decepado

se procuro outros braços que me abracem

os ciúmes

Abandonadas por seus amantes, duas mulheres almoçam sandes, num banco do jardim público. A solidão era tão forte que pensam viver juntas. A que primeiro oferecera a sua casa, ao preparar-se para dormir, sentiu a outra tão atraente que desejou fazê-la adormecer no lado do leito que, habitualmente, ocupava, tomando para si o lado do homem que amava. E ao perceber que olhava para a sua amiga como ele a teria olhado, sofreu com os ciúmes.


Tonino Guerra.

a arte de voar

como desenhar fronteiras
entre dois mundos?

planto laranjeiras
carregadas de frutos e de ninhos
carregados de aves prontas a voar

entre mim e ti e em ti
voam ligeiras as minhas mãos

fáceis alvos para atiradores furtivos
de primeira linha

de fronteira

a arte de voar

Nos ombros da mulher de pedra e pranto
repousam os cabelos da árvore caída

e enquanto a ave de granito
de asas partidas
ensaia o voo de um grito,

da minha mão levanta voo a pedra.

a arte de voar

Filtro os sons da água e a água
e mergulho uma folha rabiscada
para que se dissolva a sagrada
escritura da minha mágoa

e a tinta forme então a pomba
que bate as asas e desenha um voo
como um risco branco contra o céu.

tisana 17

(...)

Era uma vez uma chave que vivia no bolso de um homem. Durante muito tempo desempenhou com honestidade o seu trabalho de abrir portas. Até que um dia descobriu que todo o seu trabalho tinha consistido sempre em abrir portas que já estavam abertas. Quando descobriu isso lançou-se corajosamente para fora do bolso. Caíu no chão. Ficou ali. Passa uma criança vê a chave e diz que coisa tão engraçada para fazer um carrinho.


(...)

Ana Hatherly.

a cara do caminho

quotada

Hoje, duas mulheres puderam ouvir as notícias do costume e ocupar a viagem do dia na conversa sobre a forma como são tratadas: trabalham mais e recebem menos, são mais habilitadas e são mais desempregadas, etc. À distância, para quem me quisesse ouvir, eu ia murmurando que as mulheres eram responsáveis pelo acidente do presente. Argumentava eu que, há várias gerações, elas estão em maioria em todo o sistema educativo e escolar e, por isso, têm sido elas a reproduzir o sistema de ideias desfavorável (ou não) à afirmação das mulheres. Se as mulheres estão em maioria absoluta nas escolas, porque é que há um grande número de homens que são dirigentes no sistema educativo? Se a gestão dos homens tem sido a desgraça que se sabe e em desfavor das mulheres, porque é que as mulheres não tomam as rédeas? Elas lá conversavam sobre o assunto enquanto eu lhes aquecia as orelhas com o meu feminismo. Mas, das duas, a que me parecia mais radical começou a discursar contra o sistema de quotas. Ela acha que as mulheres devem ser consideradas pelo que valem e em todos os lugares que ocupem seja claro que é pela competência demonstrada e não por serem mulheres. Estive quase para desistir. Mas não me contive. E lembrei-lhes que os homens mantêm o poder com um apertado sistema de quotas. Já tentaram ver se há homens da multidão do poder e da gestão a ocupar cargos por critérios de competência? Uma boa parte desses lugares são protegidos por um sistema de quotas rígido entre as diferentes tribos de tótós dos partidos do poder. Uma autêntica quotada. Nem concursos, nem provas dadas... Ou melhor com provas dadas... a denunciar a borrada da sua própria acção no poleiro que abandonam quando sobem para outro poleiro, a enriquecer enquanto arruinam o país, etc. De alguns dos espécimes protegidos pelo poder, só sabemos que parecem homens pela forma de andar. Mal os ouvimos falar, a opinião piora. Adquirem notoriedade pelo disparate, para logo depois fazerem o que eles chamam gestão de silêncios. Tornam-se discretos até passarem à fase madura em que definitivamente não falam ... porque estão em segredo de justiça. Ouvimos falar deles como suspeitos. Uma suspeita? Também.


[o aveiro; 31/05/2007]

da ponte

cara ou coroa

a noite

a noite

As políticas vão a exame? Nós também

Nenhum dos últimos governos ignorou a importância do ensino da matemática. Não se trata de mera propaganda política. É antes sinal do reconhecimento da necessidade de formação matemática de todos os cidadãos. Os governos têm sido obrigados pela opinião pública (o que quer que isso seja) a prestar contas, informar os resultados e prometer políticas para superar deficiências.



