o canto chão

Várias vezes ao dia, passo ao lado do que foi a Pizzaria Parque. Para trás dela posso ver um pequeno bosque que ladeia uma bela rua interior e sossegada do meu Bairro de Santiago. No Bairro de Santiago, há vários lugares simples e magníficos - alguns deles da iniciativa de moradores que dão vida a jardins inesperados, outros da iniciativa da autarquia.
Várias vezes ao dia, passo ao lado do que foi a "Pizzaria Parque". Para trás dela posso ver um pequeno bosque que ladeia uma bela rua interior e sossegada do meu Bairro de Santiago. No Bairro de Santiago, há vários lugares simples e magníficos - alguns deles da iniciativa de moradores que dão vida a jardins inesperados, outros da iniciativa da autarquia.

Vimos crescer as árvores do pequeno bosque. Tempos houve em que dávamos a volta por lá para ir propositadamente até à "Pizzaria Parque". Por puro prazer, por lá ficávamos muitas vezes a ouvir a babel de Santiago. Não precisávamos de perceber as palavras soltas naquela grande esplanada aberta. Em alguns dias, juntavam-se famílias inteiras batendo palmas e cantando. Pareciam-me toadas dolentes, gritos de paixão ou desesperadas renúncias que contadas para a brisa da tarde esconjuram todo o mal de que elas falam quando falam dos outros em vez de nós. E, não raro, alguém deixava o corpo ondular levado pela marcação ritmada das mãos até à volúpia dos braços apontados ao céu ou desencadeado pelos pés impacientes por rasgar de sons o chão sagrado.

Nunca soube porquê, mas esses puros momentos da nossa comunidade de Santiago foram interrompidos. E a partir dessa perda, nunca mais parou a degradação do lugar até ser um lugar de olhos vazados pelo abandono. Mais triste não pode ser. Mais triste ainda me parece por ter sido terra de alegria colectiva.

E vejo-me a pedir aos poderes deste nosso pequeno mundo que decidam pela criação de novas áreas verdes, mas também pela preservação dos jardins existentes com recuperação e salvaguarda dos equipamentos de apoio. Grandes obras? Queremos só pequenas grandes decisões para proteger o quotidiano com garantia da liberdade e apoio às expressões culturais das comunidades. Naquele lugar de Santiago, há palcos, há campos de jogos, há escola, há biblioteca, há centros de apoio e acolhimento, há... vida a conservar.

Caminhos sem obstáculos para andar, ar para respirar, cores naturais para olhar, bancos para descansar, ler e conversar - esta é a lista dos pedidos. O que pode ser mais importante? Queremos ser vistos a dar a volta ao nosso mundo, em cada um dos nossos lugares de cada uma das nossas freguesias.


[o aveiro; 11/05/2006]

a dobra do tempo




chaminés




o lugar no tempo

Representando o Bloco de Esquerda, estou na Assembleia Municipal. Lá, não optei pela truculência e tenho de admitir que não consigo argumentar por argumentar para o máximo de impacto, nem consigo interromper os outros e o trabalho da Assembleia até chamar a atenção para as posições do Bloco e para as minhas opiniões. E convivo muito mal com ofensas vãs. Levo a sério o que me dizem e a falta de respeito ou as ofensas pessoais num debate diminuem-me. Olho para trás, para outros lugares, tempos e combates e sei que não sou tão sensível como aqui apareço. Então o que aconteceu?

Talvez por ser educador e professor, tenho sérias dificuldades. Não consigo participar em debates de maneira diferente (e muito menos contrária) daquela que defendo junto dos jovens com os quais trabalho. As regras de argumentação nos debates e nas apresentações são mais que instrumentos formais na educação. Para os educados, tais regras nem carecem de estar escritas.

Para além disso, há o espírito do lugar. Naquele lugar, não me permito "performances". Não é de esperar que, naquele lugar, a democracia e a liberdade sejam ameaçadas de forma consistente. E os debates podem conduzir-se nos limites das diferenças de opinião, da discordância frontal face a decisões e intervenções de outros, da denúncia do que se considera errado (ou mesmo criminoso) e da aceitação de propostas alternativas.

Nunca tinha sido claro para mim que a simples memória do aniversário da revolução de Abril de 1974 desse pano para mangas numa Assembleia que não podia existir antes e existe depois dela. Escrevi: existe depois dela. Não escrevi apesar dela.

Para mim, e disse-o na Assembleia para efeitos da participação democrática, 'o antes' do 25 de Abril foi nada e 'o depois' foi tudo. Porque antes eu não podia participar livremente e toda a minha vida era 'contra' ou 'obediente e cega'. Porque depois eu trabalhei, participei, escolhi representantes, falei, gritei, escrevi, tomei decisões boas e más. Posso criticar os que tiveram mais responsabilidades e posso nem lhes perdoar. Posso denunciar o mal que fizeram. Posso ser responsável e responsabilizar. E posso reconhecer que ficámos longe de cumprir o Abril possível em justiça social e solidariedade verdadeira e mesmo em democracia participada e viva.

