Orgulho e preconceito.

1.

Trago os bolsos portugueses cheios de orgulho. Uns dizem-me que devo orgulhar-me por ter um português como chefe dos comissários europeus.

A barraca da primeira proposta de comissão em estilo rococó fez recuar Durão Barroso e os chefes dos governos da Europa do tipo Berlusconi, esse rapaz que, pela via do poder, se tornou imune à justiça do seu próprio pais. Também pelo partido do nosso ex-primeiro se passeiam algumas personagens do tipo foragido. Durão Barroso voltou com uma nova proposta de lista de comissários e esta acabou por ser aprovada no parlamento europeu.

Já aprovados pelo Parlamento, mas sem terem experimentado as cadeiras da comissão, os comissários começaram a pingar escândalos que recomendavam aos governos dos seus países que os não indicassem e ao nosso orgulho Durão que os não aceitasse caso lhe fossem propostos. Ficamos a saber que afinal não estamos sozinhos no mundo quanto a governos fracos de honra e ficamos a saber que o nosso chefe dos comissários aceita tudo o que os chefes dos governos lhe impõem. A comissária da concorrência está envolvida em vários processos de violação das regras e leis da concorrência. Argumento dos defensores da comissão: não está envolvida em mais do que 3 processos o que é uma gota de água no mar de milhares de processos em investigação. Não é espantoso este argumento a favor da desdita? Outro comissário até se esqueceu de referir que tinha sido condenado a pena de prisão e afastado de cargos públicos no seu pais. Orgulho no chefe português desta comissão tão qualificada?

Este orgulho que me propõem tem de ser escondido. É por isso que trago os bolsos cheios de orgulho.



2.

É mesmo preconceito da minha parte.

Interferem com os privados da televisão. Interferem com os serviços públicos de televisão. A primeira reacção dos tipos envolvidos é falar de outras interferências no passado e por outros partidos para não terem de explicar e assumir responsabilidade pelo que está a acontecer. Como se fosse natural dizer: outros foram piores que nós, deixem-nos ser um pouco trastes. E assim fazem com quase todos os problemas. São uns chatos pouco honestos untados num verniz que cheira mal. Não há pachorra.

É mesmo preconceito da minha parte e não consigo escondê-lo.



3.

E dizem-nos: porque não nos querem modernos como os outros selvagens da Europa?
Há civilização europeia e outra Europa. Na nossa Europa não esquecemos a experiência: os votos podem dar-nos o melhor da Europa, mas já nos deram o pior de tudo o que ela tinha para nos dar.



[o aveiro; 25/11/2004]

o monumento

dom quixote,
com sua lança,
trespassando a pança
de sancho.

a viola

muitas vezes, como
se soubesse tocar-lhe
abraço-a

assim como
se a embrulhasse
numa canção de embalar
antes de a acordar.

desenho, logo existe

No Guarany (Aliados) esperámos pela felicidade de rever "as seis gaivotas". Nada é melhor do que rir (se possível de nós mesmos para ser ainda melhor).

Enquanto esperávamos no Guarany, li umas linhas de uma entrevista a René Thom

(Parábolas e Catástrofes que a Dom Quixote publicou na OPUS - Biblioteca de Filosofia. A tradução perde ou ganha por não ser cuidada do ponto de vista da matemática?)

e, como sempre, fui desenhando

desenho, logo existe



pronto.... final.

desenho, logo existe



num congresso de quase só homens (!!) que podemos desenhar?

desenho, logo existe



santarém?

desenho, logo existe



nota-se muito que o congresso foi em santarém?

desenho. logo existe



nota-se muito que estive num congresso?

desenho, logo existe



nota-se muito que estive no congresso das cooperativas portuguesas?

desenho, logo existe



o luar contigo
é o desenho
de um luar comigo

desencontros tanto acontecem
ao luar contigo
como ao luar comigo


:-)

Nenhuma orelha te arde
por eu me pensar contigo.
Contra praga de cobarde
nem precisas de abrigo.

ainda agora aqui cheguei!

