a memória de elefante




 a memória de elefante 

Amei-te desmedidamente. O filho que gerámos tem os olhos vesgos, orelhas de elefante e uma tromba potente, sensível e fina de urso formigueiro. Mas é o nosso filho.
E passámos a vida a olhar embevecidos para o nosso filho, fruto do nosso amor. Quando escurecia, o nosso filho abria os olhos e iluminava dois cantos do quarto em que nos escondíamos do mundo. Ceávamos à meia luz que os seus olhos acendiam cheios de ternura. Quando nos deitávamos, ele fechava os olhos, embalava-nos empurrando o berço com a sua potente tromba e, nas noites de calor, refrescava-nos com o movimento calmo das orelhas. Quando adormecíamos, ele comia os insectos que ousavam incomodar-nos. 

Somos felizes. Mais felizes somos porque te amei desmedidamente várias vezes e temos agora um rancho de filhos que olhamos embevecidos, porque têm os olhos vesgos e muito brilhantes, orelhas de elefantes e trombas potentes, sensíveis e finas de ursos formigueiros. Quando nos mudámos para esta rua, ela era habitada. Pouco depois de nós chegarmos, os vizinhos começaram a ir-se embora. A última a partir foi uma velhota muito pobre de quem nos despedimos com simpatia. 

Não percebemos porque é que ela nos perguntou se não tínhamos espelhos. 

1995' Pintor João Pires


1.

O alimento dos animais e das plantas~e ainda a nuvem que cai do alto sobre o cristal destapado pelos cascos do vento  indomado. Num fio de água, de metal e vapor, a raíz mineral abraça a pedra. Do cerne viscoso da pedra um caule de vida vegetal brota …  para a luz uma fonte vira o seu olhar azul.

O pintor recolhe as marcas dos cascos do vento.

2.

Uma árvore está plantada onde o lago começa. O poeta disse que a árvore ore bebe a tensão do espelho em que o sol reflecte a sua vaidade, que não bebe a água e que, ao contrário dos pensamento dos pintores, é a folhagem que bate e expulsa o vento. O poeta sabe que é o sol quem vagarosamente bebe o vapor de água.  O pintor recorta com todo o cuidado um quadro dessa neblina da manhã.

O pintor atira a pedra rente à superfície das águas e conta as vezes que a pedra salta antes de se afundar na tela do lago.

3.

Porque te hei-de mentir em cada movimento.   Que me custava obedecer-te.  Estas. são as dúvidas da máo do pintor que treme.

Ateia o fogo à cabeleira do pincel e deixa'o contorcer-se  de dor sobre a tela … este é o conselho do poeta amargurado que habita a oficina do pintor.

Antes de pendurar as folhas brancas e suadas, para que corem expostas à vergasta do sol e à malícia humana, o pintor espreita a todas as portas iguais que todas as telas sâo.

O pintor tenta ficar sossegado, apesar do que vê quando se espreita.

4.

Homens devoraram uma aldeia e dela resta uma inóspita terra de cegos e as visões obstinadas de uma imortal bruxa.

Os pintores são cegos ew vivem na aldeia da bruxa das visões. Nuns casos, são eles que pintam a partir da descrição que ela fala. Noutros casos, eles só fornecem as cores e é ela que, em transe, devolve-se as paisagens e a loucura dos evidentes.

Os pintores contam o que sabem a ninguém.


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Aveiro, 1995

Versados passados

a viagem a santa mulher oscila e imagina que é o passeio da rua que oscila um santo homem da mesma viagem olha para ela e sorri no olhar um abraço abre os braços dos dois que desatam a rir desfeitos no ar que nuvem os leva? o crente diz que nuvem assim é feita de dois dos 7 pecados, um - quem desenha, que sabe dos pecados que desenha? - sabe que desenha. cada um és a tua história: aquela que guardas em gavetas da memória até formares a nuvem de palavras
cuspidas como uma corrente de ar gelado como o corpo da tua voz. és a tua história: aquela que ouvimos soltar-se da tua boca e vemos palavra a palavra pendurada no arame esticado de um estendal de rua ou sobre o abismo a cabeça a caminho da lua versados

rimas (muito cedo muito antes deste regresso )

a fonte

onde a fonte murmura
foi que perdeste a infância:
e o frio dessa distância
é que te rodeia a cintura



perdidamente

e mesmo assim te amei perdidamente:
a minha inocência mais pura
correu célere para uma foz de amargura
enquanto tu desaguavas em mar diferente



aldeia vegetal

se voltares à minha aldeia vegetal:
um funâmbulo persegue por um fio de cor
teu gesto sem asas, mas voador
papagaio de tela, de pele e de cal



devolução

as folhas de choupo, não foi do alto que as colheste:
o que trincas são asas das minhas aves mortas
que se esmagaram contra os umbrais das tuas portas
na violência do vento que te devolve o que não deste



@ adealmeida

até eu me devolvo como envio

depois vieram tambêm cá