Que lugar é a Assembleia Municipal?

[o aveiro; 4/5/2006]

recebi uma carta pelo correio

"O homem finge em relação ao amor,
quando o que procura é ... sexo.
A mulher finge em relação ao sexo,
quando o que procura é ... amor !!"

(Enrique Rojas)

É? - respondo eu.

beijar a boca do dia

Caminhavas rente à madrugada. Entre os vinte e os trinta anos, bastava a tua sombra para te assustar. E uma folha de papel furtiva que transportasses era uma tonelada de medo a ser movimentada pela grama de coragem que voava à tua frente.

Caminhavas rente aos muros arrastando um pincel de sono e sonho, vermelho e amarelo, branco e preto. Escrevias cartas curtas sem saber quem as iria ler. Com a fadiga própria das noites longas, abrias os teus olhos de mocho mudo no beco e escrevias a carta necessária que mais valia ter ocupado rua onde passasse gente. Pensavas que era triste esconder a carta de amor no beco e pensavas que se fosses apanhado no beco não tinhas por onde fugir. Mas não deixavas de fazer esse gesto de amor, o mais irracional de todos.

E, mal rompia a manhã, lá te levantavas para o trabalho aos olhos dos vizinhos e dos colegas e encenavas a alegria de estar vivo. A alegria de estar vivo. Como hoje? Lembras-te da música das marchas que assobiavas nas manhãs sujas? Ainda hoje te perguntas: Se eras tão medroso como dizes que eras, porque assobiavas aqueles desafios?

Passaram tantos anos e a fadiga da idade reduz-te a passada de todos os dias. Nunca houve fadiga na tua liberdade.

Há uma irritação surda com todos os que se penduraram na boleia da liberdade (que não lhes custou a ganhar, embora já tivessem idade para fazer por isso), e dela fizeram carroça da fortuna, do poder e da glória mais vã. Passeiam-se em liberdade, fazendo gala da boçalidade e da imbecilidade mais atrevida contra a liberdade dos outros, dos que dela mais precisam. Porque sabem que só há liberdade a sério quando houver a paz, o pão, saúde, habitação... que era letra de canção e é ainda em grande parte... promessa por cumprir.

Quando a guerra acabou e a vida se tornou um rio de pura euforia, a alegria breve do amor fez-se eterna e murmuraste a terna promessa de que tudo quanto era bom podia ser possível. E, com liberdade, beijaste a boca dos dias.

Já avô e ainda podes mostrar a marca perene do beijo que guardaste do 25 de Abril de 1974. Que mais queres? Tudo o que era Abril e não era sonho. Tudo de tudo.

[o aveiro;27/04/2006]

fruta da época

Quando dou por mim a escrever, nunca imagino que tenha de seguir algum caderno de encargos feito por terceiros que têm as suas prioridades legítimas, as suas preferências legítimas, as suas esposas legítimas, etc. Também não acho que tenha de seguir à lupa a actualidade que o parece ser e parece fugir.

Para mim, podem ganhar força de actualidade, a constituírem encargo para palavras minhas, assuntos que a mais ninguém interessam. Nos tempos que correm, a actualidade não existe em rigor. Um jornal, um grupo económico ou editorial (nem sempre são coisas diferentes), um canal de televisão ou um partido pode criar uma actualidade que pode não ser senão a artificialidade conveniente a um qualquer propósito quase sempre inconfessável.

Nestes últimos dias, há vários assuntos que são falados ou soam a falados. Frequentemente nem assuntos dignos de nota são, até porque não são mais que palavras, anúncios de anúncios, podem não passar das palavras aos actos e ser passos em falso. Há quem me acuse de não dar aveirística atenção a tão magnos assuntos. Não dou para esses peditórios.

Jornalistas há que até nos perguntam sobre pormenores dos assuntos que os "pormenorizadores" encartados têm de inventar por os não conhecerem. Não gosto de escrever sobre cenários que um professor alinhava do mesmo modo que classifica ministros com notas entre 8 e 12, debita o tamanho das bolas do estoril aberto, folheia o livro das memórias da razão de um novelo da linha, notícia nacional de estrangulamento ali aos cabos ávila. Nada me diz a actualidade propagandística do governo autoritário e servil, ou a do governo local que anuncia num dia o anúncio do dia seguinte ou a de algum facto político desejado pelo protagonismo da oposição a coisa nenhuma.

Outros que falem dos novos pecados, da regionalização encapotada e da vantagem da cidade dos doutores e cantores (e de ditadores também, claro), do juízo perdido entre cidades ip5, da demissão do polícia que devia ser a do ministro, das lições a tirar da manga e da magna carta da educação do "tory blair", etc.