Ainda agora aqui cheguei e já estou atrapalhado.
Uma mensagem diz-me que eu devia ter mandado até hoje o artigo que já devia ter ido não sei quando.
Outra diz-me mesmo o que eu devia ter feito e com quem devia ter falado onde estive ontem e hoje.
Outra ainda me diz que se não existisse, tinha de ser inventado.
E há um amigo que me manda uma mensagem cujo assunto é Fw: O meu amigo Arsélio. Há mesmo quem me tenha mandado uma pergunta que só pode ser uma provocação. Aqui deixo o teor dessa mensagem:
Desculpem mas eu tenho aqui um perguntinha para vos fazer. Não será nada de complicado.
Concordam com a Carta de Direitos Fundamentais, a regra das votações por maioria qualificada e o novo quadro institucional da União Europeia, nos termos constantes da Constituição para a Europa?

Ontem e hoje estive no Congresso das Cooperativas Portuguesas em Santarém.
Para partir foi uma aflição de aventuras de chaves fechadas a sete chaves portas a dentro das portas que é preciso abrir para as apanhar, enquanto me ia mantendo agarrado a papéis que afinal não foram enviados e nem sei onde estão.
Eu já não tenho idade para partir.

Aprendi por lá como aprendo sempre. E vi algumas pessoas que de outra forma não veria. Até vi uma pessoa que só pode não me ter reconhecido por já não se reconhecer a si mesmo. Porque passaram os anos e nós passámos com eles.

Oficial desmentido

O ministro das finanças do meu pais é tido por pessoa de princípios rígidos. É daqueles que toma medidas para salvar o pais. Toma medidas e manda apertar os cintos, de castidade incluídos. Há muita gente que assim pensava até que há uns meses ele aceitou ser o financeiro de Santana.

Depois de ter estado em governos a defender o sigilo bancário como forma de cativar os investidores estrangeiros e nacionais, vem agora dizer-nos que para o ano não há sigilo bancário para ninguém. Disseram mesmo os comentadores que a esquerda ficou cativa das medidas felixes, rigorosas, populares e de controle do capitalismo selvagem ou dos selvagens capitalistas. O homem foi tão longe que até disse acabar com os benefícios fiscais dos ricos naquelas coisas chamadas poupanças ditas PPR, PPR-E, PH, etc. Os capitalistas que se cuidem.

Para fazer umas obras na cozinha cooperativa, lá tive de ir ao banco ver se havia poupanças e pedir empréstimo para pagar o que as poupanças não cobrem. Recomendaram-me que reforçasse a poupança-habitação até ao fim do ano e fiquei a saber que aquela coisa do fim dos benefícios fiscais ainda não era e que as medidas felixes não entram no orçamento de 2005.

Percebia pouco disto, percebo menos agora. Perplexo, comecei a ver cartazes do banco do estado, a caixa geral de depósitos, um pouco por todo o lado a incitar-nos a todos a fugir ao fisco, usando poupanças. O mais delirante de todos dizia: "Brasil - o novo paraíso fiscal para quem quer poupar nos impostos." E eu a pensar que os capitalistas portugueses eram aconselhados a fugir para o Brasil. Mas não! O banco do estado português esclarece no mesmo cartaz a politica da campanha: "Paraíso fiscal é poupar nos impostos e ainda ganhar viagens. Este ano, poupe até ?2691 no IRS com as Soluções de Poupança Fiscal da Caixa e habilite-se ao sorteio de viagens a sítios paradisíacos. E se antecipar os investimentos até 10 de Dezembro, multiplicará as hipóteses de ser premiado". O banco do estado promove o pais como paraíso fiscal. Onde está o Félix nisto tudo?

Os velhos como eu achavam que o governo devia ser de homens e mulheres de uma só palavra que, para alem de o serem, tinham de parecer sérios e com espírito de serviço. Há uns anos, começou a valer a ideia que não podia desrespeitar a lei e era conveniente parecer sério quem quisesse ser governante.

E agora?



[o aveiro; 18/11/2004]

(d)escrevo, logo existe; mas a que sabe?

Nunca sei quando devo ficar de rastos. Preciso de quem me ensine a arte de escolher os dias para ficar de rastos. Ou ando eu sempre de rastos e já nem dou por isso?

