em teu nome
que bom vir a ler-te
ainda antes de cegar
escreve-me no teu verso
antes que esqueça
em teu nome
o meu nome.
Vencido pelos votos, votos de vencido.
Desta vez, Cavaco Silva não disse que ia ser o presidente de todos os portugueses como ditava a moda iniciada com a magistratura de Soares. E, em vez disso, declarou que ia ser presidente de Portugal inteiro. E está bem assim. Eu gosto mais assim.
É verdade que eu tenho o direito de exigir a Cavaco Silva que defenda a Constituição da República já que jurou defendê-la tal como ela é, por muito que isso lhe seque a boca. Eu tenho o direito de exigir que, como Chefe do Estado, represente o melhor que souber o meu país, que nos afirme como nação independente, que seja chefe supremo das forças armadas sem as amarrar a guerras decididas por outras potências, sem deixar de as associar a missões decididas por concerto na sociedade das nações. Na Europa. E no mundo. E tenho o direito e o dever de lhe rogar que olhe para e por cada um dos portugueses tal como cada português olhou e olha por ele livrando-o do desemprego. Como garante dos direitos dos cidadãos de Portugal inteiro e não especialmente dos financeiros, banqueiros e demais parceiros privilegiados.
Cavaco Silva é o legítimo Presidente da República. Procurará pôr em prática as suas ideias políticas e eu não deixarei de estar em desacordo com todas as suas decisões que, do meu ponto de vista, são prejudiciais. E não deixarei de desejar que fracasse nos seus intentos em tudo quanto não concordo. Ao mesmo tempo que espero os maiores êxitos para o meu país, mesmo quando ele estiver a ser representado pelo Presidente Cavaco Silva do Portugal inteiro.
Enfim, na altura da sua tomada de posse, aqui deixo os meus melhores votos de vencido. Sem hipocrisia alguma, os melhores votos.
[o aveiro; 15/03/2006]
Passo d'addio
a meus lábios escapou
como ao pé o último degrau...
Espalhou-se a água da vida
e toda a longa escada
é para recomeçar.
Desbaratei-te, amor, com palavras.
Escuro mel que cheiras
nos diáfanos vasos
sob mil e seiscentos anos de lava -
Hei-de reconhecer-te pelo imortal
silêncio.
Cristina Campo; O Passo do Adeus
a namoradinha de organdi
foi a cem por cento da minha capacidade metafórica
mas copiado de livros onde o herói sempre enviuvava
cruzei imensas vezes sob a tua varanda com glicícinas
pensando numa cena infeliz à moda do harold
eu sonhava contigo?
eu assoava-me ao pijama!
Fernando Assis Pacheco; Variações em Sousa
Cifra
Emprestado à negrura.
Serve passivamente
A noite que ilumina.
Raio que não fulmina
A vida que atravessa,
A sua luz termina
Onde outra luz começa...
Miguel Torga; Câmara Ardente
E eu voltei para onde
E eu voltei para onde? Ao rio amargurado
prenderam-no entre as barrragens
de picote a miranda e entre as altas margens.
Pelas escarpas a pulso subi até ter asas aragem e voar
até ser incapaz de mergulhar e ficar preso ao céu aberto
do lugar murado
quando saímos do lugar murado pelo nosso olhar
e não nos lembramos do caminho do regresso
ou não voltamos ou voltamos mas sem memória
e os nossos olhos não são portas por onde passar.
O que é assim tão importante?
Outros dias deixamos que os olhos se espantem em brincadeiras solares e parece que nada podia ser melhor que a pobre vida que levamos ou nada tem mais valor que cada pequena coisa que fazemos ou cada pequeno acontecimento em que participamos com outros, outros iguais a nós. Exaltamos, então, cada ínfima participação nossa na vida comum.
Entre uns e outros dias, vivemos realmente numa corda bamba que esticámos entre dois mastros altos, para cairmos para os fundos escuros uns dias ou para saltarmos, elásticos como somos todos, a cumes luminosos.
Os últimos dias da vida política peneiraram algumas dúvidas.
Preciso de acreditar, para poder concordar e discordar - digo eu. Discordar do que diz o mentiroso é concordar com a verdade que o mentiroso afinal conhece e esconde. E concordar é discordar. Numa floresta de enganos, ficamos sem saber o que é certo e o que é errado e ficamos sem saber quem somos afinal.