  1. A generalidade dos eleitores pouco reclama sobre a qualidade da formação e a natureza das aprendizagens e mede o desempenho estudantil por resultados das provas nacionais. Nos últimos anos, os governos que tentaram eliminar provas nacionais de português ou matemática esbarraram em oposições poderosas. Essa oposição é exterior às escolas básicas e secundárias e ao conjunto dos agentes educativos. Os governos e os agentes educativos sabem que não é possível obter resultados globalmente positivos em provas de aferição dos conhecimentos essenciais pré-definidos. Resultados positivos só pelo reconhecimento das aprendizagens que a primeira aferição validasse. Os exames nacionais esquecem as diferenças entre escolas e esquecem a diversidade de condições sociais dos jovens chamados a prestar provas, bem como esquecem a diversidade das interpretações e das práticas dos professores no cumprimento dos programas nacionais em contextos diferenciados.
    Pode estar a acontecer um acerto feito pela realização estável de exames, se estes estiverem a ser acompanhados de estudos detalhados sobre resultados consolidados e as respostas dadas ao longo de vários anos. Reconhecermos que os governos podem aplicar exames leva-nos a recomendar aos professores que mobilizem a favor do ensino todos os materiais publicados pelo GAVE para os diversos níveis de ensino. Para aumentar a compreensão dos problemas e exercícios que podem ser objecto de exame sem que possam ser enfrentados com êxito por rotinas, pela execução acrítica e pobre em compreensão dos conceitos e técnicas matemáticas.



  2. As iniciativas dos governos viradas para um ou outro aspecto do ensino da matemática, sejam elas adaptações curriculares, formação de professores, apetrechamento das escolas ou ampliação dos impactos dos resultados dos exames nacionais e testes internacionais, aumentam a pressão sobre as escolas e os professores no sentido do cumprimento de programas escolares. Tem força a ideia de que os professores tendem a abordar os conteúdos aque mais lhes agradam e se demorem em temas que consideram importantes. Sempre que as competências a desenvolver apareceram independentes de um corpo completo de conhecimentos, conceitos e técnicas, os professores têm tendência a empobrecer a variedade de conceitos leccionados. Sem exames nacionais, há áreas de conhecimentos básicos em matemática automaticamente prejudicadas. A existência de exames condiciona fortemente a acção dos professores que mantêm, ainda assim, uma separação artificial entre a sua acção e os resultados dos exames. As medidas dos governos na melhoria das condições das escolas tende a criar na opinião pública uma exigência maior sobre os resultados e pretendem passar a responsabilidades para o corpo dos professores, enquanto procuram separar a acção dos professores dos resultados de outras acções (ou inacções). Chegam a sugerir que os resultados dos exames são independentes das condições económicas, diferenças culturais e de escolarização das famílias.

    Iniciativa central, os planos de acção para a matemática escolar básica tornaram-se planos locais por adesão voluntária(?) de escolas espalhadas pelo país. Mais de um milhar de escolas aceitaram tomar iniciativas locais com vista à melhoria dos resultados a matemática. As escolas puderam escolher as oportunidades e os grupos de estudantes sobre os quais se comprometeram a intervir especialmente. Assim, esta iniciativa central constituiu-se numa grande variedade de aplicações locais - variedade de públicos, variedade em estratégias de intervenção, variedade na distribuição no tempo, etc - o que retira todo o sentido a que se considere que influencia qualquer melhoria dos resultados de exames ao fim do seu primeiro ano de aplicação. Cada escola deve responder pelos resultados da sua iniciativa local que, em muitos casos, pode ter sido intencionalmente dirigida a estudantes em início de um dos ciclos do ensino básico e que, obviamente, não estão a prestar provas ao fim do primeiro ano. Pode mesmo ter acontecido que esta primeira candidatura tenha correspondido mais a compromissos de gestão do que a compromissos dos professores sobre as suas práticas.






Nenhuma destas considerações pode iludir a necessidade de avaliar as intervenções locais pelos resultados obtidos. Não são os exames? Não são. Cada plano de escola deve responsabilizar os respectivos professores pelo compromisso que assumiram. Não se espera mais, mas isso é o mais importante. Até porque é sobre isso que, ao fim de cada ano e dos três anos de aplicação, estaremos a medir o impacto das iniciativas do governo.