E tendo aprendido a desistir do que há de sagrado em mim,

- aquilo a chamo desejo volátil, santidade do corpo em si ou da vida vivida por si mesma no acerto ou concerto com as vidas dos outros -

todos os dias me resigno a ouvir os passos dos que se afastam, sem que me levante para os seguir.

Isto não interessa, eu sei. E apesar de saber que nada interessa, escrevo-o para que passe a existir o sem interesse

- porque afinal o sem interesse é a minha vida - única e irrepetível.

Estas frases afirmam e provam a existência. Não quero provar a unicidade. Provar, provar ... só a existência. E continuar sem saber, sem conhecer ... o sabor.

devastado

(...)
I will show you fear in a handful of dust.

Frisch whet der Wind
Der Heimat zu
Mein Irisch Kind,
Wo weilest du?


"You gave me hyacinths first a year ago;
'They call me the hyacints girl.'
- Yet when we came back, late, from the Hyacinth garden,
Your arms full, and your hair wet, I could not
Speak, and my eyes failed, I was neither
Living nor dead, and I knew nothing.
Looking into the heart of light, the silence.
Oed' und leer das Meer.

[T. S. Eliot; The waste Land]

o desejo volátil

Eu achava que queria ser poeta, mas no fundo queria ser poema.

[Vila-Matas; Batleby & Companhia]

estagnardia

Há dias em que espalhamos palavras sobre todas as coisas da nossa vida, como quem estende um pano sobre as nódoas da mesa. Para quem chega de novo, vindo de fora, o que vê é a toalha lavada. Mas para nós? Tentamos parar o movimento perpétuo por um instante melancólico. Mas nós sabemos que há o dia seguinte, que nada parou entretanto porque nada aconteceu a não ser sobrepor as palavras, uma ou outra mentira piedosa sobre nós mesmos para nós mesmos. É certo que deixamos que alguns grãos de poeira se colem à pele do lugar.

Acordo ainda mais cansado ao ter de reconhecer que tudo recomeça uma e outra vez na cabeça que é onde precisamos de travar e é onde não há travões... onde não há travões. Eu posso decidir que não dou mais um passo e deixar-me adormecer paralisado nesse instante mágico em que decido sobre o meu corpo. Mas a imaginação é o filme que passa contando-me tudo o que fui e tudo o que não serei por ser incapaz de ser o dia seguinte de mim.

.... em saco roto

se eu me levantar e pedir a palavra para dizer

Como Novalis disse ...

é porque não sou um saco roto

se acordar

se a manhã vier beijar-me
como só ela sabe
eu hei-de saber calar-me
no colo em que meu sonho cabe.



se acordar?
sonho acordado.

lutas de família

Num blog praxista , feminino, estão publicados textos contra a praxe. Um dos textos escolhidos foi escrito em 97 pelo meu filho mais novo que é também o meu filho mais velho. A este respeito, vale a pena ler um filho afirmar-se, no seu Diário de Bordo , orgulhoso em estar ao lado do Pacheco Pereira, do mesmo lado da barricada.
Nos idos de 70 do século passado, contra a queima e contra a guerra, ao lado de Pacheco Pereira militavam os pais do meu filho.

tisana 17

Nos anos em volta de 1970, lia muita poesia e comprava alguma com o pouco dinheiro que ia tendo (e era muito, pelo menos para a poesia que ninguém que eu conhecesse comprava). Hei-de revisitar uma a uma as mulheres que lia - agora que me lembro, as mulheres da poesia desses anos, deixaram-me mais marcas que os homens. Um dos livros que copiei laboriosamente ainda antes de o comprar era o "39 tisanas" da Ana Hatherly. Quando o procurei há uns dias e o não encontrei como fiel do armazém da memória impressa, decidi comprar as "351 tisanas" para conversar à porta de casa com o porco Rosalina ou com a chave que abria a porta aberta.


Era uma vez uma chave que vivia no bolso de um homem. Durante muito tempo desempenhou com honestidade o seu trabalho de abrir portas. Até que um dia descobriu que todo o seu trabalho tinha consistido sempre em abrir portas que já estavam abertas. Quando descobriu isso lançou-se corajosamente para fora do bolso. Caíu no chão. Ficou ali. Passa uma criança vê a chave e diz que coisa tão engraçada para fazer um carrinho.

cello






Ouço o que quero ouvir.