E precisamos de saber quem é quem fala. Uma das dificuldades da política é não encontrarmos a política onde ela aparece só fingida. Em muitas alturas, parece-nos que os políticos emprestam voz a funcionários ou técnicos subordinados, e atribuem uma qualidade superior, do nível da decisão, ao parecer por eles produzido para apoiar a decisão. E esperam, dos eleitos políticos, uma aceitação acrítica da sugestão de aparente sabedoria absoluta e insuspeita dos técnicos ou dos cientistas, da técnica e da ciência. Isto é tanto verdade para as ameaças do regresso da co-incineração para o tratamento de resíduos e do nuclear como alternativa para a produção de energia eléctrica, como para propostas constantes de uma qualquer agenda municipal.
Na última semana, a peneira não separou as dúvidas das certezas. Mas deixou vislumbrar algumas pepitas luminosas, alguma esperança solar que só pode ser verdade se assentar afinal na fragilidade humana. Ao espelho, a fragilidade humana é uma força sobre-humana que nos atira para a luz dos dias mais alegres.
[o aveiro; 9/03/2006]
A prenda
Um divórcio na Lisboa oitocentista
publicado pela Livros Horizonte
A nossa amiga Manuela Simões investigou e escreveu. Essa é a melhor prenda.
(Man)Dá-lo já é um excesso.
Obrigado, Manuela.
desenho, logo existo.
Dou por mim a desenhar caras partidas em duas metades nada simétricas. Ou são duas caras que tentam falar uma com a outra? Não tenho forças nem vontade para partir a cara de quem quer que seja. Mas dá que pensar. ¿ Que raio de reuniões são estas? Por onde ando, os dedos riscam até tudo ser escuro e as pessoas ou são tristes ou são duplas. Ou são vidas duplas e... é, por isso, que não são parecidas com quem quer que seja. Nem comigo? Não me sinto bem.
o que se perdeu, onde está?
Assim sendo, não vou recuperar para aqui a tal
apagada semana , vil tristeza .
Não cumpro a promessa, mas indico o caminho para o prometido e muito mais. Que pode ser nada, eu sei!
como quem diz bom dia nem mais
embrulhas-me cuidadosamente na tua teia no mais terno olhar de lã
nada é mais feliz que ver como a madrugada acorda a manhã
como a bafeja à manhã estremunhada que espantada abre os olhos
até que a lua ensimesma na foz da noite e o sol inaugura uma nascente
para o dia que aí vem
dizes tu
como quem diz bom dia nem mais.
perdido como folha de caderno
Há desenhos que ficam perdidos. A folha está lá, mas deixámos de a ver
como uma falha de sentido. Até que um dia ela sustém o vôo até ser vista.
Então, como verso na folha, escrevemos nome e morada. E colamos-lhe um valor
para a viagem. Nervosos, enfiamos a frente e o verso na fenda escura do futuro.
Para que ela vá pelo rio do esquecimento acima e fecunde o longe até ser perto.
o soco no estomago
Nós, por cá, todos bem. Ou, no pior dos cenários, assim assim. Andamos confiantes e distraídos até ao dia em que nos informam que um grupo de miúdos de escola, portugueses numa cidade a menos de uma hora de comboio, persegue até assassinar um homem de 45 anos. E perturbamo-nos enquanto explicamos o que se poderá ter passado nas nossas costas, mesmo à nossa frente, em nossas casas, nas nossas escolas. E assobiamos aos melros, quando cercamos o acontecimento com o arame farpado das circunstâncias do lugar, da natureza da escola e da experiência de vida dos miúdos, da vida específica do adulto morto até tudo ser estranho e estrangeiro em casa. Até tudo ser passado de uma cave da nossa casa que mandámos emparedar.
As nossas famílias, igrejas e escolas, os nossos pais, padres e professores não podem prever todos os comportamentos, favorecendo uns e prevenindo outros. Cada vez menos, na medida em que o desenvolvimento da sociedade se faz acompanhar pela inexorável criação de franjas de excluídos da casa e causa comum em valores e bens essenciais. Os sistemas dizem que desejam a inclusão enquanto gritam pela segurança e constroem muros altos para separar.
O soco no estômago dos últimos dias obrigou à discussão das escolas, das escolas especiais de acolhimento, orfanatos e reformatórios, em particular. Ainda que falsamente, desculpabilizar e desresponsabilizar as crianças e os jovens foi palavra de ordem, desde a educação familiar e escolar até ao direito. Face à perda da inocência e, ainda que aceitando que há meninos que nunca o foram, há políticos a favor de tratamento adulto para os criminosos juvenis. Este é o outro soco no estômago. Esperávamos por ele. Mas ainda dói mais. Ele, por si só, é nada quando quer parecer tudo.