Eu escrevo a respeito do nada, comentando a actualidade do relatório de um tempo passado sem presente.

A actualidade pinga da dentada na polpa da fruta da época e obriga-me a uma vénia.

[o aveiro; 20/04/2006]

a sede

Pudesses transformar-te até seres
em meus lábios como a água é a saliva
e formando o rio que corre e morre
como eu hei-de morrer para tu viveres
afogada na minha sede mais viva.

o dia do meio

Hoje mais do que nunca, estou em dia do meio que é dia nem sim nem não, como se me tivessem encolhido a história do passado e me ameaçassem com uma história sem futuro.

Há arautos dispostos a anunciar que o fim da época de ouro em que vivemos está próximo, embora a maioria nunca tenha dado pelo ouro da época. Falam do fim, do fim da assistência na doença, do fim da segurança social, do emprego, do subsídio de desemprego, do fim de todos os serviços universais e essenciais para os quais há estado providência. Falam do fim.

Um porta-voz há-de vir dizer que estão a ser egoístas os que querem manter o emprego estável e com direitos ou que apelam à solidariedade social intergeracional e acrescentam às empresas papel social ao papel cotado em bolsa. O porta-estandarte dirá que quem luta pela manutenção do seu posto de trabalho, combate a flexibilização das leis laborais ou exige o pão nosso de cada dia está a estrangular o desenvolvimento económico e a pôr em risco o futuro dos filhos do futuro.

O mesmo dizem das organizações e partidos que, fora do circo do poder económico, procuram os olhos das pessoas reais e, sem os evitar, defendem as crianças de hoje enquanto exigem a modernização da economia sem o sacrifício dos que comem para trabalhar, produzindo sempre mais do que comem. Sabe-se hoje que a tragédia da nossa economia não foi nem é criada pelos trabalhadores e produtores e muito menos pelo seu egoísmo e incapacidade de adaptação, antes é criada pelo egoísmo e voracidade do capital que não quer ser produtivo para ser só financeiro e, vidrado pelo lucro fácil de cada dia, está incapaz de se ver como capital humano e social.

A modernização do tecido empresarial e económico só pode ser feita pela instauração da lei da selva cotada no mercado que não respeita nada nem ninguém do dia de hoje? Dizem os porta-notas que a libertinagem capital e o desenvolvimento económico vai criar obrigatoriamente novos postos de trabalho a compensar os sacrifícios exigidos ao presente.

Contra a invenção da solidariedade sacrificada ao futuro sem compromissos com o presente e a acusação de egoísmo lançada contra todos os presentes levanta-se um pequeno senão: os trabalhadores também amam os seus filhos hoje e eles precisam do pão nosso de cada dia.


[o aveiro;13/04/2006]

porque...

(...)
Porque, abstraindo da necessidade de autoconservação, a qual por si não é susceptível de fundar nenhum dever, é dever do homem para consigo próprio ser um elemento útil para o mundo, porque isto também faz parte do valor da humanidade na sua própria pessoa, valor que ele não deve, pois, desdignificar.
(...)

[Kant]

o fado

ontem perguntaram-me: que se faz por aí? e eu respondi: olho para a letra de um fado. do outro lado escreveram: lindo! e eu: não sei. só sei que é triste e não é o meu.
pode ser triste e lindo? talvez, mas dei por mim a ficar triste com a beleza da tristeza.
hoje perdi muito tempo a procurar um romance que anda a ser lido lentamente e se deixou ficar distraído num envelope triste e, sentado na minha capela privada, descobri que não olho para as coisas, preferindo a sombra das coisas. nunca desenharia uma toalha pendurada, mas imagino-me a desenhar a sua sombra no chão, talvez um pormenor da sombra. vejo-me a decorar sombras, a criar um registo de memória de sombras para os desenhos.
nada do que é real me interessa? e a verdade?
eu busco a sombra de cada coisa e de cada ente e entidade. a identidade está na impressão digital. no desenho. na sombra. melhor será dizer que nem busco - desenho as sombras que se atravessam no meu caminho, no meu tempo.

o meu pai nem voltou

Numa pequena falha de chão do Brasil
parte da minha alma caíu do norte alto até morrer.

E se sobra alma ainda, ela vagueia roendo palavras
e cuspindo as cascas das últimas sílabas de despedida.

Porque alguém incendiou um pavio em petróleo barato
e ferveu o vidro da chaminé
A alma arde como ardem as asas da borboleta
traída pela luz

Pelo instantâneo clarão, pelo soluço da noite e pelo cano do susto,
o que sobrar da alma cai na vertical
até ao ígneo centro da terra

onde o inferno estava no tempo em que o diabo
me segredava ao ouvido.