Porque somos felizes?

Em verdade, devia contar-vos o dia de hoje como um dia infeliz. De facto, assim parece. Como professor de matemática, decidi fazer uma viagem lenta com os estudantes que trabalham comigo. Para que as coisas parecessem claras ainda antes de partirmos, escrevi como sumário qualquer coisa como: tentativa de construção de uma nova operação ou conceito... pensando. Deixei que eles tomassem os lugares do espírito e tentei ganhá-los para a viagem que eu queria fazer. A ideia parecia-me simples: depois de lhes ter posto uns dias antes um problema complicado, ia agora colocar tudo o que sabíamos sobre o tampo das nossas mesas de cabeceira e procurar de toda a tralha que carregámos, uma ferramenta que fosse interessante e funcionasse a unir os pedaços do tal problema do dia antes. Fomos andando aos solavancos. Não perdemos tudo, algumas peças se foram montando, mas os estudantes não perceberam o essencial. E o pior é que alguns dos que se aproximaram para me perguntar pelo verdadeiro intento, acabaram dizendo que mais me valera ter dado a definição simplesmente.

Na minha vida de professor, isto acontece. Porque eu explico mal. Ou, mais frequentemente, porque os estudantes não querem saber como é que as coisas se fazem, como é que elas aparecem ou como é que escolhemos uma possibilidade entre várias. Também não querem muitas vezes saber porque é que a escolha convencional funciona. Basta-lhes que funcione para os efeitos que o professor desejar.
Em cada falhanço destas tentativas pedagógicas, apetece desistir. Mas nunca desisto, porque é possível que numa destas tentativas um estudante dê um salto para lado do processo do pensamento científico.

Os políticos todos pensam que o povo não quer saber dos processos, nem está apto a percebê-los. Pensam que o povo quer saber do que funciona ou não. Os políticos dizem ao povo o que pensam que ele quer ouvir, ainda que seja mentira. Desistiram tão radicalmente da verdade que dizem ao povo que os impostos vão descer (ainda que seja mentira) e enervam-se se os investidores e decisores europeus ouvirem o que foi dito ao povo em vez de lerem só a verdade que está escrita nos papéis onde a verdade se esconde da compreensão do povo.

De cada vez que há eleições, quase chegamos a pensar que estes políticos têm razão. De cada vez que falhamos com os estudantes, quase desistimos de explicar para impingir a receita.

Somos felizes, porque não desistimos.

[o aveiro; 11/11/2004]

nada me custa mais do que corrigir provas... de amor

Quando te pergunto e tu respondes,
procuro o certo e o errado ou o que escondes?

Eu não quero saber o que é certo ou o que é errado
nem quero virar o ar dos sons para vibrar por outro lado


Sou eu quem se desfaz em tinta vermelha verdadeira
chorando sangue sobre a tua resposta azul certeira

a não esperada
ou a não desejada
ou o contrário de tudo ... que é nada.

onde os olhos poisam

por onde voam os olhos

onde ponho os pés

o que eu quero ver é o que quero ler.

o homem que não aprendeu a nadar.

- estes anos já cá cantam !
é ele quem o diz, quando olha para o tempo que passou, e diz também:

- só tenho pena de não ter aprendido a nadar. mas não tive iniciativa!
para continuar:

- de resto só tenho pena de ter tido a iniciativa para o resto das coisas da vida, de tal modo que não sei, por exemplo, se há alguém que goste de mim. nunca houve quem tomasse a iniciativa e me dissesse
- eu gosto de ti, desejo-te, amo-te!
ou coisa assim. sei agora, a olhar para trás que fui eu quem andou a insistir que é o mesmo que ter andado a mendigar amor, amizade, etc.
provavelmente ninguém gosta de mim e só conheço quem cedeu às minhas insistências para não ter de me aturar a tristeza e não ser capaz de me desprezar.

- só tenho pena de não ter aprendido a nadar!
é ele quem o diz.

e eu penso que ele o diz porque não precisa realmente de ter vontade para se afogar. basta deixar-se cair.

