porto em visita
o guindaste nunca é um pormenor
é um risco no céu
é a ausência do andaime
é o homem de pés no chão
a construir um céu de betão
o douro
de muitos lugares se pode olhar um rio sentado num banco qualquer
ou feito criança ao colo de uma estátua de mulher
mesmo que os outros não vejam a estátua como nós a vemos
nem vejam o mesmo rio nem leiam o livro que nós lemos
ali naquele lugar se leio a página certa deixo o livro inteiro
menos uma certa página a única que ficou minha para sempre
amarrotada no meu bolso que a guarda e ao sonho que deixei de sonhar
para a ler repetidas vezes como um amante que hesita em despedir-se.
rua de todos os dias
todos os dias várias vezes ao dia passo por ela sem ver os amigos que nela moram
o acaso esconde-nos uns dos outros é o que vos digo por experiência
só vejo o martim que é um cão daquela rua tal qual como eu fiel à manhã
e à tarde
descanso
quando estou cansado e os braços me doem em negação
dou-lhes o gesto de varrer a melancolia de uma tela
tapando com nova paisagem a paisagem que lá estava
assim olhando em dias diferentes pela mesma janela
um amigo em visita pensa que um varredor deixa de ouvir
enquanto varre o pó do seu corpo para debaixo do tapete
e em cada instante procura o instante certo para partir
no fim de uma frase em que cai um . de silêncio
os meus olhos que não cabem na minha cabeça olham
a minha boca que refaz o dia pelo verso do arrependimento
e piscam o código sincero letra a letra para que a boca o soletre
obrigada.
não há semana sem senão
Ouvimos um novo bastonário e temos a vaga sensação de que o que ele diz não carece de prova nem carece de refutação. A sensação vaga de que todos sabem do que se está a falar sem que seja possível concretizar, a sensação vaga de que, por isso, se trata de um mal social qualquer que não se pode cortar pela raíz, porque a sua raíz está no poder e no estado actual das cosias. A vaga sensação de que falamos do inevitável, de uma quadrilha de males menores a quem temos de pagar protecção para que as coisas possam continuar a funcionar.
Lemos as públicas notícias dos truques nas câmaras em que os técnicos de uma delas assinam de cruz os projectos dos técnicos da outra onde podem aprovar os projectos que fazem, embora não possam assinar os projectos que aprovam. Temos a vaga sensação de que em todo o país, em cada uma das câmaras, pode acontecer isso mesmo e não podemos fazer coisa alguma contra isso, porque é assim que as coisas funcionam e, se não fosse assim, nem as casas do desenvolvimento cresciam para cima e já há muito todo o progresso se tinha afundado num mar sem betão. Temos a vaga sensação de que sem esses factos consumados não tínhamos construído as casas em reservas naturais, agrícolas, de orla marítima,... nem tínhamos direito a ver a especulação do oito que se faz oitenta para que alguém ou algum grupo num só dia enriqueça por ter sabido um dia antes o que podia ser feito mais por obra e graça de um técnico do que de outro qualquer nosso senhor do planeamento. Temos a vaga sensação de que não vem mal ao mundo por cada um de nós fazer o mesmo que todos os outros fazem ainda que seja errado e até, por vezes, crime. A vaga sensação de que há coisas que se repetem.
Lemos as letras gordas das brincadeiras de corredor em que cada um dá corda aos seus sapatos e fala sobre educação e sobre professores e sobre o que deve e não deve ser e até sobre a melhor forma de atropelar o parlamento e o bom senso como se houvesse uma autoridade com autorização para atropelar as próprias leis, os próprios prazos, a própria sombra. Lemos as letras gordas e nem acreditamos. Sobra a vaga sensação de que tudo está a acontecer só porque está a acontecer e contra isso nada, porque sabemos que o mal está em tudo o que lemos e ouvimos e contra o céu da boca nos bate, porque não sabemos as regras deste jogo de faz de conta, a conta que fazemos ao rosário que rezamos sem sabermos que oração nem a quem.
Não há semana sem senão? Antes isso que um tiro no escuro?