[Educação & Matemática. APM. Agosto de 2007]

onde?


subi até aquele buraco na encosta escondido por não ter falado disso com ninguém.
e por lá me deixei ficar, dormente, até ter a certeza que ninguém dá pela minha falta e ninguém me procura
até me convencer que não vale a pena procurar migalha de pão no saco, restos em lata de atum, uma folha de papel. também é verdade que começava a custar-me fazer a ginástica de ir ao buraco ao lado para todas as necessidades. a minha descida pela noite começou logo após ter desabado uma tempestade de lágrimas sobre o papel que embrulhara o último quadradinho de chocolate.

A reunião, lá longe

Espero. E a vida suspende o seu voo. Ou esqueço as asas abertas. E que sejam as mãos do vento a decidir o que serei: instante a instante pairo sobre o futuro que serei. Espero.

Outra vida toda a vida.

“Quando dei por ela, já tudo aconteceu. Não sei quando começou, nem como e muito menos porquê. Como se às escondidas do tempo, um pequeno senão de coisa nenhuma tivesse aparecido não se sabe de onde e por ter tropeçado no pequeníssimo e desconhecido obstáculo tivesse desenrolado outra passadeira de descer escadas até aos altos céus. E o que é certo é que quando procurei olhar para trás para ver o tropeço, o tal pequeno senão, não havia nada para ver.  Quando falo disto, não há nada para dizer em minha defesa e já estou cercado por  tantas dúvidas que mais vale acreditar  quando me dizem que ainda sou professor.

Apareceu alguém a dar-me a mão a puxar-me de um passeio para o outro lado da rua por onde nem pensava ir, e eu dei por mim a agradecer a passadeira estendida só para mim e mudei de passeio, de professor ao espelho, para professor do outro lado do espelho.

Como é que é possível que eu não tenha percebido quando deixei de ser professor? Não dei aulas nos últimos 20 anos e sou professor? O que é que me aconteceu, durante os últimos 20 anos, para ocupar um cargo na administração pública da educação? Sem qualquer concurso e  seleccionado por ser obediente militante de um partido do poder, deixei-me estar até me deixar sobressaltar por uma piada sobre o inominável. Quem me suspendeu também se diz professor e anda pela administração pública ou sindicatos, por outros partidos. Também não deu por nada?
Quem é que me fez assim funcionário deste modo desmemoriado da vida até que tenha deixado de ver o ridículo da situação? A piada é que sou  professor sem exercício. Foi acontecendo. Às tantas, já respirei tanto gás ridicularizante que perdi o norte. Eu e os outros como eu.”




Professores de quê? Educadores? Que doença ataca os partidos que transformam  pessoas até elas se convencerem a ser o que não são e, para serem alguma coisa,  dizem-se professores de uma vida inteira  sem escolas, sem aulas e sem alunos. 

Sem espanto algum, damos pelo disparate. Nos últimos trinta anos alguns deuses menores e portugueses andaram a criar  um mundo paralelo e só deles, como contra-exemplo, para desmentir tudo o que disseram, dizem e dirão. 

No nosso mundo, ouve-se uma campaínha de alarme. Na escola real, o professor dá corda aos sapatos, com o livro de ponto na mão, toma o seu lugar no corredor cheio de crianças e jovens. Nas próximas horas, a profissão toma conta de tudo o que dá sentido ao título de professor. Pode ser fácil. Pode ser muito difícil. Tem de ser. E tem muita força.

[o aveiro; 24/05/2007]

