oriente, algures



diário

amanhece! escrevo todos os dias, enquanto calço as meias e aproveito a vénia a que me obrigo para calçar as meias, para a minha oração diária. já roguei pragas contra as dores nas costas ou o desequilíbrio matinal como quem reza. já rezei. amanhece! reze ou não reze.

diário

Uns dias melhor, outros pior. ao contrário de outros que as vendem, a minha mãe dava ordens. sempre a admirei por isso. e o que era melhor é que dava ordens simples. se não executássemos o que ela mandava fazer não podia ser por não termos entendido as ordens. não tínhamos desculpa. ultimamente tenho andado a pensar que não sei dar ordens. desisto? ou penso melhor no que seja uma ordem antes de a dar. ou pago para aprender a dar ordens. ou faço um esforço para me lembrar da técnica de comunicação da minha mãe para dar ordens com vista a acções particulares. ou passo a vender ou distribuir ordens como fazem os reis das monarquias e os presidentes das repúblicas, sem esperar que possam ser compreendidas já que a acção requerida está só em receber pondo o peito a jeito.

o diário

quando te sentes velho, podes caminhar pelas ruas como caminhas pelos corredores da tua casa. e podes rir-te do que foste como se te risses de qualquer outro dos que em vão conheceste. ou desconheceste, afinal. nada do que possas ter feito é para ti entusiasmante, porque o que está feito está feito e não tem futuro. o teu futuro pode ser ou ter uma forma perturbadora porque sabes que te foste transformando noutro esse outro que tu já não controlas. por isso, lutas contigo mesmo à medida que vais desaparecendo da tua vista. a voz que de ti ouves já não é a mesma e tens vergonha de ter convencido alguém com essa voz pedagógica de trazer por casa, sendo que em casa todos sabem que nenhuma pedagogia há feita das tuas qualidades, antes tudo ficou feito pelas tuas escolhas. quando te sentes velho, não tens outro desejo para além dessa vontade de desaparecer ou mudar de pele. é por isso que entre as tuas escolhas importantes, está a transformação nos gestos: cada vez menos cuidadosos e cada vez mais cuidados. à tua volta giras como se cuidasses de ti em vigília permanente em busca de sinais que ainda não podes ver mas estão lá em algum lugar onde poisas as coisas, as pequenas coisas que escondes ou mostras para esconder as outras pequenas coisas. os sinais estão nas ocultações para ti mesmo que é a forma como queres desaparecer. não tarda estás a fazer um testamento de nadas, talvez da forma de morte e de não funeral que escolhes sem o dizeres aos outros. na forma como desvendas o tédio que a tua vida foi: tanta alegria para nada, tanta alegria sendo tudo e nada, cada escolha como separação do que te foi estranho depois de o teres sido. quando te sentes velho, podes imaginar que podias ter sido outro nas escolhas e podias afinal ter encontrado maior sossego em alguma comunidade estranha mas acolhedora de alguma forma acolhedora que só precisava que não a negasses. mas tu aprendeste a negar sorrindo e quase fizeste isso de forma perfeita, mais recentemente fazendo isso nos momentos certos, sem ser desagradável para os outros, sem seres qualquer acontecimento fora de ti desculpado por te sentires velho. às vezes, pensas mesmo que escolher o momento favorável a certas mudanças fez de ti uma forma de vida adaptada a fazer as grandes mudanças como se de pequenas mudanças se tratasse, como se te fosses desvanecendo sem sobressaltos para ti e para os outros, como se preparasses algum esquecimento de ti. quando te sentes velho, dói-te o joelho e só isso te importa afinal embora não o digas. cada dia te afastas um pouco da vida, esqueces um pouco uma parte da memória e crias uma lembrança do que não existe em ti e nunca existiu. pensas como a tua mãe que o que interessa é a imaginação da vida que não foste, uma vida imaginada, construída fora da realidade das coisas que viveste, uma forma de sorrir sem culpa, uma bengalada que nunca existiu.

o diário

hoje caí na asneira de olhar para o lado. ao meu lado, ia uma senhora com uma bengala que golpeava o ar compassadamente. o ar que nos rodeava bem tentava desviar-se das bengaladas. sem conseguir. o ar atrapalhado do ar deu-me vontade de rir e quando uma gargalhada se preparava para sair a bengalada no ar atingiu-me a gargalhada que saltitava à minha frente. assustado, perdi a vontade de rir. comecei a procurar a vontade de rir pelo chão. quando a vi, baixei-me para a apanhar. e apanhei com uma bengalada mesmo em cheio na mão que acabava de pegar a vontade de rir. o ar que até aí andava a fintar as bengaladas pôs-se de cócoras para ver melhor o meu ar. senti uma lufada de ar, uma gargalhada de ar. com pena vi que tinha perdido toda a vontade de rir e toda a vontade de a procurar. o pior é que não estranhei a falta de vontade. à minha volta, o ar andava às voltas tentando ter graça. eu não lhe achei graça nenhuma. para além do riso, deixei de achar graça. se calhar nunca mais vou achar.

as duas pastas

Trago sempre duas pastas dentífricas dentro da pasta onde guardo também alguma roupa interior e lenços de assoar. Nunca me foram úteis a...