O estado da arte

Encontrar um português que não tenha um familiar emigrado é praticamente impossível. Na minha aldeia, falava-se de pessoas no Brasil, nos Estados Unidos, na Venezuela, na França e na África, claro. Famílias inteiras ou pessoas isoladas, a salto, de comboio, de barco a vapor, de avião, com carta de chamada, com contratos e sem contratos, com documentos e sem documentos,... eles lá iam. Para nós, iam iguais no segredo das partidas, das dolorosas e medrosas aventuras. Muitos deles não voltavam ou voltavam tanto tempo depois que nem os conhecíamos e ouvíamos falar de cidades estrangeiras onde havia mais portugueses que nas nossas cidades. Encontrar um português que não tenha tido um familiar e amigo indocumentado em terra estrangeira é encontrar uma alma estranha, um extra-terrestre, um desmemoriado.

Por isso é que me é tão estranho ouvir como falam alguns responsáveis a respeito dos imigrantes e das políticas de imigração. Soam mal aos meus ouvidos todos os maus tratos e toda a sobranceria com que se fala das autorizações de residência, do trabalho sem garantias, etc, ou se fazem observações judiciosas sobre pedidos de asilo e sobre o estatuto de refugiado que, sem outra esperança, os imigrantes (económicos) chegam a pedir.

Vimos como muitos trabalhadores estrangeiros, ao serviço das grandes construtoras, saltaram de um para outro estaleiro escapando de uma inspecção incapaz e cúmplice. Sabemos que muitas obras públicas foram feitas com trabalhadores estrangeiros, indocumentados, em situação irregular. Muitos patrões e também responsáveis políticos acharam esta situação muito conveniente: mão de obra barata e não reivindicativa, trabalho sem garantias, trabalhadores descartáveis de que se livrariam com ameaça de deportação. Ilegais! Os trabalhadores ou os mandantes?

Damos pouca importância aos tratamentos degradantes a que sujeitamos os nossos imigrantes. E todos os dias, há pequenas notícias de incidentes de legalidade, de intervenção despropositada de autoridades, agentes e serviços, em choque com trabalhadores imigrantes.

No Canadá, há portugueses que chegaram a pedir o estatuto de refugiados. Leram bem: refugiados! O governo conservador do Canadá não cedeu aos pedidos e deportou os portugueses. Um jovem veio dizer que o seu governo tinha outros problemas, outras prioridades. Os nossos jovens velhos conservadores fariam o mesmo se pudessem. Enquanto vão dizendo que isso não se faz... a portugueses. Não?

[o aveiro; 30/03/2006]

em 1947

em 1947, em duas abriu-se minha mãe para que eu passasse por ela até fora dela e continuasse o meu caminho. algumas vezes depois disso, lembrei-me de ter feito esse caminho. e também me lembro de arrepender-me de o ter feito, de não ter voltado para trás. faço as vezes, às vezes. em que ano nasceste? ainda pequeno, como sempre fui, respondia: 1948. porque nasci estava 1947 a acabar e acabar com ele ainda vá, agora começar com ele pelas horas da morte!...
há encontros ou recontros que nos separam do passado e nos fazem desejar não ter nascido ou insinuam o desejo de desnascer ou o desejo de nascer para outro desejo... de nascer ou morrer. para outra forma de ser. para outra maneira de ser. para ser noutra forma, noutro molde. para ser de outra maneira. para ser de outra. para ser outro. para ser ou. para ser. para. p.
em 1947 abriu-se minha mãe em duas. deu-me à luz e a luz não me aceitou. quando abri os olhos para a luz, foi a luz quem me cegou. é por isso que faço sempre os mesmos caminhos, rente aos muros, guiado pelo cheiro das sombras.
ouço à minha frente, um tac-tac, o tacto da sombra da bengala de sombras.

com a idade

É verdade que custa bastante levantar-me depois de me ter baixado para procurar o meu lado direito. Ando a esforçar-me para simplificar a coisa e é por isso que desaparecem da nossa vista algumas partes. O que me aparece num computador, noutro não aparece.
Eu? Nem triste, nem alegre. Resignado.

com a idade

Ao contrário do que dizem que acontece, é o meu lado direito que desaparece (ou cai lá para o fundo) enquanto ando para velho.

Onde é que fica a França?

Na televisão de segunda, ouvi um comentador falar da situação em França quando chamava a atenção para dois aspectos das actuais movimentações.

Do lado dos trabalhadores e dos sindicatos, o movimento está a ser dirigido pelos católicos e suas organizações, tradicionalmente consideradas próximas das políticas dos governos e disponíveis para assinar acordos. Claro que ele não acusava o erro fundamental do governo que quer libertar os patrões de qualquer explicação, justificação ou responsabilidade quando despedem um jovem durante os seus primeiros dois anos de trabalho e criam, por essa via, um a bolsa de mão de obra sem direitos disponível como pau para toda a obra. A sua atenção ficava presa a eventuais falhas na comunicação e de concertação do governo francês com os parceiros sociais.