a sorte dos pais

Embora haja alguns estudos sobre a evolução da relação dos pais com os filhos ao longo da escolaridade destes, as crenças dos professores são dominantes para integrar a acção dos pais e outros agentes na cultura da escola. Tanto para estabelecer um padrão de comportamento que pretende assinalar como aceitável ou inaceitável esta ou aquela acção dos pais e encarregados de educação no quadro da relação com a escola, como para dar sinal da rotina da escola. De certo modo, podemos dizer que os professores estabelecem, com os seus discursos, a rotina das relações, promovendo ou despromovendo o papel dos pais e encarregados de educação.
Parece acertado para muitos professores aceitar que os pais acompanham com tanto mais empenho a vida escolar das crianças, quanto mais elas dependem da sua protecção e que o acompanhamento pessoal dos pais vai diminuindo na adolescência até ser substituído completamente pela ausência ou pela contratação de serviços especializados.
Os professores podem afirmar que há um fenómeno de abandono pelos pais da escola dos filhos. A rejeição dos filhos a esse acompanhamento como forma de afirmação no seu crescimento soma-se à incapacidade dos pais para acompanhar as novas competências (tecnológicas, também) escolares e não escolares adquiridas pelos jovens. Assume especial importância a falha de conhecimentos científicos e literários de uma geração menos escolarizada que se sente incapaz para compreender e ajudar o crescimento em graça e sabedoria dos filhos.
As escolas esperam muito (e isto é uma forma de dizer que os professores esperam muito) da acção dos pais nas escolas do ensino básico e chegam a desesperar sobre essa acção no ensino secundário.
Esta afirmação precisa do seu contexto. Pode ser diferente e referida a níveis etários diferentes conforme é dita no ambiente rural ou num ambiente urbano e citadino. Assim como é diferente o sentido que se dá a “básico” e “secundário”. Sendo que, para os estudantes que querem e são empurrados para o mundo do trabalho aos 15 anos (se não antes), o último ciclo do ensino básico é já um ensino secundário (tanto para os jovens como para os pais), enquanto que para outros jovens que não imaginam a sua vida sem prosseguimento de estudos superiores, aquilo a que convencionamos chamar ensino secundário é, de facto, básico.
Talvez pudéssemos dizer que o abandono escolar de hoje foi precedido do abandono escolar dos pais quando jovens e é denunciado pelo abandono a que os pais votam a escola dos filhos. Podemos mesmo dizer que o abandono escolar de hoje é a confirmação de outros abandonos. E é a mais desgraçada confirmação do abandono dos filhos pelos pais, mesmo quando não parece.
O mais dramático deste fenómeno de abandono das escolas pelos pais é que ele significa a incapacidade para os pais de acompanhar culturalmente a escola dos filhos. Os pais não têm tempo e principalmente não estão no tempo dos filhos e não compreendem a matéria de que é feita a escola dos filhos. Incapazes de conversar sobre o que os filhos aprendem ou deviam aprender, deixam de conversar com os filhos e não são exigentes (nem com os filhos, nem com a escola) ao nível das aprendizagens, dos conhecimentos e técnicas, da utilidade do que aprendem, etc. Confundem-se até ao ponto de perder o sentido da educação para a responsabilidade social.
E substituem tudo pelo único indicador escolar de que compreendem uma utilidade: as classificações numa escala numérica. Em vez da compreensão da complexidade e da qualidade das aprendizagens, os pais pressionam a escola sobre as classificações que, ainda que sem conteúdo, permitem a transição para o ingresso no mundo do trabalho ou no ensino superior.
Neste tempo, os pais são eleitores. A preocupação dos eleitores reduzida a classificações escolares é uma tentação para os políticos no poder que, na luta pelo poder, abrem campanhas com o único fito de melhorar classificações em vez de tomarem medidas de longo fôlego sobre as condições de vida das populações e sobre as condições das escolas onde os jovens aprendam a viver melhor, responsáveis e... livres.
Há escola dos pais dos estudantes na escola dos estudantes e professores? Abandonados à sua sorte, saberão os professores que as escolas não podem abandonar os pais à sua sorte?

[a página da educação; Junho de 2007]

dar a volta ao texto

Não sabia que tinha saudade das salas de espera, mas sei hoje que a leitura das salas de espera pode tornar-se um vício. Enquanto esperava uns minutos pelo futuro, fui atraído para o turbilhão de inteligência e vida palpitante de um suplemento que, não podendo ser vendido separadamente, sobrevive nas mesinhas de apoio das salas de espera ao tal jornal que o transporta até nós. Os minutos da liberdade que me deram não deram para ler mais que as chamadas à capa ou à primeira página. Mas fiquei com a alma consolada e não resisti a apontar as frases no meu caderno de viagem por este vale feliz.

a) Enchia a capa um cromo de rapariga pateta com jeito para o negócio de promover e vender tudo, desde fraldinhas ilustradas e roupinhas até bochechas e covinhas de queixo. A legenda punha-lhe na boca a frase: “Gostava de fazer uma personagem perturbada para mostrar que não sou só a flor”. Lá na sic-shop não há quem lhe explique devagar que é a mais perturbada das personagens e que a frase solta é prova de que ela não se enxerga, não é flor que se cheire e foi inventada para as tele-vendas?

