astronomia

2009 é o Ano Inernacional da Astronomia (ver http://www.astronomia2009.org/). Em toda a parte se celebra a ciência que nos demos e damos uns aos outros, a partir de maravilhas que vemos e adivinhamos. Há uma celebração do nosso planeta e, a partir dele, de todos os astros que a humanidade não desiste de procurar. Há uma celebração da humanidade no olhar para dentro da sua acção aparentemente perpétua em busca do que nos escapa, mas também nos explica. Todos os dias criticamos a nossa acção humana que destrói, todos os dias nos maravilhamos com a nossa acção que constrói as pontes para fora de nós e nos deixa ver os outros astros que só podemos adivinhar e imaginar quais pintores de sonhos. E, na ciência, celebramos o que de melhor somos na compreensão do que não podemos atingir com as nossas magníficas mãos, despidas de tecnologia, mas podemos comprender com a inteligência despida de preconceitos e ancorada no conhecimento que herdámos. Por isso, celebramos todos os que olharam para os céus em busca da verdade por saber e sofreram horrores para nos darem a visão das coisas que não são conformes aos sentidos ou às crenças dominantes. O que as escolas ensinam, sem mistérios, é o resultado de um lento desenvolvimento, de uma luta milenar, de uma busca tão mais humana quanto nos parece sem sentido e sem utilidade para cada geração. O Ano Internacional da Astronomia aí está, não para nos fazer esquecer a crise e a obra nefasta de parte da humanidade, mas para lembrar a todos que há esperança sem fim e há esperança até nos confins do universo limitado que nos vem desde o princípio dos séculos humanos e nenhuma crise humana (e foram tantas!) foi capaz de travar a meio do caminho.

Aveiro tem um céu especial que deve ser olhado em si mesmo por todos os que se maravilham com o que ao longe podem ver e podem compreender, nas suas relações, pela via da ciência. É altura de chamar a atenção dos jovens para os modelos matemáticos que nos fornecem explicação para o funcionamento actual das coisas no universo, tal como as vamos conhecendo, e nos alertam para tudo o que, com base nos modelos, pode acontecer com elevada probabilidade.
Cada um de nós aparece e, um momento depois, desaparece deixando um rasto de memórias e não mais que isso. Assim pode acontecer com a humanidade inteira.

O céu por escalar é um impulso. Olhemos para o céu. E olhemos por ele, amorosamente. O céu não pode esperar.

[o aveiro; 13/03/2009]

piano


The Piano from Arthur Molenaar on Vimeo.

pela mão do Pedro Aniceto ou de um cão com pulgas reflexivo

o tempo

a temperatura da primavera subiu ligeira as suas escadas, a meio parou e sentou-se ajeitando a saia e soltando os cabelos com gestos precisos. um trânsito de pétalas carnudas, brancas e rosadas, pedia uma lentidão consentida a quem passava: quem por ali passava, tardava em passar.

e eu, sem pensar, estacionei o camião na rua de cima. depois desci as escadas e deixei que o meu corpo adormecesse. as flores tomaram o meu lugar enquanto eu perdia a forma de existir para os outros,

não ganhei para o susto. ganhei consciência do peso dos que passavam sem dar por mim.

a conta calada

José Sócrates vestiu o (ul)traje da solidão obcessiva. Como se um partido pudesse deixar-se substituir por uma pessoa. Identifica-se e determina-se por oposição, rejeita-se por oposição. Cego e surdo vive num deserto. Há uma multidão de mãos de apoiantes sem cabeça e ideias a erguerem-se para ele como esperança no poder, parece que o levantam aos céus de um filme épico, não sendo eles mais que migalhas ou grãos de uma areia movediça que tudo consome. Há uma multidão que o rejeita como solução e ele não vê mais que uma campanha de rostos encapuçados por negros presságios de desgraça. Todos os dias recebe os mesmos avisos por altifalantes estrangeiros como ecos dos avisos que cá dentro compoem uma paisagem assim não, e ele afasta com gestos impacientes esses sinais voadores e a mosca que não se deixa apanhar e zumbe em vários comprimentos de onda. Já não discrimina o que cada um dos outros diz e tudo reduz a uma mancha sonora de desaprovação insensata. Prega no deserto a maioria absoluta como a criança espeta pregos na areia da praia, só que a criança sabe que prego que se espeta é prego que se desprega para recomeçar sempre do mesmo modo, até que o regresso a casa limpe o rasto do jogo. Mesmo que venha a obter uma maioria absoluta de mãos que pregam como ecos dele, ela só servirá para o reduzir a si mesmo ou a nada. O poder ensurdece e cega. A partir de certa altura, passeará de uma sala para outra por sombrios corredores do poder, movido a ar comprimido numa atmosfera de ar condicionado. O pior que lhe pode acontecer é ser cercado por criaturas de ar resignado que colhem os votos populares como se fossem um só: ele. Ele verbaliza uma razão trágica quando declara que governa, não quem representa, antes, quem é escolhido ou ungido, e, por isso, pede uma maioria absoluta para ser ele o primeiro ministro. E nós já sentimos como isso é verdade.