[o aveiro; 14/02/2008]
Lemos as públicas notícias dos truques nas câmaras em que os técnicos de uma delas assinam de cruz os projectos dos técnicos da outra onde podem aprovar os projectos que fazem, embora não possam assinar os projectos que aprovam. Temos a vaga sensação de que em todo o país, em cada uma das câmaras, pode acontecer isso mesmo e não podemos fazer coisa alguma contra isso, porque é assim que as coisas funcionam e, se não fosse assim, nem as casas do desenvolvimento cresciam para cima e já há muito todo o progresso se tinha afundado num mar sem betão. Temos a vaga sensação de que sem esses factos consumados não tínhamos construído as casas em reservas naturais, agrícolas, de orla marítima,... nem tínhamos direito a ver a especulação do oito que se faz oitenta para que alguém ou algum grupo num só dia enriqueça por ter sabido um dia antes o que podia ser feito mais por obra e graça de um técnico do que de outro qualquer nosso senhor do planeamento. Temos a vaga sensação de que não vem mal ao mundo por cada um de nós fazer o mesmo que todos os outros fazem ainda que seja errado e até, por vezes, crime. A vaga sensação de que há coisas que se repetem.
Lemos as letras gordas das brincadeiras de corredor em que cada um dá corda aos seus sapatos e fala sobre educação e sobre professores e sobre o que deve e não deve ser e até sobre a melhor forma de atropelar o parlamento e o bom senso como se houvesse uma autoridade com autorização para atropelar as próprias leis, os próprios prazos, a própria sombra. Lemos as letras gordas e nem acreditamos. Sobra a vaga sensação de que tudo está a acontecer só porque está a acontecer e contra isso nada, porque sabemos que o mal está em tudo o que lemos e ouvimos e contra o céu da boca nos bate, porque não sabemos as regras deste jogo de faz de conta, a conta que fazemos ao rosário que rezamos sem sabermos que oração nem a quem.
Não há semana sem senão? Antes isso que um tiro no escuro?
[o aveiro; 14/02/2008]
fátima
levado pelo vento vaguearás pelos corredores
descobrindo o homem e o filho do homem
a quem dedicaste um último verso
uma oração assobiada num anfiteatro
cheio de peregrinos tão atentos
que não ouvem mais que os dentes
mastigando o pão, a alface, o bife panado
fátima
Ao lado da cruz, para onde sobem os olhos, há um fantástico guindaste
que te eleva ao céu assim tu o queiras.
Só precisas de atenção para veres o guindaste na fotografia
e, depois, subir ao céu não é um problema de fé.
ribeira de mágoa
oiço-te como se ouvisse um bater de asas, como se sentisse um roçar
de felino cego à porta do automóvel veloz que atropela o instante
da minha morte
ribeira de pena
recorto a luz das montanhas na espessa sombra dos altos céus:
de um só golpe as separo para ter uma linha de voo de onde espreite deus
aves de cinza
As aves carregaram para os seus ninhos o cotão dos meus bolsos, a poeira à minha volta e até o meu tabaco de cachimbo. Nunca se devem deixar os pacotes de tabaco abertos, mas naquela manhã eu não podia fechar nada que me dissesse respeito.
Estava deitado, com a cabeça enterrada na areia, enquanto as sentia debicar o meu mundo todo espalhado. Não podia mexer-me e as aves tudo levaram.
Quando me levantei tarde demais, persegui cambaleante as últimas aves do meu pesadelo. Adivinhei os seus ninhos pelos cheiro do tabaco e fiquei emboscado a ganhar forças.
Deixei passar os dias. Não me mexia. Seguia fascinado os voos e maravilhava-me com os saques das aves. Partiam e regressavam aos ninhos, sempre em construção, com pequenas partículas nos bicos. Não interrompia a construção. A partir de certa altura, habituadas à minha presença rígida, as aves começaram a debicar por perto e algumas vezes chegavam a poisar nos meus ombros.
Um dia não contive o grito horrível. E as aves esvoaçaram para fora dos seus ninhos. Entretanto, eu, com mil cuidados, subi as traves.
Quando alcancei o primeiro ninho, enchi o cachimbo e, deliciado, fumei o ninho.
pretextos. 1993. arsélio martins
Estava deitado, com a cabeça enterrada na areia, enquanto as sentia debicar o meu mundo todo espalhado. Não podia mexer-me e as aves tudo levaram.
Quando me levantei tarde demais, persegui cambaleante as últimas aves do meu pesadelo. Adivinhei os seus ninhos pelos cheiro do tabaco e fiquei emboscado a ganhar forças.
Deixei passar os dias. Não me mexia. Seguia fascinado os voos e maravilhava-me com os saques das aves. Partiam e regressavam aos ninhos, sempre em construção, com pequenas partículas nos bicos. Não interrompia a construção. A partir de certa altura, habituadas à minha presença rígida, as aves começaram a debicar por perto e algumas vezes chegavam a poisar nos meus ombros.
Um dia não contive o grito horrível. E as aves esvoaçaram para fora dos seus ninhos. Entretanto, eu, com mil cuidados, subi as traves.