[o aveiro; 02/03/2006]
apagada semana, vil tristeza
Por alguns dias assim foi. Mas ontem procurei-a e nada.
Desapareceu também do arquivo. Desapareceu completamente.
Com tempo, hei-de devolver a'o lado esquerdo o que lhe dei e a máquina insiste em tirar-lhe.
Sentado!
- Senta-te! Vá lá, senta-te! Já estás sentado?
- Estou! Vá lá! Diz o que queres dizer!
- Não sei se o quero dizer. Porque para o dizer, vou dizer-te coisas que não queres ouvir. Embora eu ache que é vital para ti e para toda a gente ouvir a verdade. O que tem faltado afinal é uma política de verdade.
- E tu sabes o que é a verdade? E sabes o que é a política de verdade? Aquela que ninguém tem coragem para explicar e aplicar aos portugueses. Mas...
- Não há mas nem meio mas. Tem de ser.
Ha qualquer coisa de estranho nos economistas e especialistas portugueses que falam de política. Eles sabem qualquer coisa que nunca virão a dizer. Aliás, eles sabem duas coisas. Porque quando estão num lugar do poder estão a fazer o bem possível e quando estão noutro lugar do poder dizem que o bem necessário é coisa que os políticos não têm coragem de fazer. E há sempre um especialista que desmente com números insuspeitos as suspeitas intervenções do outro especialista, que não chega a dizer o que ameaça dizer. Pelo menos, assim parece. Porque da próxima vez que aparece virá anunciar qualquer coisa que nunca foi dita... por falta de coragem.
E o dilema que me sobra é sempre entre escolher se serão mais mentirosos que cobardes ou mais cobardes que mentirosos. Quando estou mais lúcido, pergunto-me se haverá aquilo a que chamam política de verdade. Outras, quando é a cabeça que voa, pergunto-me se haverá verdade ou se a verdade pasta neste prado.
Há dias em que acordo a meio do pesadelo. Depois de comer o verde da verdade, uma manada pisoteia o prado da verdade até não sobrar coisa alguma digna de ser lembrada por esse nome. Há manadas a disputar a propriedade da verdade, como gatos disputam os novelos de que puxaríamos o fio da meada até saber.
A coisa fia mais estranha quando em cena entram cavalheiros especialistas de grandes lombadas do combate greco-romano. Nas suas costas, abre-se um anfiteatro. É então que nós sentimos que há um corredor no ar por onde se voa a direito. E por onde voam os direitos. As palavras normais deixam de existir. Somos obrigados a reconhecer as tonalidades da verdade, porque tanto a virtude como o vício mergulham as suas raízes mais fundo que na metafísica dos costumes traduzida e comentada.
- Estou sentado! Podes dizer!
- Já não digo. Li o que escreveste e fiquei a saber que não acreditas no que eu disser.
- Acredito! Podes crer! Diz lá.
- Se eu te disser que o país está falido, acreditas?
- Claro! Porque não havia de acreditar? Não tens andado a gerir isto?
A verdade é que lá fora chove torrencialmente. Cada pingo dói na minha cabeça.
[o aveiro; 23/02/2006]
a semana que passou
posso nem ter que fazer
mas hoje não vou fazer o que é costume
e vou antes acender um azedume
que me vingue do dia que acabei de perder
se um dia...
ainda que eu não encontrasse mais ninguém
tal dia seria a vida completa e plena
quanto pau a mais que ferro?
No lagoaceiro, guias a água até onde ela se some no leve areal que é onde o milho não sobrevive e a abóbora raquítica e bêbeda da tua água boleca te serve de desculpa para veres pessoas e pernas de cachopas que passem com seus carregos de feijão arrancado pelo pé.
Mal se endireitam as cachopas na voz e é para murmurar coitado do rapaz! Tão mordido está pelas folhas do milho e sem leituras que nem sabe que fazer do entrepernas! Elas conhecem o ferreiro que moldou a pá da enxada, o martelo, as orelhas. Pelo olho da enxada passa a identidade do cavador, o pau do peregrino, o cabo encerado pelo suor e com rugas e calos de gente, um cabo dos trabalhos rasgado pela cunha temperada na celha do lameiro. Elas não conhecem a marca do cavador, o cabo da enxada espetado na cova do ombro, na espreita dormente da presa, os nervos despertos para a vibração da toupeira cega quando cava o seu último túnel.