Por amor das pessoas, de Sócrates, da cidade e dos cidadãos, elevamos a voz contra a resignação e em apelo ao julgamento crítico. Em modo de oração democrática, humildemente, declaramos a nossa esperança nos que tudo ouvem, discutem e levam em conta para criar opinião própria e, em consequência, agir livremente em votações, livres e não condicionadas por fantasmas que confundem a saída da crise com a porta da casa do poder atravessar paredes...

[o aveiro; 6/03/2009]

março

os cães rosnam aos cheiros aéreos e as cadelas vagueiam
pelo relvado provocando fúrias
grandiosas ou grandiloquentes como quiserem
os professores que ensinem a melhor forma
para dizer estas coisas a animais

pachorrentos que olham sem ver
o apetite do açougueiro
que os pesa com o olhar

e lamenta a morte dos cães nos canis municipais
em terras onde os talhantes honrados não vendem carne de cão
publicamente

de nada

O guerreiro empunhou a lança.
Estranhou a curva da lança que lhe fez lembrar um podão que usava para cortar ramos de videira e esgalhar as pontas dos vimes. Não se lembrava de ter visto outra lança assim curva como aquela. Quem teria sido o podão de ferreiro para fazer aquele trabalho?
Demorou tempo demais a pensar enquanto os cavalos se aproximavam do acampamento. Quando recuperou da distracção reparou na tensão dolorosa dos seus músculos retesados e deu ordem para libertar a lança presa ao seu espanto.
Viu como ela partiu e com maior espanto a viu voltar. Até que deixou de ver.

a coisa


Podes olhar e ver um espelho simplesmente um espelho decorado a ferro forjado ou ver uma janela que pode abrir-se ou a geometria da decoração em ferro forjado ou a transformação geométrica da árvore em imagem ao espelho ou imaginar e ver a forja a face tisnada do ferreiro o martelo nas mãos calejadas do ferreiro as faíscas saltando da bigorna a labareda como um sopro do carvão incendiado o ferro vermelho contorcendo-se de dor de queimado e torturado ou como uma cobra apanhada e depois sempre presa mergulhada na celha ou no ribeiro que ali passa para que se torne rígida a forma temperada na forma de uma encomenda desenhada por uma tradição vista num risco de pais para filhos ferreiros todos ou podes concentrar-te no vidro e do fogo que consumiu a areia até ser vidro e espelho. Podes ver o que quiseres. Assim o queiras ver.

quarta de cinzas

Há 70334 novos desempregados - escreve-se nos jornais destes dias, apesar de Janeiro ter sido simultaneamente o mês de mais oferta (8821) e mais colocações (4219). As empresas aproveitaram os fins dos contratos a prazo para os não renovarem. O exército de desempregados conta agora com quase meio milhão de portugueses (447966). E é no norte do país que o contingente de desempregados é maior.

A este respeito, os partidos que se têm revezado na governação fazem declarações de carnaval a roçar o obsceno. Para além das almofadas do emprego no sector público, os dirigentes políticos cansam-se em acusações mútuas sobre as políticas que cada um deles seguiu. De tal modo se cansam nisto que parecem cegos na realidade. A realidade que importa considerar está nas pessoas e famílias de pessoas em busca de solução para o dia a dia difícil e intolerável e não em abstractas considerações estatísticas de mais ou menos pontos percentuais. Todos os dias, dia a dia, os desempregados são pessoas que buscam uma oportunidade de trabalho produtivo pelo qual recebam salário que viabilize a vida familiar e dê curso a uma vida produtiva, socialmente útil.

O discurso directo de cada um não pode ser ensopado em caldo de estatísticas que se usam como espadas de brincar nas mãos dos foliões dos governos. Não há optimismo que subsista no mundo de cada desempregado se o seu mundo se mantiver em derrocada. E não há pessimismo que nos salve se o pessimismo sobre as políticas do aparente inimigo esconder o que ontem fizeram e querem voltar a fazer no poder a que anseiam voltar. Sem nada fazer para devolver à sociedade a vida produtiva de cada produtor e consumidor.

A época também revelou que das nossas empresas, registadas como tal, há 71882 que empregam ninguém. Máscaras? A maioria destas empresas não representa iniciativas familiares de auto-emprego a confiar na sua classificação por sectores de actividade. Empresas de nada e de ninguém? Ou é a sua força produtiva que mantém a lucrativa indústria de recibos verdes?

Carnaval? Quarta de cinzas..

[o aveiro; 27/02/2009]

as duas pastas

Trago sempre duas pastas dentífricas dentro da pasta onde guardo também alguma roupa interior e lenços de assoar. Nunca me foram úteis a...