Do lado dos estudantes, o movimento está a ser dirigido pela esquerda estudantil. Chamava a atenção para o aumento do abandono escolar e, em particular, para os números a provar que os últimos anos de governação tinham feito descer e muito a percentagem de estudantes oriundos das classes trabalhadoras nas grandes escolas superiores francesas. Ao referir estes números, não falava do erro que é o empobrecimento das políticas sociais que, ao contrário do que alguns analistas afirmam, são responsáveis a longo prazo (e não só no curto prazo) pelo agravamento das desigualdades sociais, pelo abandono escolar, pela exclusão social. E apontava medidas correctivas de pequena política para a política do grande erro.

Uma analista de um jornal de domingo também vinha alertar estes jovens (manifestantes a desempregar) que mais vale aceitarem já o destino tal qual lhes é proposto antes que falte tudo para toda a gente. Acusava a geração anterior (de Maio de 68) de ter delapidado tudo o que havia, a seu favor, esquecendo estes seus vindouros filhos e netos. Diga-se que, em boa verdade, os manifestantes e grevistas franceses não passam de maus exemplos para os portugueses. Não disputam, por enquanto, os diamantes lapidados e as frases lapidares destes analistas lusitanos presos pela barriga à mesa do banquete.

Mas já inseguros, os analistas pedirão mais dinheiro para mais polícia ou para uma rede de capoeira que os separe dos excluídos, esses que teimam em invadir as confortáveis salas de estar destes analistas de bem-estar, bem-pensar e cacarejar.

O canto das sereias portuguesas é uma seca mas é rico do ponto de vista nutritivo e deve ser tomado pelas orelhas. Para os trabalhadores são bem-aventurança dormideira, ópio do povo.

Há outros que dizem para quem os quer ouvir: Até os comemos! a pensar nos rabos de peixe ... das sereias portuguesas.

[o aveiro; 23/03/2006]

vais no vento

vais no vento -
ainda que presa, como bandeira
no mastro improvisado da bateira,
soltas-te ao vento

e eu, -
ainda que em pés de afogado,
pé ante pé, vou ao teu lado
subindo ao céu

quem morreu?
por quem toca o sino?
alguém sabe? homem ou menino?

e já foi minh'alma quem respondeu:
fui eu! fui eu!

que mais queres tu de mim?

Tu aprendes-me e eu aprendo-te. Tu ensinas-me o que eu te ensino. Há um elástico invisível a esticar-se entre os nossos corpos. Quanto mais o esticamos mais ele nos atrai um até ao outro.
Tu falas e eu falo. Eu ouço-te e tu ouves-me. Penduradas nas cordas da nossa roupa, as palavras oscilam ao vento. Antes de me atingirem, as palavras passam pelos lugares da tua roupa. Visto-te, enquanto me dispo. Puxo a corda da roupa para o meu lado, para nela pendurar as palavras que vestia. Estico a corda. Puxas a corda. Despes-te enquanto me vestes.

Apareces. Puxas o lençol para o lado em que o colchão guarda o molde do teu corpo, o meu lado esquerdo. Acordo com frio e percebo que vieste. Não te chamo. Deixo-me deslizar até ao lugar do teu corpo para não morrer de frio. Empurras-me para eu adormecer no meu lugar. E assim sei quem sou.
Se desapareces, vejo-te mais nitidamente.

Se eu desapareço e podes deixar de ver-me, que mais te posso dar?
Que mais queres tu de mim?

em teu nome

todos os dias digo
que bom vir a ler-te
ainda antes de cegar

escreve-me no teu verso

antes que esqueça
em teu nome
o meu nome.

desenho, logo existe




Vencido pelos votos, votos de vencido.

A boa educação na nossa democracia representativa tem obrigado o vencedor a declarar que vai representar apoiantes e adversários de igual modo. Os vencidos bem educados declaram aceitar a derrota e endereçam parabéns e votos de bom exercício aos vencedores, rogando a estes que cumpram o que prometeram e defenderam durante a campanha eleitoral, mesmo quando acham que eles defendiam o errado e o prejudicial. Para o bem de Portugal de aquém e de além, continente e ilhas. Assim tem sido.

Desta vez, Cavaco Silva não disse que ia ser o presidente de todos os portugueses como ditava a moda iniciada com a magistratura de Soares. E, em vez disso, declarou que ia ser presidente de Portugal inteiro. E está bem assim. Eu gosto mais assim.