Escritos para os sons da escrita (audio blog e podcast) da voz e da música de José António Moreira
a mulher sentada
de perna traçada
a mulher sentada
e cabeça na lua
não vê sol nem solidão
ali mesmo à mão
ao cimo da rua
a liberdade passa por aqui perto
O primeiro foi um alarido de fogueiras. Ameaçou disparar à queima roupa contra a minha mão que desenha. O assunto era a indignação de alguns crentes e agentes contra os desenhos do profeta, quando os desenhos do profeta tinham partido a embrulhar coisas menos dignas. Houve quem compreendesse a indignação e até justificasse o fanatismo violento, por razões religiosas que a razão reconhece. E houve até quem achasse merecida a vingança fanática contra os loiros, de direita e xenófobos, que desenharam e publicaram. E, de joelho em terra e em nome de governos que nada publicaram, houve quem pedisse desculpa ao profeta pelos desenhos do profeta. Este assunto atirou à queima roupa. Com a roupa queimada de medo, apesar de não gostar dos desenhos, de os achar execráveis e irresponsáveis, venho aqui defender que, quem assim o decidir, tem o direito de os publicar. E dar-me, a mim e a toda a gente, o direito de criticar, de processar e de desenhar esses artistas em indecorosas posições de rabo para o ar. A liberdade é também a liberdade de reinventar os profetas todos. E de escrevermos que, neste assunto como noutros, ?quanto mais nos baixamos, mais o sangue nos sobe à cabeça?.
Na segunda cena vê-se, em primeiro plano, uma manifestação de calções e apitos entredentes de ouro. Um major reformado de barba branca reaparecia reluzente nos seus calções de amador profissional à cabeça da manifestação de calções. Para os calções e para a televisão, vociferava contra um presidente em retirada estratégica por terras de senhorim e outras nunca dantes visitadas. Que rouquejava ele? Firme? Sentido? Direita volvereeee? Nah! Em sua reserva, o nosso major salivava contra o presidente retirante que não se pronunciara sobre as violações do segredo da injustiça. Aquele é o major árbitro do estado de direito. A norte da cena, a televisão segue um bruxo que, a pé e carregando o fardo da sua cruz, vai até ao sameiro para lançar um mau olhado aos árbitros contra a descida do vitória. E, de norte para o centro da cena, Felgueiras, disfarçada de peregrina vai a Fátima. Fatinha monta uma feira em Fátima: depois de uma missinha, distribui comes e bebes, lencinhos brancos bordados com seu nome e outras miudezas.
O que é que estes assuntos têm em comum? A animação! A animação! Roguei a Deus que tudo isto se passasse com bonecos animados e nós, finalmente acordados, nos pudéssemos rir porque tinha sido tudo fruto da imaginação.
Já não adianta rezar! Os assaltos são reais! O sobressalto é grande. Lá terá de ser! Aceitamos o exorcismo.
[o aveiro; 16/02/2006]
o beijo do ferreiro, a marca
Quando a filha do ferreiro desinfectava a agulha da seringa no álcool ardente e te distraíam até que, em teu delírio, perdesses a vergonha antes que te perdesses na dor, sobrava de ti um afogado em suor, no mar da vergonha e da raiva de te lembrares do pesadelo do delírio.
Na ideia absurda, mas verdadeira, que atazanava os teus cornos de aço, a razão era a tua. A tua razão não tinha que ser razão para toda a gente.
Escritos para os sons da escrita (audio blog e podcast) da voz e da música de José António Moreira
a estrada nacional 109
Uma guitarra e piões em madeira. Bustos de mulher em pedra de ançã de antigas lápides do cemitério,
Melhor me lembro como a minha avó as desfez a golpes certeiros do machado afiado para o outono da lenha do inverno e de todo o ano.
Antes fosse bêbedo meu avô sem arte, sem literatura e sem mistério. Assim ninguém o via quando ele vagueava no seu modo translúcido de uma garrafa para outra de aniz escarchado depois de já ter bebido toda a genebra que havia na aldeia, todo gin e todo o whisky.
Por via dele tinham entrado no comércio local. Por via da minha avó tinham saído, que as proibia à medida que se esgotavam os stocks.
Escritos para os sons da escrita (audio blog e podcast) da voz e da música de José António Moreira
a casa do ferreiro.
