fim a gosto

lembro-me do tempo em que o mês de agosto aquecia ao rubro as pedras e a areia e eu cortava a respiração sem desfitar as lagartixas até elas desistirem da cauda entre os meus dedos
e isso foi antes de eu brincar ao jogo do sério


lembro-me também de haver assuntos que precisavam de tanto tempo para serem estudados que eu nunca estudava por não ter tanto tempo assim ou era o calor de agosto a entorpecer-me a vontade
e isso foi antes de eu brincar ao jogo da velhice

agora eu passo o mês de agosto a cansar-me numa banheira de água salgada na esperança de caminhar normalmente o resto do ano e não haver quem dê por ela até que mesmo eu pense que não há problema e tudo está bem
sabendo que tudo está bem quando acaba em bem

e isso é agora em que quem está a acabar sou eu :-)

o que diz que não ...

o homem que não diz que não não é o homem que diz que sim.

ouvir sempre?

mesmo quando deixam de falar comigo
e deixo eu de falar, continuo a ouvir

o que fiz de mim para ser esta algazarra dentro da minha cabeça?

do terceiro livro

(...)
6.

Senhor, dá a cada um a sua própria morte.
Morrer que venha dessa vida
Durante a qual amou, sentido encontrou, teve má sorte.

(...)

Rilke (Teresa Furtado), O livro da pobreza e da morte, em O livro de horas. Teofanias. Assírio e Alvim

somos nós

6)

Somos nós. A arrogância da fala como a lâmina que nos faltava para rasgar um véu, um nevoeiro, uma manta de chuva de verão sobre os olhos cansados. Somos nós, um dedo no ar para nos dar lugar a fazer uma pergunta por fazer, a pergunta nunca feita. Somos nós o dedo no ar que ninguém vê porque nós falamos dele para sermos ouvidos, para declarar que há sempre uma pergunta a que ninguém responde e há sempre uma pergunta por fazer. Não sabemos pronunciar essa pergunta. E é só por isso que não sabemos as palavras da resposta.

Somos também nós os que se calam.

somos nós

5)

Somos nós as férias de nós, a arrogância maior de nos vermos cansados de tudo e ao mesmo tempo capazes da arrogância de pensar que nos podemos retemperar até nos podermos ver com outros olhos, uns aos outros, um mês mais adiante. Somos nós quando adormecemos sobre os problemas que queremos resolver ou quando adormecemos para nos esquecer do que nos aflige agora na arrogância maior de jurarmos que o tempo cura como um esquecimento sem dor alguma. Somos nós na arrogância da absolvição dos nossos pecados quando os citamos em baixa voz para ouvidos cegos e mudos por definição. Só nós nos arrogamos o direito da possibilidade de esquecer a lista que ditamos de cor. A necessidade e a possibilidade são as formas que a nossa natureza assume como a arrogância última e a mais crédula e a mais cruel de todas. A necessidade e a possibilidade são armas de arrogância. A maior arrogância e os actos mais cruéis repousam sobre a necessidade e a possibilidade. E a absolvição dada por nós, uns aos outros.

Somos nós, também somos nós quando falamos disso como se tirássemos férias uns dos outros para nos amarmos mais adiante, para amarmos os outros como a nós mesmos, depois das feridas abertas por combates desgastantes e imorais, depois das cicatrizes fechadas por uma biologia animal, por uma oficina de pequenos concertos e uma indústria de cola tudo. Somos nós quando voltamos ao princípio e somos nós quando nos aproximamos do fim e somos nós quando remediamos, quando recomeçamos no meio de tudo como se acabássemos de nascer uns para os outros e virgens disponíveis para sermos aprendizes da vida, a mesma que maldizemos tantas vezes. Também somos nós.

as duas pastas

Trago sempre duas pastas dentífricas dentro da pasta onde guardo também alguma roupa interior e lenços de assoar. Nunca me foram úteis a...