ao arrepio

Ontem e amanhã não são dias meus

Hoje é que vejo as gaivotas voando desesperadas
Entre cruzes erguidas como pára-raios recortados nos céus da janela

Hoje é o meu dia, o dia em que as nuvens chocam
Hoje é dia em que o escuro como breu cai com estrondo
Entre as farpas finíssimas da chuva que voa

Ontem e amanhã não são dias meus:
Não me lembro de ontem e amanhã nem sei quem é.
Hoje é o dia que me fala de ontem e me lembra amanhã
Ontem foi para esquecer e hoje é para me lembrar já nem me lembro bem de quê.

as regras, as ruas, os nomes

Vou sempre pelo mesmo caminho. Como se tivesse medo de me perder um dia a caminho de casa ou a caminho da escola. Que relação há entre a caminho de casa e a caminho da escola? Não são um só.
Levanto-me cedo por saber isso. O caminho da escola é mais rápido que o caminho de casa. Não é por ter mais pressa de chegar à escola, mas é verdade que os minutos são passos contados. Como se tivesse medo da campaínha que marca as horas de entrar e de sair? Nunca saberei ao certo. Vou cedo para evitar contratempos.
Nas primeiras aulas, tenho de lembrar algumas regras aos alunos. Porque é que há a regra da pontualidade? Sempre que uma pessoa chega atrasada prejudica-se a si mesma. Só? Quem chega atrasado a um trabalho colectivo prejudica o trabalho dos outros que com ele contam se é que os não coloca em risco. As regras que nós aprendemos a seguir protegem cada um e todos nós. Nem precisamos de pensar. Sabemos que, ao fazermos a nossa parte, tornamos a vida dos outros mais fácil. E sabemos que a nossa vida é mais difícil quando alguém falha a sua contribuição. É assim em tudo.

Vou sempre pelo mesmo caminho. Olho os carros de frente e escolho o passeio ao lado dos carros que se aproximam de mim. Não sei se é regra, mas é mais fácil fugir do perigo que vejo aproximar-se de mim e é mais confortável sentir-me afastado do possível perigo que não vejo. Mais ainda quando falha o passeio. Faço os meus caminhos a pé e sigo regras e rotinas sem dar por isso. E de cada vez que descubro uma nova rotina que sem pensar cumpro, descubro também as pequenas contrariedades da cidade feita para os carros. E aprecio os carreiros abertos nos relvados por peões que seguem em frente depois de atravessarem uma passadeira. Os passeios em volta ficam cheios do cotão do abandono a que os peões os votam.

Dou por mim a pensar no exercício do poder. Entro na primeira aula em que possso falar de modelos matemáticos que apoiam decisões, escolhas. Ainda nos estamos a apresentar e eu pergunto a jovens, com mais de 15 anos, que vivem por aqui, os nomes das freguesias de residência, dos respectivos presidentes de junta e de câmara.

Eles não sabem os nomes. Não amaldiçoam pessoas por maus traçados, obstáculos, buracos. É tudo culpa do sistema.
A escola deve ensinar nomes próprios? Os nossos nomes?

[o aveiro; 18/09/2008]

duas sem três

disseste-me em cada rua o nome da rua
e tomei boa nota de todos os nomes

parece-me agora que os nomes
saltaram de placa em placa
e se fizeram linhas de outra placa
como um rol de exigências

na primeira linha, a liberdade

as duas pastas

Trago sempre duas pastas dentífricas dentro da pasta onde guardo também alguma roupa interior e lenços de assoar. Nunca me foram úteis a...