- estes anos já cá cantam!
é ele quem o diz, como se os dias e os anos tivessem caído do nada para nada.

chamado

disseram-me que muitos são os chamados
e poucos são os escolhidos


a mim chegava ser chamado

desenho, logo existe

existe, logo desenho

desenho, logo existe

Diz a lenda sobre Lîlavatî

Diz a lenda que Lîlavatî era o nome da filha de Bhâskara, a quem, ao nascer, as estrelas, pela boca de um astrólogo, predisseram a condenação (?) de ficar solteira toda a vida.

Um dia Lîlavatî foi pedida em casamento por um jovem de Dravira, honesto, trabalhador e de boa casta. Fixou-se com grande júbilo a data da boda e marcou-se a hora no cilindro que tinha um pequeno orifício na base e estava aberto na sua parte superior. O cilindro introduzia-se num vaso cheio de água e o nível desta, enquanto subia, marcava as horas na sua superfície interior. No dia assinalado para a boda, Bhâskara colocou cuidadosamente o cilindro marcado no vaso cheio de água. Lîlavatî, curiosa, debruçou-se para espreitar a subida do nível de água e nesse momento uma pérola do seu colar caíu dentro sem que alguém desse por isso. Com tal má sorte que a pérola obstruíu o orifício e o dia passou sem que a hora da boda tivesse sido assinalada pelo nível da água. Assim se cumpriu o sortilégio e Lîlavatî ficou solteira para sempre.

Foi então que seu pai se propôs escrever um livro que sobrevivesse à desejada descendência da sua querida filha.




Lîlavatî, de Bhâskara, é o livro que sobreviveu a Lîlavatî.



Esta é a resposta atrasada ao comentário de André Carvalho sobre o problema 55 de Bhâskara que o André Moreira prontamente resolveu, cedendo ao romantismo histórico dos matemáticos.

eu não tenho gato

(...)
Eu não tenho gato, mas se o tivesse
quem lhe abriria a porta quando eu morresse?

[António Gedeão]

Para acreditar

Para acreditar em Deus
é preciso que ao menos Um

exista como ente nenhum.

sob a pele

Porque há-de sob a pele o sangue amotinar-se
quando apenas a pele havemos convocado
mas quanto mais a pele a vemos sem disfarce
mais sob a pele apela o sangue amotinado

Quem nos faz de repente esta rampa temer
da cópula de um dia à cúpula do dia
Porque há-de sob o sangue a alma estremecer
se decretámos nós que ela não existia.


David Moura Ferreira

Porquinho da Índia

Já agora que me lembrei de Manuel Bandeira, aqui fica um dos meus preferidos:


Quando eu tinha seis anos
Ganhei um porquinho-da-Índia.
Que dor de coração eu tinha
Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!
levava ele pra a sala
Pra os lugares mais bonitos mais limpinhos
Ele não se importava:
Queria era estar debaixo do fogão.
Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas...


- O meu porquinho-da-Índia foi a minha primeira namorada.




Manuel Bandeira.

Morro do Encanto

(...)
Falta a morte chegar... Ela me espia
Neste instante talvez, mal suspeitando
Que eu já morri quando o que eu fui morria.


Petrópolis, 21-12-1953
Manuel Bandeira: Nocturno do Morro do Encanto.

O pecado.

A 29 de Outubro, Tiago Barbosa Ribeiro escreveu Feuerbach revisitado

e eu transcrevo


Não sejamos hipócritas. A mais válida das razões para recusarmos a herança judaico-cristã é também a mais simples: a preguiça é um dos seus pecados mortais.

hoje.

Os dias depois do dia antes.

[1. Voos Intercontinentais.]

Ainda não sabemos. No momento em que escrevemos não sabemos. O Jorge ou o João? Qual deles será o próximo presidente dos Estados Unidos? Podemos tratá-los familiarmente assim em português e tudo. Afinal, as eleições para presidente dos EU são travadas em todos os cantos do mundo. Travadas é o termo certo, porque é de mais ou menos guerras que tratamos quando falamos das eleições do João e do Jorge.

Quando esta crónica sair impressa no jornal é possível que já se saiba. Ou que nada se saiba e se ande a contar e a recontar os votos para apurar o vencedor. Já foi assim quando o Jorge chegou a presidente pela primeira vez. E então também já se perderam e se encontraram votos onde menos eram esperados. Tal como está a acontecer agora.