b) Outra notícia balsâmica rezava assim: “O leão marinho é uma espécie em alta no zoo de Lisboa. Depois de ter recebido uma visita calorosa da actriz patrícia tavares, o bicho foi adoptado pela banda d’zrt. Há famosos que começam com muito menos.” Fico cheio de pena do leão marinho e dos golfinhos que, para sobreviver em cativeiro, têm de aturar estes bichos que vão fazer habilidades e tirar fotografias ao zoo. Estes famosos podem começar com muito menos, mas com muitos mais tiques, mais saltos e gestos disparatados que os que se podem ver na aldeia dos macacos. Ninguém pode começar com menos vogais que os d’zrt.

c) Numa das chamadas ao sumário da coisa, escrevia-se: “helena coelho separada e feliz nega novo namorado”. Estava a tentar ver se chegava a alguma fotografia do coelho desta cartola quando me acordaram do sonho em revista que não pode ser vendida separadamente.

Enquanto respondia a perguntas sobre novas configurações das famílias e sobre os problemas das crianças nas famílias e nas escolas, dei por mim a querer saber quem será a helena da família dos coelhos. Não descanso enquanto não souber.

[o aveiro; 17/05/2007]

a reunião

a reunião

a reunião

a reunião

reunião

reunião

os gestos mais simples

se um dia quis passear com uma mulher de mãos dadas
não fui quem digo que sou porque fiquei morto por amor
e não o soube fazer ou não tirei as mãos dos bolsos do medo


se um dia quiser tocar o céu da boca da mulher e a nuvem
da humidade do hálito do desejo tolher a minha língua é para sempre
e sempre é uma vida toda longa para ficar assim mudo e quedo

se um dia tocar a ponta do teu nariz com a ponta do meu dedo
e ele riscar o vento como um giz que escreve no quadro
a cor do ar e com ela o teu nome então volto a ser quem sou

para que possas partir sem olhar para trás sem olhar
para a porta da casa para a porta do sonho para a porta
onde se escondem os meus olhos à espreita do andar que se afasta

enquanto me afasto mãos dadas atrás nas minhas costas

fazer o meu número

Em tempo de eleições na Madeira, Jardim abre uma clareira na floresta de enganos que o sistema democrático representativo pode ser. O espectáculo rasca do candidato Jardim é a verdade, parte da verdade, toda a verdade? Vale tudo para vencer eleições? O caso da Madeira é o modelo que todos seguem, fingindo cada um ser outro em tudo diferente do Jardim? Em cada voto, quantas caras há? A pose do recém-eleito presidente de todos os governos regionais da Madeira representa o quê?
Logo a seguir às eleições, passam-nos como boa uma ideia que separa o Jardim eleiçoeiro do outro presidente vencedor. Ainda ontem todos se maltratavam e hoje cumprimentam-se formalmente e felicitam o vencedor. Se ele é o que parece e o que dizem que é, porquê e para quê se deve felicitá-lo? Ele entende o que disse? Saberá ele o que representa o espectáculo que montou? Ele entende o que dele dizem? Eles entendem-se?
Espalha-se a ideia que tudo é permitido para ganhar votos e que não há mal em ganhar votos pelo disparate e pelo crime que se dispara boca fora. De tal modo assim é que, mal acaba o processo eleitoral, há comentadores e analistas prontos a desvalorizar como excesso “natural” de campanha qualquer ideia xenófoba, racista ou até ilegal que tenha sido debitada durante a campanha. Há mesmo quem afiance a insinceridade como uma boa característica dos candidatos.
As ideias radicais de direita que Sarkozy não se cansou de repetir durante as campanhas para a eleição de Presidente da República de França nada representam senão uma mentira inteligente para captar os votos que, a não ser assim, acabariam votos em LePen da Frente Nacional. Devemos ficar descansados já que Sarkozy não foi eleito pelas ideias que exprimiu, mas antes por aquelas que não chegou a exprimir. De certo modo, dizem-nos que o espectáculo eleitoral é um espectáculo e que as ideias de nada valem a não ser para serem sopradas quando servirem para ganhar um voto.
Já houve fraudes eleitorais e foi triste. Mas nada pode ser mais triste do que ouvir que só temos farsas eleitorais nos nossos sistemas democráticos. Ou não há nada mais alegre? Ou não há nada?