Quando alcancei o primeiro ninho, enchi o cachimbo e, deliciado, fumei o ninho.
pretextos. 1993. arsélio martins
dois dedos de conversa
Dai-me dois dedos de conversa - lamuriava o pobre numa das esquinas da praça. Algumas pessoas que passavam, sem perceber o que lhe pediam, deitavam moedas para os ouvidos do pobre.
Dai-me dois dedos de conversa - clamava o pobre. Uma beata, ao passar, com a alma cheia de compreensão pelo seu papel neste mundo, parou para falar com o pobre. Os olhos dele brilharam.
E disse, de novo: Dai-me dois dedos de conversa! A beata começou por lhe perguntar pela família, se não tinha filhos que o cuidassem, se não tinha mulher, se não tinha trabalho, se não tinha vontade de rezar e agradecer a deus, se não tinha tinha, se não tinha cartão de assistência, se não tinha ido à sopa dos pobres, se não tinha ido à cáritas, se não tinha ido à missa, se não encontrava na oração o refrigério para as suas penas, se não tinha ido confessar-se, se não tinha ido comungar.
O pobre virou os olhos para o céu e disse: Pai, porque me abandonaste? A beata ganhou alento e continuou com as perguntas a que o pobre não respondia. Mas agora mais impaciente. Queria respostas e não aquela ladaínha: Dai-me dois dedos de conversa que o pobre teimava em repetir, enquanto ela falava com ele. E finalmente ela desistiu, dizendo, sem perguntar: Você ou é estúpido ou é surdo. Para o ouvir responder: Muito Obrigado.
Ela partiu intrigada, voltando para o confessionário.
O pobre saiu do seu sítio, depois de se ter limpado de todas as perguntas e de todas as moedas. No bolso, embrulhadas no seu lenço,só guardara as únicas cinco palavras que lhe tinham dado: estúpido, é, ou, surdo, você.
pretexos. 1993, arsélio martins
Dai-me dois dedos de conversa - clamava o pobre. Uma beata, ao passar, com a alma cheia de compreensão pelo seu papel neste mundo, parou para falar com o pobre. Os olhos dele brilharam.
E disse, de novo: Dai-me dois dedos de conversa! A beata começou por lhe perguntar pela família, se não tinha filhos que o cuidassem, se não tinha mulher, se não tinha trabalho, se não tinha vontade de rezar e agradecer a deus, se não tinha tinha, se não tinha cartão de assistência, se não tinha ido à sopa dos pobres, se não tinha ido à cáritas, se não tinha ido à missa, se não encontrava na oração o refrigério para as suas penas, se não tinha ido confessar-se, se não tinha ido comungar.
O pobre virou os olhos para o céu e disse: Pai, porque me abandonaste? A beata ganhou alento e continuou com as perguntas a que o pobre não respondia. Mas agora mais impaciente. Queria respostas e não aquela ladaínha: Dai-me dois dedos de conversa que o pobre teimava em repetir, enquanto ela falava com ele. E finalmente ela desistiu, dizendo, sem perguntar: Você ou é estúpido ou é surdo. Para o ouvir responder: Muito Obrigado.
Ela partiu intrigada, voltando para o confessionário.
O pobre saiu do seu sítio, depois de se ter limpado de todas as perguntas e de todas as moedas. No bolso, embrulhadas no seu lenço,só guardara as únicas cinco palavras que lhe tinham dado: estúpido, é, ou, surdo, você.
pretexos. 1993, arsélio martins
O que é bom e o que não é
Considero muito positivas todas as discussões públicas de política educativa. Do lado de dentro da esfera de influência das medidas da política governamental, consideramos que, por ser aberta ao público, a opinião dos professores se dissolve e não se forma como opinião técnica insubstituível. De certo modo, arrogamos para os professores um papel especial, subestimamos a nossa opinião como parte da opinião pública. E desvalorizamos a opinião pública sempre que ela se mostra contrária ás nossas razões. Participar em muitos debates sobre as medidas em discussão pública diminui em muito a minha participação individual. Em alguns casos, deixo de exprimir as minhas próprias ideias por elas terem sido prejudicadas em debates dos quais se fazem resumos consensuais.Para não criar incompreensão relativamente a um patamar do debate, pode acontecer que empobreça muito a participação pública. Se é verdade que não devo presumir muito sobre a bondade absoluta das minhas ideias que perdem e se vão desgastando em sucessivos debates, também é verdade que só uma parte dos participantes nas discussões teve acesso a esses pequenos senões. Minúcias? Talvez. Mas como saber que elas se perderam por terem sido apresentadas num sítio, quando podiam ter ganho outro relevo noutro lugar do tempo?
