os sólidos platónicos

passo bem por ti gritei-lhe para o outro lado da rua e continuei. sem parar, irritada como só ela sabe ser, disparou entre dentes: nem tentes! nunca mais te faças passar por mim! mas continuou em frente e eu senti-me sossegado a ver como ela entrava numa loja onde teria planeado ir.

somos muito diferentes, parece impossível que alguém nos confunda. eu sou um velhinho de barba branca e ela é obviamente uma mulher com ar de jovem que não engana, embora madura. e temos vozes bem diferentes, sem dúvida alguma. mas muitas pessoas acham que quando ouvem um é como se ouvissem a outra, como se esperassem de uma a voz de outro.
não sei como aconteceu, mas concluímos das conversas que ouvimos aqui e ali que as pessoas tinham ouvido a jovem no momento em que o velho falara e tinham ouvido o velho na circunstância segura de ter sido a mulher a falar. depois de termos verificado isso, começámos a falar coloquialmente com a preocupação de colocarmos acidentalmente a confusão entre os dois e recebermos por respostas e perguntas o que esperávamos: sermos tratados cada um como sendo o outro. e tudo nos divertia. até descobrirmos, num período de grande solidão, que não conseguíamos falar um com ou outro porque, quando abríamos a boca, já estávamos a ouvir ditado pela outra boca o que dizíamos. e isso fez do nosso convívio a solidão absoluta dos dois em cada um de nós. uma só ideia tinha feito de nós uma só pessoa.

enquanto foi assim aos ouvidos dos outros ainda nos divertimos. o problema todo aconteceu quando isso começou a acontecer aos olhos de cada um de nós nos momentos em que nos encontrávamos. e foi então que descobrimos que tínhamos deixado de trocar diferenças para trocar a ideia que não era mais que um enunciado a duas vozes. e então ficámos insensíveis e incapazes para o amor que nos unira e afinal tinha brincado às escondidas o tempo todo e fora de nós, no quintal de uma ideia vizinha a nós.

passamos agora um pelo outro, nunca pelo mesmo passeio da mesma rua e nunca no mesmo sentido. sinto que ela começa a odiar-me e a mudar de ideias. eu sou velho demais para mudar.

reflexões do medo no olhar

habituado que estou ao outro que no espelho
parece estar a espreitar para ver
me em tudo igual a este verme velho

demorei a perceber porque nunca olho nos olhos:

não pode ser medo do que vejo talvez seja medo
de ver o que outros vêem pelos meus olhos
ou medo do que eu possa ver pelos olhos dos olhos
que espreito detrás dos vidros da janela

as duas pastas

Trago sempre duas pastas dentífricas dentro da pasta onde guardo também alguma roupa interior e lenços de assoar. Nunca me foram úteis a...