[o aveiro; 10/05/2007]

solavanco

Confesso que gritei sempre, antes e depois de Abril. Podia não saber muito bem o que gritava, só sei que antes de Abril de 1974 me sabia bem gritar o que era proibido: tremendo berro clandestino de um corpo pequenino. Crescia com o grito, crescia ainda mais quando o meu grito podia ser lançado da boca de uma multidão inquieta que me escondia durante a rajada do discurso urgente. Enquanto o eco da rajada do discurso procurava os ouvidos da multidão em festa, desaparecia no lugar onde sempre tinha estado para não ser visto nem achado por eles. Por eles, os outros, os que viviam no meu medo sem que eu os conhecesse, que me procuravam para me encontrar sem marcar encontro.
Depois do 25 de Abril, deixei que a alma gritasse descompassada e com tal intensidade que me sobrasse esperança de ser escutado pelo passado até que ele me adivinhasse, a voz que eu era no grito desfeito em fumo. Depois do 25 de Abril deixei-me ser quem eu era, sem culpa e sem medo.
Haverá alguma história por contar? Não, não há. A minha vida sempre viajou como hoje viaja ainda em segunda e distraída vai contando solavancos.

essa é que é essa

Finco os olhos no chão para seguir os passos dados nos dias entre o 25 de Abril e o 1º de Maio de 1974. A partir de certa altura, o movimento era tudo até ser voo. E eu não guardo memória do momento em que levantei os pés do chão e muito menos me lembro do tempo em que poisei o corpo para viver o seu cansaço. Deixei-me levar pela pura euforia e só sei que fui levado por rios de multidão, saltando da minha pacatez tímida até aos gestos insensatos de correr as ruas e as veias do meu país. Com receio de ser encontrado, antes mudava de passeio muito frequentemente. Depois deixava-me voar nos encontrões do movimento.

Muitas vezes, me pergunto porque é que fui por aqui e não fui por ali, porque é que fiz isto e não fiz aquilo. Deixei-me tentar pela resposta que me dizia que eu sabia o que fazer e o que queria e para onde ia. Mas, depois, dei por mim a procurar a verdade e a aceitar que nos caminhos que ia percorrendo encontrava os meus amigos e eles não deixavam de me ver. Porque afinal eu queria ser visto. Todos nós queremos ser vistos e achados, penso eu agora.

Não me parece um erro seguir uma margem da multidão, ser parte de um cordão humano que procura constituir-se em fronteira entre a maldade que não poupa a miséria e a miséria filha da maldade humana. Lembro-me dos olhos e de lágrimas de dor. Mas também me lembro dos olhos para me lembrar das lágrimas de alegria, lembro-me das bocas e dos punhos erguidos para me lembrar das palavras que antes não podia gritar. E estou sempre a lembrar-me dos meus amigos, muitos deles perdidos na distância onde se guardam todos aqueles que vivem connosco mesmo quando não lhes pomos a vista em cima há décadas, que vivem connosco porque fazem parte da nossa história simples, talvez sem o saberem. Talvez sem o saberem, eles fazem parte de um sonho que não morre embora se vá refazendo noutro sonho. Olho para esse passado e é como se visse um álbum de retratos. Há quem veja acontecimentos determinantes e dentro deles os seus protagonistas. Eu só consigo refazer a pura euforia com uma galeria de retratos que só importam a mim. Porque foram eles que se fizeram ao caminho comigo até eu continuar a ser o que podia ser - sem me obrigarem a ser outra coisa que não fosse o que podia ser.

Não havia tempo a perder, não perdemos tempo, nem nos perdemos no tempo. O que passámos para aqui chegar! Onde?

[o aveiro; 03/04/2007]

25 de Abril em Aveiro

Perguntaram-me porque é que o 25 de Abril de 1974 é uma data pouco importante para a Câmara Municipal de Aveiro. Eu nunca tinha pensado que houvesse algum mistério nisso.
Em Aveiro, 25 de Abril é dia de festa de fecho (pop'lar e, sempre que possível, pimba! ou com chave com dentes de ouro) da magnífica Feira de Março. Já assim era antes. Aveiro sempre festejou Abril, em grande! Mais Abril nem cabe!

