outras línguas registados como marcas de produtos a vender. Por esta via, os professores podem emigrar da pátria da língua para, sem sair das escolas portuguesas, se transformarem em coveiros da língua portuguesa tal como a conhecemos e é o mais notável traço da nossa identidade.
Em todas as nossas lições, devemos deixar marca da língua tanto pela fala como pela escrita. Mas a nossa marca portuguesa também deve estar nos lugares da rede global em que nos integramos, sem deixarmos de ser nós, nem deixar os outros ser por nós. Por isso, não são aceitáveis iniciativas dirigidas para o ensino básico onde se não respeita a norma da língua e aparecem diversas línguas numa mistura que parece informar os jovens da aceitação escolar de uma nova língua. Não há qualquer razão para aceitar isto em ambientes escolares de jovens a crescer em graça e sabedoria até uma identidade que ou tarda ou é, já agora, bastarda.
A conversar é que a gente se entende e que a gente também se afirma e se confirma. A escola ensina outras línguas, porque disso depende compreender o mundo e ser parte dele. Ao mesmo tempo, afirma a mãe língua de todos os dias, porque esta escola serve uma parte independente e notável deste mundo em rede.

[o aviero; 9/11/2006]

escória

Diocleciano Gulpilhares é um cientista social. Mais concretamente , podemos classificá-lo como garimpeiro, o que anda ao "garimpo", não de rio em rio, mas de texto em texto.

[Durante um tempo, eu pensei que uma pessoa, quando lia livros, lia livros. Ou, quando muito, quando alguém acompanhava a leirua com a preocupação de tirar notas, eu diria que estudava. Têm-me convencido que alguns mortais, talvez porque leiam intencionalmente este livro em vez daquele, quando lêem estão a fazer pequisa ou a investigar. Os professores dizem isso às crianças e, desde pequenos, elas perdem os hábitos de leitura simples para os substtuir por hábitos de pesquisa :-) E pior ainda: estas crianças entregam aos professores babados, os resultados das suas pesquisas. Cópias laboriosas de páginas de enciclopédia são trabalhos classificados como património pelos professores.]

Quando Diocleciano era jovem, ainda não era assim. Mas em algumas cadeiras aprendeu essa forma de estar a pesquisar. E, agora, acabada a liccenciatura, lança-se na investigação pura: formula hipóteses já formuladas por um amigo americano. E ninguém o pode parar. À medida que aprofunda esta sua forma de garimpar de livro em livro, Dicoleciano vai eprdendo o norte e já nem sabe que minério precioso garimpa.

Diocleciano é um garimpeiro moderno. Esquecido de procurar o ouro dos livros, é um garimpeiro da escória.


pretextos; 1993

antigamente

Sérgio Cabeleira vai resistindo menos mal ao quarto minguante, à lua nova e até ao quarto crescente. Mas à lua cheia não pode ele resistir.
Quando a lua cheia se levanta brilhante no ar, a atracção é fatal e Sérgio não pode lutar contra isso. É atraído porque é oco! - disse a Lola e eu acredito. Lola diz que quando uma mulher se apaixonar verdadeiramente por Sérgio, o feitiço da lua será quebrado. Um homem oco pode ser cheio por uma mulher verdadeira.
É Lola que que nos ensina que o feitiço da lua pode ser derrotado por um feitiço de mulher.

Sérgio Cabeleira não sabe que assim é e é talvez por isso que não olha para as mulheres como se elas pudessem ser o seu recheio. Ou porque não quer ser um perú.

pretextos; 1993

do que sei

diz-se

do que sei
posso dizer-te
que as margens do biombo são galgadas pela lua
quando vem desvelar a sua face oculta

esconder para esquecer

Aproveito uma aberta entre dois temporais para escrever uma clareira, para escrever uma "branca". Nós escrevemos uma "branca" quando não nos lembramos de coisa alguma que interesse escrever. Por enquanto, a "branca" ainda é de outros.

