aqui nesta soleira de luz

senta-te meu amor aqui nesta soleira
e deixa que luz grave na palma da minha mão
de  ti uma imagem que sejas tu na escuridão

que não saiba eu se é tua a ausência ou minha a cegueira

más caras

os ministros

à ordem de fogo os ministros do meu país
já não soletram o costume dos disparates:
disparam  da sua ordem mais unida rajadas  de dislates
em sequências de porcaria  pelos canos serrados do nariz.

a vida inteira

a vida inteira
fora eu a esperar-te
em carne viva numa esquina de ruas
como uma carícia aérea  fossem só tuas
a ternura  e a febre de olhar-te
a vida inteira
estendesses a mão até quase tocar-me
sem te afastares mais que um dedo
para que a tua vida virasse o segredo
da ansiedade do teu olhar a desejar-me
a vida inteira
fosse só o instante mais que perfeito
que se recordasse mesmo no imperfeito
a vida inteira

escola interior

olhava-te jardim de uma escola interior
o que via era só uma flor de ferro em brasa
chama quente de me sentir em minha casa

sabendo desde ontem que podia ter sido bem pior

cegueira

neste caso não fui eu quem te fez o altar
que já lá estavas quando ceguei à luz armada

a teus pés de joelhos tremendo humilhada
a minha alma suicida sem saber  a quem rezar

a noite

a noite divide-se em ruas
aliás também a manhã e a tarde e as luas
ou como a vida onde ainda moras
e por onde passo a passo passam as horas

e há instantes em que acontece
visitar-te como quem vem  desaparecer
feito esquina que em teu tempo arrefece
ou gutural canto à falta de palavras por dizer

em nome da obra de deus

se deus não existe não tem culpa

mas dos maiores ladrões
se diz que se tanto roubaram
foi por mor das obras de deus

e a prova está na falta de desmentidos
do reino dos céus.

têm razão para ter medo

não foi um fio de pensamento do presente
nem foi um erro de cálculo  de boa gente

que nos trouxe até aqui e até à miséria

material
e moral

apesar da muita lata e da muita léria
sabemos todos que o que nos falta a todos  foi roubado
por conhecidos ladrões  com nome e apelido

ainda a roubar em reformas e pensões
até aviões e legiões
de dezenas de guarda costas  por cada um dos milhões

dando prova de que se encheram de dinheiro e de medo
em segredo

e chegados aqui
melhor que ninguém eles sabem:
há quem pense em casacos feitos dos seus coiros
para sobreviver ao frio deste próximo inverno
neste inferno.

um dia destes

um dia destes vou ver-te saltar à corda
os amigos servem para isso e pouco mais
admirar habilidades naturais como saltar
se tornam humanas nos nossos amigos

que treinam tão intensamente o salto
à corda como o salto à vara ou o assalto
à mão armada ou o assalto de consciência
ou a ciência aplicada ao amor e às relações

sociais também são os sócios no capital
os meus amigos do alheio sei lá eu qual
quase tudo o que vejo me é alheio agora

como o teu assalto à distância o remoto mergulho
em suor humano treinando o frio de cada músculo
por cada presente cruel  e do futuro como causa.

desenhar farrapos

mataram-me o passado de que valia a pena cuidar
como se cuidasse um porco com abóbora couve e farelo
sobra-me a memória da lâmina da faca de cabo amarelo
com restos de sangue seco de passado ido a sangrar

agora bem me levanto a puxar a cortina para ver que dantes
nada há que me lembre a não ser o gesto diário de lavar
os dentes que sei ter sido um gesto antes sem ser lembrar
mas como uma certeza sobre os maquinismos dos instantes

cruzam-se comigo todos os dias ou sou eu que hoje vos vejo
como um reflexo de cada dia anterior em meu liso espelho
de porta do guarda roupa que dá para a rua onde moro

ou sou eu que acordo para acenar  e soprar da mão o beijo
sem sair do quarto  embora me agite vida de besouro velho
desenhando farrapos de tempo sem ver porque neles  demoro.

despedida

fica a saudade do pão do "the caffé" e dos quintais por ali mesmo por detrás dos prédios da avenida, onde se pode rezar a qualquer deus, em paz, se não houver "derby" por perto.

despedida

despedida

despedida

despedida

despedida

despedida

despedida

despedida

foi uma honra ter servido consigo! disse eu, quando chegámos ao pé do carro dela.
na despedida, antes de entrar no carro, ela disse: porta-te bem!
e eu continuei o caminho,  para me ir despedir dos meus secretos quintais da avenida.


despedida

já de saída, passámos por exposições de fotografias e já cá fora por esculturas, pelo pantera...
continuo sem entrar num estádio, mas estive lá... muito perto.

despedida

estivemos lá e eu comi chocos com tinta lavada com cerveja.

despedida

enganámo-nos. andámos para cá e para lá e chegámos ao outro lado. e, invejoso,  tirei a fotografia que ela tirou.