(Nota: Devo confessar que nem tudo se mantém igual. Já não há tantos dentes de ouro que se mostrem ao sol da manhã. Agora usam materiais sintéticos para substituir os dentes que faltam, tentam pintar de madrepérola todos os dentes de toda a gente. Claro que no esforço de acertar a ordem unida dos dentes, agora podemos ver as bocas a tentar esconder as suas diferenças enquanto mostram os instrumentos de tortura que procuram colocar o padrão em cada boca disponível para pagar a conversão .....Menos ouro por dente, mais arame na cor da prata ou da platina. Cada um não é para o que nasce: feliz e infelizmente!)

para continuar a caminhada

por momentos interrompida, para a desenharmos mais um pouco, retomamos o fio à meada

deixar que as linhas ganhem a sua vida

e deixar que os dias ganhem vida própria

e se mudar de linha

sem querer, uma criança pode desenhar a linha que separa um dia do seguinte.
só precisamos de procurar na generosa barafunda uma ponta e, seja qual for, decidirmos que só pode ser essa a linha.

desenhando

amareleto

a criança resiste a cobrir todas as outras cores pelo amarelo, mas se, para além dos amarelos, já não há outras cores, ela percebe a variedade de amarelos que lhe sujam os dedos.

25 de Abril


sobre todas as outras, a mais fascinante das ideias
está na perseguição da verdade que se move

e que quando parece ter-se deixado apanhar
é para nos dizer que é outra e diferente

e não está ali na mão suada, sob todas as outras

lado de lá

traseiras da fé

entrementes

a frente de abril

Não foi para isto que fizemos o 25 de Abril. Isto é o quê? O 25 de Abril foi feito para quê exactamente? Não pode ter sido para mais que restaurar as liberdades e a democracia representativa que foi feito o 25 de Abril. Do 25 de Abril sobrou mais do que isso? Errado ou certo, tudo o que veio depois é obra de portugueses livres, livres para a acção colectiva, livres para a eleição, livres para participar, livres para responsabilizar e fazer pagar os maus governantes pelos seus erros. Cada um de nós não se revê nos resultados, no que sobrou?

Atribuir a uma acção sublime de alguns e a um instante magnífico da história colectiva o mal feito por outros ao longo de gerações é tão disparatado e maldoso como pedir aos desempregados de hoje que aceitem a sua miséria em nome de um futuro radioso para os seus filhos. Eu posso adiar parte da minha felicidade de hoje em nome do futuro dos meus filhos. Mas há quem queria roubar-nos o presente em nome do futuro e esse futuro é sempre um presente envenenado pela nossa demissão. Há quem nos aponte o futuro, apontando a entrada do beco onde montaram um assalto.

Há quem fale repetidamente das conquistas de Abril. Alguém se lembrou de dizer que lutamos pelas conquistas de Abril e isso significa recusar cada mudança sem discutir se ela é alguma coisa para além de inevitável. Para logo na etapa seguinte, passar a gritar em defesa do que então existe sem lembrar que isso não é mais do que dissemos ontem que não aceitávamos por ser ser intolerável. De certo modo, a luta contra a mudança é a luta pela situação existente que é o que não queríamos anteriormente. De certo modo, é aceitar que a vida popular é uma sucessão de derrotas e um certo tipo de luta em democracia não é mais do que a animação montada por profissionais. Um novo fado português?

A liberdade e a democracia são conquistas de Abril. Se não for participada em todos os campos de actividade, que podemos esperar da democracia? Votamos para nos fazer representar. Não votamos para entregar a outros o poder nosso de cada dia. A democracia constrói-se. Do mesmo modo, precisamos de reconhecer as liberdades nos seus exercícios. O espírito do Abril português não faz contas à idade e desde de 1974 que nos pede que o honremos nas palavras e nos actos e em nenhum frete.

De frente para o nosso passado, olhemos para a frente.

[o aveiro; 26/04/2007]

a escola

Onde estás depois do 25 de Abril?