Na semana passada, foi lançado o livro "Desastre no ensino da Matemática: como recuperar o tempo perdido". O livro reuniu intervenções de notáveis sobre o passado e foi lançado numa conferência de outros notáveis sobre o futuro do ensino da Matemática. Esta conferência reuniu vários ex-ministros da educação e conselheiros que são representativos de todos os os governos e partidos com pastas da educação desde o 25 de Abril.

Houve desastre e ficamos a saber que responsáveis pelas políticas da educação dos últimos 30 anos estão de saúde e, apesar do desastre, estão bem na vida e continuam capazes de dizer ao país do futuro o que deve ser feito para recuperar o tempo perdido por eles, com eles, apesar deles, ...

[Porque o empreendimento da educação correu mal, todos os educadores e professores são condenados, com pouco direito a defesa, todos os dias. Destes se diz que progrediram até ao topo das suas carreiras, sem qualquer avaliação. Ao contrário, os coitados dos ministros do tempo perdido foram avaliados e, por isso, voaram tão mais alto quanto mais contribuíram para o êxito do desastre ou para o fracasso da educação.]

Nos intervalos das aulas de matemática do dia seguinte à conferência, tentei descortinar o que teriam dito aqueles ministros do tempo perdido do título do livro. Aos ouvidos chegaram-me as banalidades com que os passa-culpas palitam os dentes e coçam a consciência. Dei por mim a pensar que mais valia comprar e ler o livro logo que pudesse, para saber mais.

E só à noite percebi o vazio que acontecera, quando um dos responsáveis da coisa disse, para quem o quis ouvir, que não lhes interessara o passado e que tinham combinado só falar do futuro. Estão a ver a maravilha?

Para os efeitos, o passado é um desastre. Para parte das causas, o passado é uma branca.

Dia a dia, dou por mim mais velho e incapaz. Fico feliz por conseguir reconhecer os erros passados e corrigir, quando dou por eles, os erros de hoje. Peço a Deus que não me deixe cair na tentação da irresponsabilidade e prefiro, apesar dos erros, pensar que o passado não foi uma completa bronca, e desejar que não venha a ser... a grande "branca".

[o aveiro;2/11/2006]

a privada

A semana entusiasmou-se com o êxito em bolsa de uma nova energia, aquela maravilhosa energia limpa soprada para dentro de milhares de balões coloridos (a uma só cor adequada, diga-se!). Nós devemos ficar contentes com os encaixes dos governos e devemos entusiasmar-nos com os desfiles dos dentes mais brancos e afiados acabadinhos de sair de um governo para as administrações das empresas. Essas empresas são ou foram públicas no todo ou em parte até que a parte pública se torna interessante como privada e a iniciativa pública se desvela em zelos para tornar privado o que era público. Quando vejo ex e actuais ministros, ex e actuais administradores nestas festas bolsistas, chego a pensar que há uma unidade de missão para meter o país na privada.
A semana pública entusiasmou-se com a semana privada. Os balões laranja nem chegam para as encomendas.

Do governo vieram todas as indicações e leis que obrigariam a mexidas nos preços da electricidade. Mas o instante da divulgação pública da coisa calhou em má altura, logo em cima de negociações salariais que o não são e em cima da apresentação do orçamento, etc. Ministros, secretários e outros escribas das leis que obrigaram ao aumento lançam-se em declarações contraditórias. Com tal bagunça, acabámos a assistir a um debate sobre custos e preços da energia eléctrica e sobre a política energética do país. Na primeira parte, ouvimos esclarecimentos sobre custos e preços praticados e sobre a composição do preço que os consumidores pagam. Na segunda parte, ouvimos falar de políticas energéticas, numa discussão que uniu o conjunto dos interessados no actual sistema de produção da energia, incluindo as renováveis, contra o nuclear. Mas interessante mesmo foi ver os ministros e secretários do estado de ontem a apresentarem-se hoje como presidentes de empresas dos sectores que tutelaram. E aparecem tão independentes, tão defensores do interesse público até à ânsia de não vender a energia que vendem.

São eles que afagam a lâmpada para receber o soldo devido ao génio.



[o aveiro; 26/10/2006]

as duas pastas

Trago sempre duas pastas dentífricas dentro da pasta onde guardo também alguma roupa interior e lenços de assoar. Nunca me foram úteis a...