Está em discussão pública o regime jurídico de autonomia, administração e gestão das escolas. Aparentemente, esta questão tem estado na praça pública e não há quem não tenha ouvido cobras e lagartos da parte das organizações representativas dos professores, particularmente, dos sindicatos. Tais manifestações de disputa política reclama a atenção do público, mas pode desviar a discussão dos diversos aspectos, até porque os promotores das manifestações criam a ilusão de que um aspecto é a única coisa importante para esconder todas as outras. Acontece muitas vezes que a praça pública nos leva a recusar globalmente a mudança que podia interessar-nos só por termos concentrado a vontade em rejeitar um aspecto da mudança. O pior disto tudo é que enfraquecemos muito a discussão pública se a trocarmos pela praça pública e isso pode significar que prejudicamos a razão que devia ser dominante para servir de apoio a decisões. Preciso é que todos nos sintamos capazes de tomar decisões conscientes e razoáveis que, pela via da razão, obriguemos a mudar as propostas de decisão ou nos obriguemos a respeitar uma decisão que pudemos discutir livremente e apreciámos as razões que a assistem.
Um abaixo assinado, do qual consta o meu nome, pede o alargamento do tempo para a discussão. Perguntaram-me qual é a minha opinião sobre a proposta em discussão, se tem aspectos positivos, ... Assinamos a petição para dar tempo a quem sente que o não teve. Só para isso e para que tomemos a decisão que pratiquemos como a nossa decisão.
[o aveiro; 31/01/2008]
Está em discussão pública o regime jurídico de autonomia, administração e gestão das escolas. Aparentemente, esta questão tem estado na praça pública e não há quem não tenha ouvido cobras e lagartos da parte das organizações representativas dos professores, particularmente, dos sindicatos. Tais manifestações de disputa política reclama a atenção do público, mas pode desviar a discussão dos diversos aspectos, até porque os promotores das manifestações criam a ilusão de que um aspecto é a única coisa importante para esconder todas as outras. Acontece muitas vezes que a praça pública nos leva a recusar globalmente a mudança que podia interessar-nos só por termos concentrado a vontade em rejeitar um aspecto da mudança. O pior disto tudo é que enfraquecemos muito a discussão pública se a trocarmos pela praça pública e isso pode significar que prejudicamos a razão que devia ser dominante para servir de apoio a decisões. Preciso é que todos nos sintamos capazes de tomar decisões conscientes e razoáveis que, pela via da razão, obriguemos a mudar as propostas de decisão ou nos obriguemos a respeitar uma decisão que pudemos discutir livremente e apreciámos as razões que a assistem.
Um abaixo assinado, do qual consta o meu nome, pede o alargamento do tempo para a discussão. Perguntaram-me qual é a minha opinião sobre a proposta em discussão, se tem aspectos positivos, ... Assinamos a petição para dar tempo a quem sente que o não teve. Só para isso e para que tomemos a decisão que pratiquemos como a nossa decisão.
[o aveiro; 31/01/2008]
a escola olha-se ao espelho para ver o quê?
Como estudante e como professor, participei e assisti a muitos confrontos. Não estou a falar só de confrontos políticos que opõem jovens e professores a governos e às autoridades. Assisti a confrontos entre jovens, entre professores, e os que opõem jovens aos seus professores ou que opõem professores aos seus alunos no contexto da escola e da sala de aula. Em todos os ambientes de trabalho (ou de estudo, claro), haja ou não exercício de autoridade de umas pessoas sobre outras, há confrontos e conflitos. Não há professor e não há aluno que não tenha vivido alguma situação de conflito e não tenha sido marcado por boas e más resoluções de conflitos. Naturais são os conflitos na escola, e também o são nas famílias. E, no que toca às relações humanas, todos sabemos que faltam as receitas para os resolver. Uma parte da experiência docente vive dos conflitos que educam.
A profissão docente integra conflitos e resoluções, a um certo nível. Muitos conflitos são educativos para todas as partes e constituem-se imprescindíveis patamares de amadurecimento, de crescimento saudável e de conhecimento de si mesmo na relação com os outros. Um conflito na escola é um problema que pede e espera resolução.
O problema que não tem solução à vista é a ausência de conflito onde parece haver uma agitação parecida com uma guerra sem sentido, travada por crianças e jovens que se movimentam descoordenados, agredindo-se e insultando-se de forma gratuita, traindo regras minuto a minuto como personagens amorais de um video-jogo em que só o movimento doentio conta. Muitos deles esgotam-se num delírio qualquer como se prolongassem uma insónia indisciplinada por uma consola de jogo electrónico montado por outros disciplinadíssimos jovens que, em algum lugar do mundo, se concentram em gestos precisos de que depende a ração diária de arroz.