A única verdadeira novidade é que estas eleições são tão globais que até Bin Laden, o inimigo mais chegado de Jorge (Bush), veio mostrar interesse e empenho nas eleições americanas. Só faltou dizer ao povo americano: votem no Jorge que é ele quem mais quer jogar comigo ao terror e ao jogo do mais - mais ricos de um lado, mais pobres cada vez mais pobres de outro.

Esta foi a semana antes.

[2. Voos domésticos.]

A meio do seu mandato para que tinha sido eleito, Durão virou as costas e foi para comissário a bordo do Europa. Para lá anda, com seu beicinho ?tem-te que não caias?. Depois de nos ter deixado, como presente envenenado, um projecto de primeiro ministro com um palmarés brilhante na passerelle dos presidentes modelos de câmara. De facto, ele, o Santana, passou ou passeou por duas câmaras de cidades cosmopolitas antes dele e ?altamente? depois dele. Ainda houve quem protestasse e tentasse convencer o nosso Jorge a não aceitar o presidente-modelo. Mas o nosso Jorge foi insensível aos protestos e nomeou Santana Lopes para que este formasse governo. Assim, sem passar por eleições, Santana chegou a primeiro ministro contra todas as previsões mas tendo a seu favor muitas pressões e muita vontade de entrar em qualquer jogo da glória. Até à semana passada, ainda era uma vergonha nossa, um problema domestico, quase privado,

Mas tudo mudou. Santana Lopes foi a Roma assinar a Constituição Europeia aparentemente em nome do governo e do povo português. Para a história, ficará a assinatura a ouro de Santana Lopes nas actas romanas. O Santana está nas alturas. E eu vou, de olhos no chão, assobiando pelas ruas da amargura a disfarçar, para que não me misturem com os farsantes vendilhões do templo de onde não são varridos pela história mal contada.

Resta-me escolher Não quando vier o referendo sobre a dita Constituição. Digo já. Não há qualquer conspiração nisto.

Esta foi a semana depois.


[o aveiro; 4/11/2004]

a garça que caminha

a garça tem olhos inquietos e um corpo suspenso
desajeitadamente reequilibrado com o bater das asas.

o boi tem olhos conformados ao corpo pachorrento.
uma tremura por dentro da pele macia avisa as asas da garça:

podemos caminhar juntos, voar é que não!





desenho, logo existe ...

...preso em seu papel pardo e triste.

as ideias.

eu sou o meu único tormento
e as tormentas por que passo.

eu sou o navegador
que inventa o cabo e o dobra.

da tirania e da cobardia

Ainda sobre as praxes, GRAÇA FRANCO escreve no Espaço Público - Geração Doente . Vale a pena ler, até porque acrescenta algum debate (contraditório?) com uma jovem... cobarde.

Não resisto a transcrever, com a devida vénia:


"Grande Reportagem" de há duas semanas denunciava uma história de terror, dessas que se lêem e não se acredita. Ou melhor, não se quer acreditar. Um jovem - de nome Diogo - quartanista de Arquitectura fora praxado até à morte pelos colegas da Tuna Universitária a que pertencia. O caso a que João Cândido da Silva já se referiu, na sua última crónica, com o sugestivo subtítulo de "Javardos", passou-se em Portugal vai para três anos. Só agora, ultrapassado o doloroso luto, saltou para os jornais, denunciado pela família num justificado alerta contra essa coisa sinistra dos rituais praxistas que continuamos a fingir não ver. Rituais que já começam a invadir o próprio ensino secundário, onde exibem a mesma ou pior violência. Fica assim minada toda a formação da personalidade de gerações inteiras dos nossos miúdos.

A reportagem justificava o editorial de Joaquim Vieira "Cultura rasca". Contra ele escreve violentamente, na edição desta semana, uma jovem socióloga de 26 anos a frequentar o mestrado. Lemos e voltamos a não querer acreditar.