É verdade que eu tenho o direito de exigir a Cavaco Silva que defenda a Constituição da República já que jurou defendê-la tal como ela é, por muito que isso lhe seque a boca. Eu tenho o direito de exigir que, como Chefe do Estado, represente o melhor que souber o meu país, que nos afirme como nação independente, que seja chefe supremo das forças armadas sem as amarrar a guerras decididas por outras potências, sem deixar de as associar a missões decididas por concerto na sociedade das nações. Na Europa. E no mundo. E tenho o direito e o dever de lhe rogar que olhe para e por cada um dos portugueses tal como cada português olhou e olha por ele livrando-o do desemprego. Como garante dos direitos dos cidadãos de Portugal inteiro e não especialmente dos financeiros, banqueiros e demais parceiros privilegiados.

Cavaco Silva é o legítimo Presidente da República. Procurará pôr em prática as suas ideias políticas e eu não deixarei de estar em desacordo com todas as suas decisões que, do meu ponto de vista, são prejudiciais. E não deixarei de desejar que fracasse nos seus intentos em tudo quanto não concordo. Ao mesmo tempo que espero os maiores êxitos para o meu país, mesmo quando ele estiver a ser representado pelo Presidente Cavaco Silva do Portugal inteiro.

Enfim, na altura da sua tomada de posse, aqui deixo os meus melhores votos de vencido. Sem hipocrisia alguma, os melhores votos.

[o aveiro; 15/03/2006]

Passo d'addio

Amor, hoje teu nome
a meus lábios escapou
como ao pé o último degrau...

Espalhou-se a água da vida
e toda a longa escada
é para recomeçar.

Desbaratei-te, amor, com palavras.

Escuro mel que cheiras
nos diáfanos vasos
sob mil e seiscentos anos de lava -

Hei-de reconhecer-te pelo imortal
silêncio.


Cristina Campo; O Passo do Adeus

a namoradinha de organdi

Como na dança ritual dos patos colhereiros se te amei
foi a cem por cento da minha capacidade metafórica
mas copiado de livros onde o herói sempre enviuvava

cruzei imensas vezes sob a tua varanda com glicícinas
pensando numa cena infeliz à moda do harold

eu sonhava contigo?
                                       eu assoava-me ao pijama!

Fernando Assis Pacheco; Variações em Sousa

Cifra

A imagem é o clarão
Emprestado à negrura.
Serve passivamente
A noite que ilumina.

Raio que não fulmina
A vida que atravessa,
A sua luz termina
Onde outra luz começa...


Miguel Torga; Câmara Ardente

E eu voltei para onde


E eu voltei para onde? Ao rio amargurado
prenderam-no entre as barrragens
de picote a miranda e entre as altas margens.

Pelas escarpas a pulso subi até ter asas aragem e voar
até ser incapaz de mergulhar e ficar preso ao céu aberto




do lugar murado


quando saímos do lugar murado pelo nosso olhar
e não nos lembramos do caminho do regresso
ou não voltamos ou voltamos mas sem memória
e os nossos olhos não são portas por onde passar.




O que  é  assim tão importante?

Uns dias deixamos que os nervos nos levem para os cantos mais escuros da tristeza. Nesses dias, a boca fica azeda e as palavras que dela saem são azedas e sem cor. E é também nesses dias que queremos mudar de vida como se não fossemos nós também culpados dos dias que vivemos. Como se não fossemos nós quem tem pernas para andar e sair do canto escuro e azedo. Nesses dias azedos e escuros, chegamos a pedir que nos empurrem para o fundo da vida ou, sem forças, que nos carreguem para fora do buraco onde nos trancámos em azedume.

Outros dias deixamos que os olhos se espantem em brincadeiras solares e parece que nada podia ser melhor que a pobre vida que levamos ou nada tem mais valor que cada pequena coisa que fazemos ou cada pequeno acontecimento em que participamos com outros, outros iguais a nós. Exaltamos, então, cada ínfima participação nossa na vida comum.

Entre uns e outros dias, vivemos realmente numa corda bamba que esticámos entre dois mastros altos, para cairmos para os fundos escuros uns dias ou para saltarmos, elásticos como somos todos, a cumes luminosos.

Os últimos dias da vida política peneiraram algumas dúvidas.

Preciso de acreditar, para poder concordar e discordar - digo eu. Discordar do que diz o mentiroso é concordar com a verdade que o mentiroso afinal conhece e esconde. E concordar é discordar. Numa floresta de enganos, ficamos sem saber o que é certo e o que é errado e ficamos sem saber quem somos afinal.

E precisamos de saber quem é quem fala. Uma das dificuldades da política é não encontrarmos a política onde ela aparece só fingida. Em muitas alturas, parece-nos que os políticos emprestam voz a funcionários ou técnicos subordinados, e atribuem uma qualidade superior, do nível da decisão, ao parecer por eles produzido para apoiar a decisão. E esperam, dos eleitos políticos, uma aceitação acrítica da sugestão de aparente sabedoria absoluta e insuspeita dos técnicos ou dos cientistas, da técnica e da ciência. Isto é tanto verdade para as ameaças do regresso da co-incineração para o tratamento de resíduos e do nuclear como alternativa para a produção de energia eléctrica, como para propostas constantes de uma qualquer agenda municipal.