Não haverá um problema de saúde pública nestas infantis atitudes de desprezo pelas regras que vai até ao desconhecimento dos outros? Parece-me fácil explicar que há. A cura está na escola? Só quando o despertador infantil se afogar em dramas é que vamos discutir a demolição de cada dia? Que nos diz o espelho?
[o aviero; 25/01/2008]
A profissão docente integra conflitos e resoluções, a um certo nível. Muitos conflitos são educativos para todas as partes e constituem-se imprescindíveis patamares de amadurecimento, de crescimento saudável e de conhecimento de si mesmo na relação com os outros. Um conflito na escola é um problema que pede e espera resolução.
O problema que não tem solução à vista é a ausência de conflito onde parece haver uma agitação parecida com uma guerra sem sentido, travada por crianças e jovens que se movimentam descoordenados, agredindo-se e insultando-se de forma gratuita, traindo regras minuto a minuto como personagens amorais de um video-jogo em que só o movimento doentio conta. Muitos deles esgotam-se num delírio qualquer como se prolongassem uma insónia indisciplinada por uma consola de jogo electrónico montado por outros disciplinadíssimos jovens que, em algum lugar do mundo, se concentram em gestos precisos de que depende a ração diária de arroz.
Não haverá um problema de saúde pública nestas infantis atitudes de desprezo pelas regras que vai até ao desconhecimento dos outros? Parece-me fácil explicar que há. A cura está na escola? Só quando o despertador infantil se afogar em dramas é que vamos discutir a demolição de cada dia? Que nos diz o espelho?
[o aviero; 25/01/2008]
a nesga de fumo
sentado, na varanda, ao frio da tardinha
os meus olhos semicerram-se à altura desta nesga
enquanto faço pontaria com os canos do nariz
a disparar tiros de fumo e pirraça à lei mais vesga.
a biblioteca ou a vida?
Um dia de cada vez, mais velho um dia me sinto. Lembro-me vagamente de ter vontade de ser mais velho em anos do que era realmente. Também tinha a ideia que sabedoria e experiência eram maiores e melhores quanto mais velho fosse. E, de certo modo, para mim a vida não era interessante e bem a trocava por números maiores a representar a mesma vida. À minha volta, todos me diziam que não tinha razão.
Aceitei passar a viver, acumulando lentamente a sabedoria e a experiência. Lembro-me vagamente de chegar a dar-me por satisfeito com esta lenta acumulação por ver outras pessoas a elogiar este ou aquele aspecto de coisas que eu dizia ou fazia. De certo modo, devo ter incorporado na minha sabedoria e também na minha experiência, os livros e os filmes que ia vendo e, de tal modo o fazia que passava por minha sabedoria e minha experiência o que constava dos livros que lia ou dos filmes que via. Lembro-me de ter como certo ter feito ou descoberto algumas coisas que posso não ter feito e muito menos descoberto. Dava por certo para mim mesmo que uma boa parte da minha vida conhecida se tinha forjado no que ouvia, lia ou via dos outros.
Hoje, duvido dessa razão e lamento o tempo que perdi a ler os livros e a ver os filmes dos outros. Porque não guardo memória dos livros que li nem dos filmes que vi, nem dos meus actos passados, nem dos factos a que assisti. Para mim, eu sou o livro que estou a escrever e começo a pensar que, para os outros, eu também sou o livro. Mesmo para os que me conheceram ao longo de muitos anos, eu sou o livro. O que me tem dado muitos dissabores e complicações que perturbam a minha vida que... não é mais que o livro que estou a escrever.
Por ter tomado consciência de não ter memória de mim, em cada visita à biblioteca, procurava escrever uma fatia da minha vida que permanecesse em condições de ser consultada por mim em qualquer momento. Comprei um caderno de folhas que fui preenchendo laboriosamente. Como o tempo podia ser pouco, tinha de ser rápido na construção da minha vida. Esta, não a outra de que não guardara memória. De manhã, ia para a biblioteca municipal, perdido entre os outros velhos a ler as frescas pelos títulos dos diários. E passava a maior parte das tardes numa biblioteca que me diziam ser na escola onde trabalhara a maior parte da minha vida. Para não ser interrompido pela amizade curiosa das pessoas, que me conheciam não me lembrava de onde, passei a mostrar-me sempre muito ocupado e passei a ir também à biblioteca da universidade. Bem, para ser franco, eu não ia propriamente às bibliotecas. Ia para as salas de leitura e procurava livros que contassem uma história dos anos de vida de alguém que, em cada momento, podia ser a história dos anos que me faltavam à minha vida escrita. E copiava, principalmente copiava, excertos de romances tendo o cuidado de mudar os nomes das personagens. Em vez dos nomes dos personagens dos romances escrevia os nomes de pessoas de uma lista laboriosamente escrita e confirmada pelas pessoas que moravam na casa de que tinha chave e onde me aparecia comida, cama e roupa lavada.