Em sua defesa, e dos da sua geração, a leitora começa por alertar para o seguinte: "os nossos valores são incutidos pela sociedade que foi por vós constituída". Embora o argumento seja lapalissiano só posso concordar e partilhar a culpa na parte que me toca. OK. Posso até concordar com o argumento seguinte: o que se passou não foi "praxe", foi sobretudo um "crime" que a Justiça com a inoperância habitual, exercida por várias gerações (e não por uma única geração como sustenta a jovem), foi incapaz de castigar. E isso é grave. Gravíssimo. Mas, logo a seguir, a mestranda tenta exibir a sua superioridade moral afirmando o seguinte: "Ao invés do Diogo, optei por me impor (sublinhado meu) e recusei participar nas praxes, sem nunca ser posta de parte. Limitei-me a aparecer nas aulas após o fecho das praxes, alegadamente por estar doente. No harm done diriam os ingleses".

Chegámos ao ponto. Posso até admitir que não tinha outra solução senão fugir para não enfrentar o gang acéfalo e maioritário. Nem sempre a fuga é pura cobardia, mas a fuga travestida de colaboracionismo, para gozar dos privilégios inerentes, só pode ter esse nome.

Para esta jovem, que se faz porta-voz de uma geração, "impor-se" resume-se à adopção do comportamento desprezível mas corriqueiro de apresentar atestado médico falso. Estamos entendidos! Fica explicada a tendência compulsiva para a doença falsa e fica-se a perceber melhor por que raio a nova geração de professores, em busca de colocação, pode subitamente surgir tão achacada.

Enfrentar o "sistema", mesmo o mais injusto, dá, no mínimo, muita chatice. Além disso, corre-se o risco de poder ficar à margem do rebanho, sem direito à festa, à borga, aos copos (lá se ia a companhia para as ponchas da Madeira que a jovem académica diz tanto apreciar). E claro, lá se iria também o traje.

Dizer "não", como a minha geração era useira e vezeira, pode sempre trazer problemas ao enfrentar a turba, recusar a humilhação, denunciar, não pactuar com o sistema de abuso abjecto dos mais fracos imposto por uma ordem absurda onde a "antiguidade" é um posto e a burrice assumida premiada na dupla categoria idiota dos "veteranos".

Na minha geração os que "optavam" assim tinham um nome: cobardes, como diriam os portugueses. "Cowards" na versão anglo-saxónica...



nota póstuma

Não o lia há uns tempos. Mas ele escreve recados pela madrugada. De ontem para hoje mudou a hora, mas mesmo assim podemos cheirar a madrugada numa conversa lenta com os amigos. Ouvimo-nos uns aos outros, como se a manhã pingasse.

Rui Bebiano escreveu em sous les pavés, la plage

{duas da manhã e uma r.e.m.-cantiga}


You're on your ear, the ocean's near
The light has started to fade
Your high is timed, you found the climb
It's hard to focus on more than what's in front of you
Electron Blue
Adventure rings with a page and
When it dawns on you,
It sings blue
Your buzz beginning to wane.



Não tem coisa alguma a ver com as canções do r.e.m. que o rui nos lembra; só tem a ver com a minha madrugada e não é mais do que uma prova de vida a nota póstuma que escrevi como comentário.


muda a hora. às duas de qual manhã?

às duas por três, numa catedral aberta,
visito mortalhas em fila de espera
e só ouço o silêncio frio
de um amigo que ressona

sem saber que morreu uma hora mais cedo.




Já agora também gostei muito de ler por lá, citado de cor, Robin Williams: O bom rebelde . No filme - O bom rebelde -, há uma cena magnífica sobre os matemáticos... e eu também costumo citar de cor, mas aqui tenho vergonha. Penso que se trata de perguntar num bar se alguém conhece Theodore Kaczynski. Ninguém conhece o matemático. Depois pergunta-se se alguém conhece o Unabomber. E ....

amalgamar.

Gosto mesmo da entrada caligráfica de amalgamar. E gosto da filosofia de família dos blogs em volta. Obrigado ao Moacyr, que me dá a honra de uma ou outra visita, e que escreve no babel. Este é o primeiro laço deste lado esquerdo com o Brasil, pela mão de Moacyr - o não escritor.

Os meus outros laços com o Brasil estão todos feitos e dados nos arames em que trefilámos o aço da família inemigrada.