Na última semana, a peneira não separou as dúvidas das certezas. Mas deixou vislumbrar algumas pepitas luminosas, alguma esperança solar que só pode ser verdade se assentar afinal na fragilidade humana. Ao espelho, a fragilidade humana é uma força sobre-humana que nos atira para a luz dos dias mais alegres.


[o aveiro; 9/03/2006]

A prenda

Recebemos hoje cá em casa a prenda de um livro, a saber:
Um divórcio na Lisboa oitocentista
publicado pela Livros Horizonte
A nossa amiga Manuela Simões investigou e escreveu. Essa é a melhor prenda.
(Man)Dá-lo já é um excesso.
Obrigado, Manuela.

desenho, logo existe



© PONTA ELÉCTRICA

desenho, logo existo.




Dou por mim a desenhar caras partidas em duas metades nada simétricas. Ou são duas caras que tentam falar uma com a outra? Não tenho forças nem vontade para partir a cara de quem quer que seja. Mas dá que pensar. ¿ Que raio de reuniões são estas? Por onde ando, os dedos riscam até tudo ser escuro e as pessoas ou são tristes ou são duplas. Ou são vidas duplas e... é, por isso, que não são parecidas com quem quer que seja. Nem comigo? Não me sinto bem.

o que se perdeu, onde está?

Em tempos, lmbro-me de ter lamentado a perda (por deficiência assumida momentânea do Blogger) de algumas frases escritas mais por aqui que por ali. Essas frases tinham sido escritas para serem ditas por José António Moreira no podcast sons da escrita e ficaram guardadas no blog respectivo - sons da escrita, também - onde podem ser lidas. O esqueleto é "a casa do ferreiro" que pode ser visitada dentro de uma antiga escrivaninha onde guardo poetas e farrapos.
Assim sendo, não vou recuperar para aqui a tal
apagada semana , vil tristeza .
Não cumpro a promessa, mas indico o caminho para o prometido e muito mais. Que pode ser nada, eu sei!

como quem diz bom dia nem mais

quando saio da escuridão da noite e a manhã é uma surpresa gelada
embrulhas-me cuidadosamente na tua teia no mais terno olhar de lã

nada é mais feliz que ver como a madrugada acorda a manhã
como a bafeja à manhã estremunhada que espantada abre os olhos
até que a lua ensimesma na foz da noite e o sol inaugura uma nascente

para o dia que aí vem
dizes tu
como quem diz bom dia nem mais.

perdido como folha de caderno




Há desenhos que ficam perdidos. A folha está lá, mas deixámos de a ver
como uma falha de sentido. Até que um dia ela sustém o vôo até ser vista.

Então, como verso na folha, escrevemos nome e morada. E colamos-lhe um valor
para a viagem. Nervosos, enfiamos a frente e o verso na fenda escura do futuro.

Para que ela vá pelo rio do esquecimento acima e fecunde o longe até ser perto.

desenho, logo existe




aqui, ali, ... até santa joana.

desenho, logo existe




uma, duas reuniões... fim em santa joana.

desenho, logo existe




em santa joana.

o soco no estomago

Marinamos a vida normal na calda dos nossos brandos costumes. A violência extrema faz parte do noticiário estrangeiro, de um filme alheio. O desprezo absoluto pela vida do outro vem como notícia de tempestade ou calamidade ou praga de outro continente que nos faz benzer e dar graças. Admitimos pequenas trovoadas, derrocadas e acidentes de trabalho.

Nós, por cá, todos bem. Ou, no pior dos cenários, assim assim. Andamos confiantes e distraídos até ao dia em que nos informam que um grupo de miúdos de escola, portugueses numa cidade a menos de uma hora de comboio, persegue até assassinar um homem de 45 anos. E perturbamo-nos enquanto explicamos o que se poderá ter passado nas nossas costas, mesmo à nossa frente, em nossas casas, nas nossas escolas. E assobiamos aos melros, quando cercamos o acontecimento com o arame farpado das circunstâncias do lugar, da natureza da escola e da experiência de vida dos miúdos, da vida específica do adulto morto até tudo ser estranho e estrangeiro em casa. Até tudo ser passado de uma cave da nossa casa que mandámos emparedar.

As nossas famílias, igrejas e escolas, os nossos pais, padres e professores não podem prever todos os comportamentos, favorecendo uns e prevenindo outros. Cada vez menos, na medida em que o desenvolvimento da sociedade se faz acompanhar pela inexorável criação de franjas de excluídos da casa e causa comum em valores e bens essenciais. Os sistemas dizem que desejam a inclusão enquanto gritam pela segurança e constroem muros altos para separar.