Foi assim que escrevi milhares de folhas que foram sendo ordenadas como um diário da minha vida, desde o nascimento até agora. Por me ter sobrado algum tempo, cheguei a substituir alguns anos da minha vida por outros, se encontrava algum romance que aumentasse a coerência do relato que eu ia lendo com regularidade (era a minha vida que ali estava guardada, que diabo!). Mas tinha sempre pouco tempo, já que o tempo ia passando e eu tinha sempre de acrescentar vida lida por cada dia de vida.
Uma mulher, de que me lembro de ver desde sempre, embora me esqueça das pessoas todos os dias, falou-me do meu caderno e de um outro acontecimento que lá estaria descrito. Fui verificar e lá estava o assunto de que ela me tinha falado. Ela estava afinal a perguntar-me coisas sobre a minha vida!!! Tinha andado a ler o romance da minha vida! Não me zanguei, antes pelo contrário. Na altura, até teve muita piada porque ela corrigia a pontuação e até fazia comentários engraçados sobre a forma como aparecia no meu caderno este ou aquele acontecimento, esta ou aquela pessoa. A confusão só começou quando ela deu a ler o caderno a outras pessoas da família e houve alguém que se lembrou de dizer que aquilo era afinal o diário da minha vida e fez notar que todos os nomes eram reais. Alguém estava muito zangado com a forma como era tratado nos meus cadernos. E foi, a partir daí, que a minha vida se complicou muito. Ainda procurei defender a minha vida tal como ela estava escrita, mas isso só aumentou a zaragata à minha volta.
A partir de certa altura, aquela mulher que era referida por mulher do Arsélio (que sou eu) deixou de falar comigo. Não foi mau. Isso permitiu-me copiar de alguns romances os últimos meses da minha vida.
Agora parece-me mesmo que toda a gente já leu o meu livro ou parte dele. Já vi fotocópias soltas de algumas páginas do meu diário. É fácil identificar-me pela letra.
E tenho reparado que os mais velhos, que antes falavam comigo, vão deixando de me falar.
Uma rapariga mais nova que muitas vezes aparece a ajudar-me confirmou o que eu suspeitava: as pessoas mais velhas que comigo se cruzam constam da minha lista e não têm gostado da forma como são tratadas no livro. Eu disse à rapariga: “Ninguém lhes pediu que lessem a minha vida. A minha vida é minha e eu não dei autorização para tirarem cópias dos meus cadernos!" Ela riu-se na minha cara, enquanto me respondia: "Oh avô, deixa lá. O teu romance já é um best-seller e é considerado o livro mais intrigante que algum dia foi escrito. É mesmo estudado como um caso original de escrita". Não sei porquê, mas ocorreu-me chamar-lhe Raquel e vi que ela dava pelo nome. Então, contei-lhe como é que fazia e pedi-lhe que me acompanhasse o trabalho de adaptação pelas bibliotecas durante uns dias. Ela assim fez. Quando vi que ela tinha aprendido a completar a minha vida, despedi-me dela e de mim. Penso que ela sabe quando vai escrever a palavra FIM. Só não é a mesma letra. Mas isso não é importante. O importante para uma vida escrita é o método, a técnica, o tempo e a biblioteca.
boletim da biblioteca josé estêvão; aveiro; janeiro de 2008
Aceitei passar a viver, acumulando lentamente a sabedoria e a experiência. Lembro-me vagamente de chegar a dar-me por satisfeito com esta lenta acumulação por ver outras pessoas a elogiar este ou aquele aspecto de coisas que eu dizia ou fazia. De certo modo, devo ter incorporado na minha sabedoria e também na minha experiência, os livros e os filmes que ia vendo e, de tal modo o fazia que passava por minha sabedoria e minha experiência o que constava dos livros que lia ou dos filmes que via. Lembro-me de ter como certo ter feito ou descoberto algumas coisas que posso não ter feito e muito menos descoberto. Dava por certo para mim mesmo que uma boa parte da minha vida conhecida se tinha forjado no que ouvia, lia ou via dos outros.