despedida

nem sempre sabemos de quem nos despedimos quando nos despedimos. só hoje me despedi de uma observação de há dois anos atrás sobre a catedral que dali se via. dali, onde hoje se acotovelam algumas fumadoras para a fotografia
catedral? qual catedral? perguntei então. até que, hoje, passados dois anos, ...

lá do cimo eu bem lhe disse: 
não se vai ver.  
ela retorquiu: 
eu sei quem lá estava (e nos viu partir voando - devia ter dito deve ter pensado).
acrescentando desconfiada: 
achas mesmo que por aqui se chega à catedral?
eu devia ter dito:
-e eu é que sei?

de facto,

de facto ninguém ouviu o tiro o estampido que ela ouviu
ou melhor sentiu como uma dor fina de uma orelha à outra
atravessando a cabeça como uma agulha de som como um eco
da vida que ali não está nem está em lado algum já se cansou

de procurar por ele e ninguém sabe embora toda a gente o tenha
visto caminhando distraído como sempre a caminho de cada
lugar dia a dia como se fosse necessário encontrá-lo onde
nunca fez falta todos o sabem menos ele que não sabe parar

de se mexer sem outro  sentido que não seja o sentido do dever
sem dever nada a ninguém é o que dizem os que o não percebem
enquanto ela atarantada tenta perceber porquê e para onde ele

terá ido se não há quem por ele espere ou dele precise como
foi tão natural que toda a gente o tenha visto partir sem estranheza
como se a vida dele tivesse sido isso mesmo um desnorte só

vais partir

vais partir: precisas de ouvir  a porta a bater para saberes
o que ainda não sabes que vais caminhar sempre em frente
quando saíres do prédio de apartamentos para nenhures
sem destino sem norte só em frente sem olhar para trás

para que a estátua de sal que há muito és caminhe contigo
e passe pelas ruas onde a esculpiste para em vez de ti mesmo
sobrar na esquina talvez como um monte de sal ou cinza
porque vai contigo para que nada nem a sombra sobre

quem desaparece tem a certeza dos olhos que ficam presos
até que se desvanece à distância de um tiro de carabina
e não por dobrar um cabo dos trabalhos ou uma esquina

quem desaparece quer mesmo ir sempre em frente sem
uma muda de roupa sem  telemóvel sem cuidar do tabaco
sem caderno nem um simples lápis para esboçar o quê

a canção que

a canção que se ouvia era um fado pela voz de um sax
alto dizia qualquer coisa como todo o amor que começa
também acaba como a noite que acaba ao romper do dia
ou o enjoo que acaba quando a viagem acaba e sais ao ar

o problema está em não poder dizer que o que lá vai lá vai
e que parto daqui descansado e sereno como quem muda
de casaco ou escreve um poema como se fosse um ponto
final infeliz mas ponto e final sem mais perguntas ou recuos

dizendo ficamos amigos como dantes dizia eu a mim como
se tivesse havido antes e eu me tivesse conhecido realmente
ou tivesses hesitado ao ver-me partir para  o lado de dentro

de onde se solta o fado cantado por um sax como um latido
do cão de guarda ou o gemido descontrolado  de uma alma
que abre uma baínha com a espada que nela se esconderá

se soubesse quem

se soubesse quem és podias chamar-me pelo nome ou
se soubesses quem eu sou podia chamar-te pelo nome
mas não há problema em saber ou não saber a solução
que me aflige é mesmo uma ausência sempre presente

um esquecimento de tudo em volta de eu reconhecer
num detalhe ou noutro as caras e os nomes e juntar
a cada cara o seu nome ou a sensação de um cheiro
a limão colhido durante um passeio pela noite dentro

se não deste por mim é porque eu nem existo como nome
nem como tempestade de que me lembre ou te lembres
ou como lugar onde tivesses estado e eu contigo só

vagamente as ruas passam a ser umas depois das outras
corridas pelos teus pés incansáveis e  pelos meus olhos
feridos no mais alto miradouro a ver e chorar-me com dó

regressos lentos

uns dias faz sol noutros dias faz-se a chuva e o frio
por fora e por dentro de nós caímos em nós variando
entre sensações umas e outras marcadas pelo andar
lento entre as árvores que perdem as folhas como eu

perco palavras por dizer ou esquecidas na cesta do pão
manhã cedo ainda havia muito tempo para falar ou calar
e transformámos os dias em espera pela calada da noite
um silêncio escuro o cansaço de tudo ter dito por dentro

o lugar que sou eu ou tu conforme é quem lê eu ou tu
a realidade ou a ficção em que ela se transforma no amor
clandestino que de mim fez tanto menino  como velho tímido

entre o calor e o frio  dos dias temerosas antecâmaras da noite
em que caímos até não haver mais que ver ou até viver
sei lá se vai ser procissão de romaria o funeral deste solavanco