O soco no estômago dos últimos dias obrigou à discussão das escolas, das escolas especiais de acolhimento, orfanatos e reformatórios, em particular. Ainda que falsamente, desculpabilizar e desresponsabilizar as crianças e os jovens foi palavra de ordem, desde a educação familiar e escolar até ao direito. Face à perda da inocência e, ainda que aceitando que há meninos que nunca o foram, há políticos a favor de tratamento adulto para os criminosos juvenis. Este é o outro soco no estômago. Esperávamos por ele. Mas ainda dói mais. Ele, por si só, é nada quando quer parecer tudo.


[o aveiro; 02/03/2006]

apagada semana, vil tristeza

Pareceu-me que a desaparecida semana passada reaparecia no arquivo.
Por alguns dias assim foi. Mas ontem procurei-a e nada.
Desapareceu também do arquivo. Desapareceu completamente.
Com tempo, hei-de devolver a'o lado esquerdo o que lhe dei e a máquina insiste em tirar-lhe.

desenho, logo existe





desenho, logo existe





desenho, logo existe





Sentado!


- Senta-te! Vá lá, senta-te! Já estás sentado?
- Estou! Vá lá! Diz o que queres dizer!
- Não sei se o quero dizer. Porque para o dizer, vou dizer-te coisas que não queres ouvir. Embora eu ache que é vital para ti e para toda a gente ouvir a verdade. O que tem faltado afinal é uma política de verdade.
- E tu sabes o que é a verdade? E sabes o que é a política de verdade? Aquela que ninguém tem coragem para explicar e aplicar aos portugueses. Mas...
- Não há mas nem meio mas. Tem de ser.


Ha qualquer coisa de estranho nos economistas e especialistas portugueses que falam de política. Eles sabem qualquer coisa que nunca virão a dizer. Aliás, eles sabem duas coisas. Porque quando estão num lugar do poder estão a fazer o bem possível e quando estão noutro lugar do poder dizem que o bem necessário é coisa que os políticos não têm coragem de fazer. E há sempre um especialista que desmente com números insuspeitos as suspeitas intervenções do outro especialista, que não chega a dizer o que ameaça dizer. Pelo menos, assim parece. Porque da próxima vez que aparece virá anunciar qualquer coisa que nunca foi dita... por falta de coragem.

E o dilema que me sobra é sempre entre escolher se serão mais mentirosos que cobardes ou mais cobardes que mentirosos. Quando estou mais lúcido, pergunto-me se haverá aquilo a que chamam política de verdade. Outras, quando é a cabeça que voa, pergunto-me se haverá verdade ou se a verdade pasta neste prado.

Há dias em que acordo a meio do pesadelo. Depois de comer o verde da verdade, uma manada pisoteia o prado da verdade até não sobrar coisa alguma digna de ser lembrada por esse nome. Há manadas a disputar a propriedade da verdade, como gatos disputam os novelos de que puxaríamos o fio da meada até saber.

A coisa fia mais estranha quando em cena entram cavalheiros especialistas de grandes lombadas do combate greco-romano. Nas suas costas, abre-se um anfiteatro. É então que nós sentimos que há um corredor no ar por onde se voa a direito. E por onde voam os direitos. As palavras normais deixam de existir. Somos obrigados a reconhecer as tonalidades da verdade, porque tanto a virtude como o vício mergulham as suas raízes mais fundo que na metafísica dos costumes traduzida e comentada.


- Estou sentado! Podes dizer!
- Já não digo. Li o que escreveste e fiquei a saber que não acreditas no que eu disser.
- Acredito! Podes crer! Diz lá.
- Se eu te disser que o país está falido, acreditas?
- Claro! Porque não havia de acreditar? Não tens andado a gerir isto?


A verdade é que lá fora chove torrencialmente. Cada pingo dói na minha cabeça.


[o aveiro; 23/02/2006]

a semana que passou

Se, por acaso, abrir "o lado esquerdo", pode parecer-lhe que os dias antes deste não existiram. Houve um problema qualquer com o "blogger" que me levou a refazer algumas publicações à medida que me parecia que desapareciam. Isso aconteceu com os escritos para o audioblog sons da escrita. Acabo de reparar que eles se podem ver nos arquivos, como este.

posso nem ter que fazer

posso nem ter mais que fazer
mas hoje não vou fazer o que é costume

e vou antes acender um azedume
que me vingue do dia que acabei de perder

se um dia...

se um dia me encontrasses
ainda que eu não encontrasse mais ninguém

tal dia seria a vida completa e plena

GEOMETRIA : A curva do ingénuo revisitado (geogebra)

GEOMETRIA : A curva do ingénuo revisitado (geogebra) : Revisitamos "31 de Janeiro de 2005" de entrada ligada a texto de setembro ...