Javardos.

João Cândido Silva escreve na sua crónica do Espaço Público um texto que aqui se transcreve e que devia ser motivo de reflexão para todos os responsáveis das universidades públicas e privadas portuguesas.

Javardos
"Diogo está esquecido no WC, junto aos lavatórios. As palavras saíam-lhe dos lábios, sem cor, em sussurros. Quando os olhos dele se enevoaram, como os de um afogado, alguém decidiu chamar a ambulância. No trajecto para o hospital, "Arrepio" ouve as versões dos outros sobre o que se teria passado: "Disseram-me que ele tinha sido praxado, que fizera umas 70 flexões. Pensei: 'Ele se calhar fez alguma e foi castigado.' Mas não liguei as coisas. Os mais velhos falavam de indigestão." Certo e seguro, porque há registos indesmentíveis, é a hora a que Diogo deu entrada no Hospital de Famalicão, a uns metros da universidade, em coma profundo. Eram exactamente 22h51."

Este é um dos detalhes da história trágica e repugnante de um homicídio impune levado a cabo na Universidade Lusíada de Famalicão e relatado pela revista "Grande Reportagem" numa das suas edições mais recentes. A história merece ser lida, sobretudo pelo retrato que dá de um mundo sinistro e mafioso que se esconde por detrás das tradições académicas e da instituição das tunas. Em poucas palavras, os factos indiciam que um jovem aluno de Arquitectura foi espancado até à morte, por razões tão ferozmente frívolas como a circunstância de aparentemente pretender abandonar a sua ligação à tuna daquele estabelecimento de ensino, vontade mal aceite, como se verificou, pelos sicários que integravam a hierarquia da organização.

A violência gratuita provocou uma morte absurda para a qual as autoridades policiais não conseguiram encontrar responsáveis que fossem levados perante os tribunais. E o principal obstáculo para o apuramento da verdade foi precisamente o facto de ninguém, entre os que presenciaram a arrepiante cena, se ter disposto a revelar aquilo que sabe, numa teia de cumplicidades destinada a encobrir um crime grave. Uma universidade é suposta ser um local em que os alunos completam a sua formação literária e humana e de onde sairão preparados para assumir plenamente os deveres, obrigações e direitos decorrentes da sua integração numa sociedade necessitada de quem ajude a zelar pelos valores essenciais que a enquadram. Mas há algo que parece falhar redondamente neste campo.

As tunas, com os seus rituais de praxe, são escolas adequadas para o desenvolvimento de um autoritarismo cobarde, onde vence a mentalidade sórdida dos medíocres, perante a passividade generalizada de quem tem sobre os ombros a tarefa de assegurar a boa qualidade do ambiente em que os estudantes vivem o seu quotidiano. O caso de Diogo será o mais trágico mas não é o único que testemunha os mais diversos géneros de humilhações impostos aos seus pares por tribos que, embora floresçam um pouco por tudo o que são instituições do ensino superior, parecem viver ainda orgulhosamente nos tempos dos homens das cavernas. Pergunta-se: será que ninguém, das reitorias ao Governo, será capaz de colocar um ponto final na livre actuação desta gente que pouco mais merece do que o epíteto de javardos.


Na minha mais que humilde opinião, e, com a sensação de impotência que me assalta no que a isto diz respeito (uma luta aparentemente ganha antes do 25 de Abril e depois perdida em pequenas derrotas todos os anos), proponho que se sentem nos bancos dos réus todos os reitores, professores e outros responsáveis (incluindo os administradores das cervejeiras) cúmplices do crime nas universidades e sejam acusados dos homicídios cometidos pelos javardos que muitas vezes chegam a patrocinar.

E faça-se justiça:
Sejam presos, de preferência em celas onde possam conviver intimamente com alguns desses javardos.

o engano do jorge

não votei em durão barroso, nem no psd e muito menos no cds,
mas reconhecia o db como primeiro ministro do meu país.
não sendo eleito sequer para governar portugal, santana lopes pode assinar uma constituição europeia?

pode. por s.jorge!

em nome do pai

a história:
em nome de portugal e da europa, santana lopes assinou a constituição europeia.

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