o ministro que arfava nas frases curtas

havia um ministro ou um fato completo que mal sabia ler
e soletrava umas breves notas quando alguém as deixava cair à sua frente

do que eu percebia pareciam-me coisas que nada me interessavam
e por isso nunca dei importância alguma à falta de caco do ministro

até que aqueles comentários só podiam ser levados a sério por aqueles jovens
que suam optimismo sábio enquanto cospem as tendências da bolsa
como quem declama uma declaração de fé no próprio analista,
o obituário de um grande negociante ou de um poeta muito importante
descoberto postumamente.


ainda me lembro de se falar do responsável da imagem
do ministro, fraco a ler e a falar pouco,
célebre por tentar articular, em vez dele, versos épicos
sem imaginar que, para o interesse nacional, do fato completo
quem dera que falasse ainda menos que nada

desse tempo sobraram estas memórias

dito isso só espero que saibam que nada ficou por dizer.

a ordem descendente

tempos houve em que tudo corria em seu leito formal e até a lei
era feita para ser respeitada naquele país de rios obedientes
em que se falava de rigor todos os dias e e até à noite ao que sei

e houve até quem apontasse o país como exemplo para outras gentes
sabendo bem como apontar é feio.

em memória

quando o ar fica assim solto no ar em pedaços solto
e nós o vimos como vimos nuvens
mas sem cor
só o vimos porque é possível ver uma vibração
ver o ar que vibra no seio do ar quieto
ou pelo menos lento
capaz de resistir ao calor sufocante para o ar

ficamos a olhar
através do ar as densidades do ar

e vemos as caras de quem morreu
por estes dias

às vezes reconhecemos um poeta que gostámos tanto de ler
e é agora incapaz de nos contar a história
de novo
porque já não lemos do mesmo modo
ou já não lemos simplesmente porque sobrevivemos
e somos de outro tempo
onde se percebe agora que o olhar que demos
aos poetas que morreram sempre foi uma compaixão
que só pode ser dada aos vivos
e não resiste à morte

pois sempre posso dizer que morreram
os que li fascinado por não ter escrito aquelas linhas
que eram as únicas que queria escrever e já ali estavam
perante o meu olhar postas na mesa por outras mãos
e máquinas

pois sempre posso dizer que morreram
e agora que não voltam cabe-me a mim bordar a toalha da mesa
deixada assim como um pano cru sobre a mesa sem uma única palavra
desvendada
embora as palavras cubram toda a mesa de uma ponta à outra
se não as palavras as linhas as linhas da mão rasgadas pelo fio dos dias
de quem fiou o linho deste abandono de verão na casa velha

onde os talheres contam mais que as palavras para as mulheres que vagueiam
produzindo os sons os choques dos gumes das facas os toques dos pratos esbotenados
pelo tempo os toques dos guardanapos com monogramas de poetas mortos
que raspam a música nas argolas e se repetem quando a mulher indica o lugar
dispondo os guardanapos sobre a mesa ocupada por pratos e copos, facas, garfos e colheres
e só depois os guardanapos com o chamamento pelo nome de cada poeta
convocado para a mesa

os que morreram aborrecem a mulher pois têm de ser chamados repetidamente até se ouvir
alguém dizer já não está entre nós maria
passa a outro
se te lembrares do nome ou de algum verso que alguém tenha escrito em vez do seu póprio nome
de tal modo que seja o verso a ser lembrado em vez da cara

por ter os olhos demasiado claros não suportava a luz do sol e ficou escondido na sombra da nave
por ter os olhos demasiado escuros não há quem se lembre da cor dos seus olhos e que não se pode ver
e por isso sem nome
e há mesmo um poeta que anda por aí a voar no ar da sala grande

e para grande espanto dele ninguém o chama porque dele nem peso nem nome nem presença

as pessoas preferiam que o poeta tivesse morrido de morte natural por exemplo se tivesse afogado
a este fardo insuportável de saber sem aceitar que o poeta foi perdendo peso
à medida que ia perdendo os dias que lhe faltavam para a sua passagem aérea
a ar e fumo ou só fumo que viesse a ser a sua forma aérea
como nuvem
e forma de estar acima dos outros
persistente mania treinada em vida com palavras cordatas calmas e sossegadas sem acentos que as fizessem estalar o ar
como asas de anjo ternurento capaz de todos os enganos escondidos sob litros
de suave água de colónia

quem havia de dizer que ele tinha tomado banho em água de colónia
e que eram mentiras vergonhosas os seus poemas de banhos de amargura
e mal estar?

quem havia de saber disso?