Ainda antes da revolução de Abril, já eu era um improvável professor de liceu.
O meu irmão mais novo já tinha morrido em Angola e o meu irmão mais velho já tinha emigrado para França, a salto. Um irmão do meio tinha partido para pé do pai, no Brasil, de onde nem irmão nem pai voltaram. Fui criado pela ti Francelina, minha mãe camponesa, e pela Armanda, minha irmã mais velha e, coisa rara nesse tempo da minha terra!, com estudos superiores.
Quis ser padre em menino e depois quis ser marinheiro, para seguir o exemplo do meu cunhado, mas acabei na Faculdade de Ciências a estudar Matemática. Comecei em Lisboa a dedicar-me a actividades associativas dos estudantes e vagamente políticas. Quando a família se mudou para o Porto, continuei estudante e militante, contra a guerra e a ditadura, no movimento estudantil até acabar o curso, casar e receber uma guia de marcha para professor do liceu de Vila Real, em Trás-os-Montes.

Ainda antes da revolução de Abril, já eu era um improvável militar de um exército em guerra.
Não podia entrar na escola da marinha mercante porque tinha falta de peso e de altura. Mas fui, na mesma altura, apurado para todo o serviço militar obrigatório. Cheguei a esquecer-me dele, mas o serviço militar obrigatório nunca me esqueceu e é, já com uma filha nascida, que sou incorporado para começar uma recruta, em Mafra, seguida de uma especialidade em topografia e cartografia num quartel em Cascais, onde sou surpreendido pela revolução antes dela chegar.

Ainda antes da revolução de Abril, já eu era tudo o que sou hoje?
Só na ignorância do medo e, mais tarde, no instantâneo esquecimento do medo podia ser feliz e isso era como viver hora a hora. Não era preciso mais que um momento para ver a miséria e a tristeza espalhadas por dentro das fronteiras de um país irrespirável, sem liberdade, de onde se fugia a salto. Não sei o que seria se não tivesse havido a revolução. Talvez fosse professor de Matemática, mas não era o mesmo. E todos os portugueses eram outros ou os mesmos em suas celas. Sem darmos por ela, como no ar que respiramos, vivemos em liberdade. Só que a liberdade está sempre em construção e, se não podemos tropeçar nos invisíveis andaimes da obra, temos de reparar a casa todos os dias até que todos possam viver realmente e em liberdade.

A revolução de Abril paira em tudo quanto nos parece natural estar por aí, ao alcance da nossa mão. Sem nos pedir em troca um dever maior do que ser livre na liberdade dos outros todos.


[Escola José Estêvão,   Abril de 2007]

a primeira fila

Depois da primeira aula da manhã desta terça, alguém me disse que passasse pela secretaria da escola a levantar uma cópia do meu registo biográfico. Para verificar e confirmar os dados da minha biografia de docente, provável candidato a titular. Assim fiz.
Aproveitei o momento para fazer pequenas perguntas e observações de circunstância sobre a vida passada e sobre o futuro. O debate de segunda sobre as universidades tinha aguçado a minha curiosidade sobre a idade da reforma e, particularmente, sobre a idade que convencionaram ser a mais própria para que um professor como eu se reforme. E lá consegui saber que o mais normal é que me reforme depois dos 64 anos quando o dedo mindinho da minha mão direita atingir a perfeição como obra de artrose em mão de artista.
Fiquei preocupado comigo. Dei por mim a pensar que posso, sem dar por isso, vir a dizer os disparates que aqueles velhotes falam quando perguntam coisas à primeira fila dos debates televisivos.

As universidades privadas podem ser novas (e sabemos agora que podem ser muito inovadoras) mas os reitores são velhos, alguns muito velhos. Do alto da sua magnífica experiência de 40 anos de universidade pública, acusam esta de ser a mãe da desgraça nacional (e ao vê-los falar, tenho de acreditar nisso). Uma parte daqueles velhos a fazer de reitores recebem, com certeza, uma reforma honrada, mas pobre a precisar de ser acrescentada dos trocados da sorte que os cansa. Alguém lhes disse que o país precisava dos seus serviços e, corajosos como só eles, abrem a boca para esclarecer, em cada uma das suas tiradas, que a situação a que chegaram as instituições é essa de terem de recrutar reitores em concorrência aberta e desleal com os lares de idosos e reformados.
Alguns daqueles nomes também me cheiram a velhos ou novos exercícios de poder. Fico cansado só de ver a agilidade de que alguns deles dão prova e maravilhado com o desequilíbrio que usam para o passeio na corda bamba dos seus exercícios de reformadores reformados.

Sinto-me cansado e sinto pontadas de saudade da reforma que tarda em chegar para eu poder viver a velhice do meu trabalho, descansado para renunciar se for capaz de dar pela toleima quando ela chegar.

[o aveiro; 19/04/2007]

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