Hoje, duvido dessa razão e lamento o tempo que perdi a ler os livros e a ver os filmes dos outros. Porque não guardo memória dos livros que li nem dos filmes que vi, nem dos meus actos passados, nem dos factos a que assisti. Para mim, eu sou o livro que estou a escrever e começo a pensar que, para os outros, eu também sou o livro. Mesmo para os que me conheceram ao longo de muitos anos, eu sou o livro. O que me tem dado muitos dissabores e complicações que perturbam a minha vida que... não é mais que o livro que estou a escrever.
Por ter tomado consciência de não ter memória de mim, em cada visita à biblioteca, procurava escrever uma fatia da minha vida que permanecesse em condições de ser consultada por mim em qualquer momento. Comprei um caderno de folhas que fui preenchendo laboriosamente. Como o tempo podia ser pouco, tinha de ser rápido na construção da minha vida. Esta, não a outra de que não guardara memória. De manhã, ia para a biblioteca municipal, perdido entre os outros velhos a ler as frescas pelos títulos dos diários. E passava a maior parte das tardes numa biblioteca que me diziam ser na escola onde trabalhara a maior parte da minha vida. Para não ser interrompido pela amizade curiosa das pessoas, que me conheciam não me lembrava de onde, passei a mostrar-me sempre muito ocupado e passei a ir também à biblioteca da universidade. Bem, para ser franco, eu não ia propriamente às bibliotecas. Ia para as salas de leitura e procurava livros que contassem uma história dos anos de vida de alguém que, em cada momento, podia ser a história dos anos que me faltavam à minha vida escrita. E copiava, principalmente copiava, excertos de romances tendo o cuidado de mudar os nomes das personagens. Em vez dos nomes dos personagens dos romances escrevia os nomes de pessoas de uma lista laboriosamente escrita e confirmada pelas pessoas que moravam na casa de que tinha chave e onde me aparecia comida, cama e roupa lavada.
Foi assim que escrevi milhares de folhas que foram sendo ordenadas como um diário da minha vida, desde o nascimento até agora. Por me ter sobrado algum tempo, cheguei a substituir alguns anos da minha vida por outros, se encontrava algum romance que aumentasse a coerência do relato que eu ia lendo com regularidade (era a minha vida que ali estava guardada, que diabo!). Mas tinha sempre pouco tempo, já que o tempo ia passando e eu tinha sempre de acrescentar vida lida por cada dia de vida.
Uma mulher, de que me lembro de ver desde sempre, embora me esqueça das pessoas todos os dias, falou-me do meu caderno e de um outro acontecimento que lá estaria descrito. Fui verificar e lá estava o assunto de que ela me tinha falado. Ela estava afinal a perguntar-me coisas sobre a minha vida!!! Tinha andado a ler o romance da minha vida! Não me zanguei, antes pelo contrário. Na altura, até teve muita piada porque ela corrigia a pontuação e até fazia comentários engraçados sobre a forma como aparecia no meu caderno este ou aquele acontecimento, esta ou aquela pessoa. A confusão só começou quando ela deu a ler o caderno a outras pessoas da família e houve alguém que se lembrou de dizer que aquilo era afinal o diário da minha vida e fez notar que todos os nomes eram reais. Alguém estava muito zangado com a forma como era tratado nos meus cadernos. E foi, a partir daí, que a minha vida se complicou muito. Ainda procurei defender a minha vida tal como ela estava escrita, mas isso só aumentou a zaragata à minha volta.
A partir de certa altura, aquela mulher que era referida por mulher do Arsélio (que sou eu) deixou de falar comigo. Não foi mau. Isso permitiu-me copiar de alguns romances os últimos meses da minha vida.
Agora parece-me mesmo que toda a gente já leu o meu livro ou parte dele. Já vi fotocópias soltas de algumas páginas do meu diário. É fácil identificar-me pela letra.
E tenho reparado que os mais velhos, que antes falavam comigo, vão deixando de me falar.