por isso a mulher decidida punha a mesa e por ele não chamava e ninguém olhava para cima para os lustres da sala
onde empoleirado estava o poeta de que lera fascinado toda a obra
enquanto a juventude me abandonava dia após dia
por descobrir que o que escreveria estava escrito
irremediavelmente por alguém que viera antes de mim
e roubara das minhas mãos a verdade e a mentira
fingindo que elas erravam por aí à mão de semear ao alcance até de um romântico
de merda medíocre que nem mereceria mais tarde o chamamento pelo nome
para a mesa

os poetas nomeados em altiva voz pela mulher primam pela ausência
e é a mulher quem come um poema inteiro de carneiro sentada à cabeceira da mesa.

o tacto

os pratos.

o ar já foi distribuído pelos pratos
vê-se que está quente pelo vapor que se solta dos pratos
e da terrina

ainda não sorvemos o ar da sopa e já se desvelam outros pratos rasos de lágrimas

aqui não deixamos os poetas morrer
com falta de ar que se come e se bebe

já o ar de respirar nem para assunto de conversa é chamado.



as caçoilas.

na azáfama com as mãos embrulhadas no avental a mulher carrega
as grandes travessas de ir ao forno cheias dos restos das palavras
pelo fogo tatuados no ar suspenso
enquanto uma lágrima se solta ao canto do olho que vê nas cinzas a forma do poeta

a mesma forma marcada na cama como uma pegada de vento

aqui não deixamos os poetas apodrecer e sentados à mesa começamos a nossa oração
pela frase lapidar se havia de ser para a terra o comer...


o álcool e o fumo.

ele escreveu em cada um dos seus livros ardentes
que as refeições de despedida devem ser seladas pelo silêncio
da aguardente forte e do charuto que ele reservara para a despedida
assim ela se apresentasse

e caso ela não fumasse que alguém o fumasse.

a água candente

vermelho

a cor do agosto

O acordo de governo de Lisboa celebrado entre Sá Fernandes e António Costa (ou entre o Bloco de Esquerda e o Partido Socialista) é um acontecimento novo na política portuguesa. Não há nada de novo do ponto de vista do reagrupamento de forças à esquerda ou à direita já que houve antes concertos de esquerda para o governo de Lisboa e a vereação da câmara foi composta por vereadores de vários partidos. Surpresa perante o facto do independente Sá Fernandes ser vereador com pelouro sob a liderança do PS? Nah...

Novo é o texto do acordo tornado público: tão simples que não permite várias leituras, tão claro que faz saltar interesses instalados à esquerda e à direita. O problema para os críticos não pode ser encontrado na circunstância de Lisboa, já que o acordo fala de medidas elementares, de denúncia fácil se não forem executadas. O quê para o saneamento financeiro e o quê sobre quais empresas municipais, estão a ver? Sobre os transportes, assume-se a defesa do transporte público em detrimento do privado e uma simples medida de reserva de canal para extensão de uma linha de eléctrico, estão a ver? É claro que há assuntos que dependem de negociações com o governo ou ferem interesses que vão resistir por todos os meios. Os construtores civis portugueses não vão aceitar ser tão civilizados como os que operam em Barcelona, Madrid ou Nova Iorque e já começam a faíscar os dentes de ouro dos patos bravos contra a obrigação da quota de 25% para habitação a custos controlados tanto em novos projectos como em operaçoes de reabilitação, como contra a escolha da reabilitação do edificado em detrimento das novas construções. Estão a ver?
No que respeita ao pelouro do ambiente e espaços verdes, assumido por Sá Fernandes, não houve invenção alguma e promete-se que o velho Plano Verde de Ribeiro Teles vai ser vertido para o PDM, como molde vinculativo de futuro, enquanto são referidas, uma por uma, as acções a concretizar até ao final do mandato. Estão a ver?

Eu estou no acordo. Para ver fazer a parte de cada parte. E porque o que António Costa aceitou assinar, faz dele um político de respeito. Há muita gente à espera que falhe. Eu só quero que dê certo. Lisboa é gente e merece que um acordo assim seja respeitado em acções. Por todos. E que todos ganhem na medida do que forem e fizerem.

Por lá e ... por cá, também. Que cada um receba em dobro o bem que faz e dobrado castigo para o mal de que é capaz.


[o aveiro; 9/8/2007]

um dia destes

Um dia destes vou levantar-me para viver
E para que me escutem vou deixar de falar
E para que me leiam vou deixar de escrever

Porque estou cansado demais para emendar
A mão que escreve ou a voz que dói de rouca

Antes morrer de pé: no olhar na mão na boca

castigo

quando ela voltou eu estava virado para a parede
tal como ela me tinha deixado
50 anos antes

e para mim o mais fácil foi fingir
que estava tudo como dantes.

as duas pastas

Trago sempre duas pastas dentífricas dentro da pasta onde guardo também alguma roupa interior e lenços de assoar. Nunca me foram úteis a...