Escondido entre pinheiros e incêndios, masturbaste a tua aldeia. Ou foi outra aldeia qualquer? Ou foi mulher que o desejasse e não te desejasse em mais que à tua mão decepada na guerra colonial e logo substituída por um toco de madeira verde para depois ser puída pela tua vida. És uma carícia de pau envernizada. Honesta caricatura de carícia, mas não mais que isso.
Antes assim que peso morto em contentor de chumbo! - dizias tu para quem te queria ouvir. Não sei se acreditavas nisso que dizias. Eu acreditava.
De que me hei-de lembrar? Se a aldeia tal como a conheci nem existe já e as pessoas fugiram a sete pés de lá para fugir dos seus mortos que não páram de as atazanar com as promessas por cumprir e a inveja da vida que levam antes da morte que as leve. A aldeia é a cobrança coerciva de uma dívida que nunca existiu senão como sentimento de culpa pelos gatos que se afogaram cumprindo ordens ou outras maldições menores tais como pecados mortais que não matavam, da cobiça da mulher alheia, da inveja e da preguiça. Os outros nomes dos pecados nem sabíamos o que queriam dizer. Como podíamos cometê-los? Devo dizer que ninguém cobiçava a mulher alheia que para ali estava como se não estivesse neste mundo. Nós só pensávamos que era maldade da parte de Deus não a ter levado quando era um anjo leve e não aquele peso que a aldeia inteira não conseguiu carregar aos ombros nem ninguém consegue contar o que a aldeia fez para a levar até à cova. Estavam lá todos e ninguém se lembra. Não é estranho?
Escritos para os sons da escrita (audioblog e podcast) da voz e da música de José António Moreira
missa romana
Ossessi
alla porta
nel profumo di peste
mimano e vendono con lazzi
agli enfermi e deformi
della probatica
vasca
la sua soave maschera di suppliziato.
Cristina Campo. Passo d'addio quadernetto
Anjos de orelhas quentes
A agenda política é marcada por pessoas que não são anjos. De acordo com os seus interesses, ouço as pessoas concordar e discordar dos assuntos postos na ordem do dia pelos jornalistas ou pelos políticos. Cada um lamenta à sua maneira que a fruta da época não seja a sua fruta preferida, que é o mesmo que dizer que lamenta que a época não seja a sua época, para todo o sempre.
Há assuntos, como os casamentos de homossexuais, sem época propícia à discussão dada a quantidade, a qualidade e a gravidade dos outros problemas de sempre. O que é o mesmo que dizer que as pessoas que o protagonizam não existem ou que, existindo, são um problema artificial a desviar a atenção dos políticos do fundamental para o acessório. O fundamental é coisa que ninguém conhece mas pronto a aparecer, sempre que preciso for.
E lamentamos todos que as agendas sejam contaminadas pela excessiva divulgação dos casos capazes de mobilizar espectadores, ouvintes ou leitores. Lamentamos,... enquanto tratamos os problemas por tu, os classificamos e, com a maior serenidade e urgência que a vida exige, os resolvemos. Não é boa política, na base de uma qualquer lista de prioridades, esconder problemas e pessoas sob o tapete que amortece o sapateado dos especialistas em passos perdidos.
Como não é razoável que se amplifique, em importância política, a denúncia de um jornal diário, sobre "escutas". Tanto mais que, passado algum tempo, a montanha de audiências e declarações dos políticos pariu um rato digno desse nome e perseguido por supostas secretas socráticas pouco secretas ou controle governamental sobre a "ordenação" dos processos-crime a conduzir. Escuta quem tem as orelhas a arder das escutas.
Da agenda dos anjos alados não consta qualquer debate sobre o sexo dos anjos ou sobre a hierarquia dos assuntos. Com suas plumas caprichosas, os anjos da época desenham uma forma de lei onde cabem todos, livres e iguais. Porque os anjos não emprenham pelos ouvidos. E eu também não.
[o aveiro; 09/02/2006]
pesa-espiritos
para que te levantas? a tua mãe sussura
na sua voz velada de almas penadas que bocejam
nas noites mais doentias como nascentes
de rios do pânico em que dás por ela penando
dás por ela? não te perguntava a tua mãe
outra coisa enquanto a casa ruía sob a chuva
e tu vestias uma cara de fazer caso, uma cara
de meter medo, de meter o medo no buraco da noite
onde dás por ela ao dar pelo bafo da besta adormecida
aos teus pés
se reparares bem são os teus pés fincados na lama
quem te segura enquanto vigias a fala da tua mãe
o funil da loucura mais divertida dás por ela espelhada
nos seus olhos marotos quase cerrados.
para que te levantas? há tanto tempo não sais de casa,
do buraco onde vives amarrado ao bloco de notas
raptado pelas almas que voam em volta das palavras
que já disseste e ninguém ouviu.
DOIS.
há sempre quem jure que me viu na rua
ou que sabe que passo o dia numa escola pública
onde supostamente dou aulas
não sou capaz de desmentir quem está pronto a jurar
citando mesmo o que eu disse em tal dia e a condizer
com a roupa que trazia vestida para a ocasião
nem eu mesmo sei porque é que as pessoas dão por mim
se é certo que não vou a lugar algum fora daqui
vai para muitos anos de falsas partidas.
TRÊS.
para que te levantas tu? se nem os olhos consegues abrir,
se as tuas noites foram pisadas por toneladas de dias sem lua,
se os teus dias dão abrigo a almas sem abrigo e torturadas,
se nem sabes sequer das tuas pernas ou como pesar-te
porque te esqueceste dos protocolos de alquimista
que foste num passado em que usavas pesa-espíritos
com a desenvoltura da tua imprudência.
Onde o que parece é  
Olho para os estudantes a manejar com naturalidade, aparente negligência ou à vontade, ferramentas que eu reconheço como fim de linha de uma produção humana de milhares de anos. Olhar para eles, olhando para mim. E ver, sem ver, uma aula em toda a sua pequenez cercada por quatro paredes de dúvidas e em toda a infinita grandeza do espírito humano sem fronteiras.
Vivem-se momentos de puro espanto quando tomamos consciência da infinita potência destes infinitamente pequenos acontecimentos. E deixo então que me assalte uma arrogância irracional, um desprezo irracional pelas pequenas coisas, pelo que está fora desta deambulação espiritual de funâmbulo na corda da matemática humana, exclusivamente humana.
E quase esqueço os discursos que são para as ocasiões, para serem soletrados em cada um dos nadas que é preciso sublinhar para sublimar o vazio que aflige as maiorias, para mascarar de decência a falta de pudor.
Nesta paragem do tempo no infinito da sala de aula, nada nem ninguém me pode negar o momento da paz, da harmonia com um pequeno mundo de olhares humanos em harmonia completa e comprometida, mesmo que inconsciente, com este presente do mundo passado. E em harmonia com o futuro que vive da fé infinitamente grande nos homens e nas mulheres em busca, em mudança, em metamorfose.
Nada vale a pena se isto não valer a pena! Uma aula de limites, de infinitamente pequenos pormenores, pode ser o acontecimento mais importante de que vale a pena deixar testemunho, como prova de vida, numa semana como esta.
[o aveiro; 2/2/2006]
41 assaltos
Um dia,
no Parlamento,
um professor de Finanças de duas Universidades
que ganha como primeiro ministro,
declarou,
a propósito de um aumento de salários dos professores,
que tinha vergonha de ser professor.
De todas as declarações do primeiro ministro
considero ser aquela
a mais séria e verdadeira.
Escrito ao tempo dos meus quarenta e um ou dois anos. Não sei que escrever agora em homenagem ao multireformado de banco de portugal, universidade, primeiro, etc e presidente. Nem isso interessa.
elegância da pequenez
ficam a pairar no ar e, por longos momentos, antes de cair
sentem que a realidade se imobiliza e sustém a respiração.
E há mulheres tão finas que passam entre os pingos de chuva.
Como juncos, abrem asas aos braços do vento e voam. Entristecem
ao perder de vista as fitas dos chapéus que pesam para o chão.
as cores
escondo as cores porque bem me sabem... de cor
e quero sussurar-te a cor do sono em teu regaço,
no corpo a corpo, saborear a cor do teu abraço
e morder o toque de seda da ternura, a cor do amor
GEOMETRIA : A curva do ingénuo revisitado (geogebra)
GEOMETRIA : A curva do ingénuo revisitado (geogebra) : Revisitamos "31 de Janeiro de 2005" de entrada ligada a texto de setembro ...
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Nenhum de nós sabe quanto custa um abraço. Com gosto, pagamos todos os abraços solidários sem contarmos os tostões. Não regateamos o preço d...
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eu bem me disse que estava a ser parvo por pensar que só com os meus dentes chegavam para morder até o futuro e n...