Uma rapariga mais nova que muitas vezes aparece a ajudar-me confirmou o que eu suspeitava: as pessoas mais velhas que comigo se cruzam constam da minha lista e não têm gostado da forma como são tratadas no livro. Eu disse à rapariga: “Ninguém lhes pediu que lessem a minha vida. A minha vida é minha e eu não dei autorização para tirarem cópias dos meus cadernos!" Ela riu-se na minha cara, enquanto me respondia: "Oh avô, deixa lá. O teu romance já é um best-seller e é considerado o livro mais intrigante que algum dia foi escrito. É mesmo estudado como um caso original de escrita". Não sei porquê, mas ocorreu-me chamar-lhe Raquel e vi que ela dava pelo nome. Então, contei-lhe como é que fazia e pedi-lhe que me acompanhasse o trabalho de adaptação pelas bibliotecas durante uns dias. Ela assim fez. Quando vi que ela tinha aprendido a completar a minha vida, despedi-me dela e de mim. Penso que ela sabe quando vai escrever a palavra FIM. Só não é a mesma letra. Mas isso não é importante. O importante para uma vida escrita é o método, a técnica, o tempo e a biblioteca.
boletim da biblioteca josé estêvão; aveiro; janeiro de 2008
transparece o que se mostra
O nosso país pertence à comunidade europeia. Muitas directivas europeias são transpostas para o quadro legal português e passam a obrigar os portugueses. Muitas outras não são transpostas e, independentemente, de se considerar que isso é bom ou mau, manda a transparência que, sobre a situação de Portugal na transposição das directivas, não haja qualquer omissão por parte do governo. Não se pode esconder uma directiva que é transposta. Mas de certo modo escondem-se as directivas sempre que elas não são transpostas, como se elas não existissem para os cidadãos comuns. Não é bom para a democracia. De certo modo, os cidadãos ficam inibidos de exigir a transposição de directivas que considerem favoráveis.
Também temos problemas com aplicações das leis da república a todo o território. Damos por eles, quando o governo regional da região autónoma da Madeira opta por ignorar ou quando recusa obstinadamente cumprir alguma lei da república. De qualquer modo, os madeirenses e açorianos devem ter informações sobre todas as leis e sobre os aspectos de alguma lei do governo da república não aplicados às suas regiões. A transparência está no respeito pelo direito à informação, não é bom que nos sintamos protegidos por não conhecermos.
Os municípios, câmaras e assembleias municipais, têm algumas competências na aplicação das leis da república ao nível local, por exemplo, na fixação das taxas ou na percentagem desta ou daquela taxa que, a ser cobrada, fica para o município. A este respeito, há uma parte dos nossos eleitos que acha más todas as taxas sobre aspectos que respeitem à iniciativa privada na aplicação de capitais. E reparámos na dificuldade real em aplicar taxas moderadoras sobre casas devolutas há vários anos, até ao ponto de tentarem ignorar a lei e a possibilidade de decisão da Assembleia.
Acho eu e acham outros eleitos que a Assembleia deve tomar decisão pública sobre o assunto ainda que seja para justificar e assumir a responsabilidade da não aplicação de qualquer taxa. Nada é menos transparente que ignorar parte da lei que não se quer aplicar.
O que transparece é o que se mostra.
[o aveiro; 17/01/2008]
Também temos problemas com aplicações das leis da república a todo o território. Damos por eles, quando o governo regional da região autónoma da Madeira opta por ignorar ou quando recusa obstinadamente cumprir alguma lei da república. De qualquer modo, os madeirenses e açorianos devem ter informações sobre todas as leis e sobre os aspectos de alguma lei do governo da república não aplicados às suas regiões. A transparência está no respeito pelo direito à informação, não é bom que nos sintamos protegidos por não conhecermos.
Os municípios, câmaras e assembleias municipais, têm algumas competências na aplicação das leis da república ao nível local, por exemplo, na fixação das taxas ou na percentagem desta ou daquela taxa que, a ser cobrada, fica para o município. A este respeito, há uma parte dos nossos eleitos que acha más todas as taxas sobre aspectos que respeitem à iniciativa privada na aplicação de capitais. E reparámos na dificuldade real em aplicar taxas moderadoras sobre casas devolutas há vários anos, até ao ponto de tentarem ignorar a lei e a possibilidade de decisão da Assembleia.
Acho eu e acham outros eleitos que a Assembleia deve tomar decisão pública sobre o assunto ainda que seja para justificar e assumir a responsabilidade da não aplicação de qualquer taxa. Nada é menos transparente que ignorar parte da lei que não se quer aplicar.
O que transparece é o que se mostra.
[o aveiro; 17/01/2008]
falar disto e disso e não falar
Os assuntos assumem mais ou menos importância para os cidadãos conforme são mais ou menos falados.
Quando os políticos no poder deixam fora dos seus programas e das suas preocupações um determinado sector, há logo quem pense que esse sector perdeu importância aos olhos da governação e pode sair prejudicado por falta de visibilidade e de medidas viradas para o seu desenvolvimento.
Penso que os cidadãos que actualmente se manifestam contra as mudanças na rede nacional de saúde preferiam que a saúde não tivesse merecido tanta atenção da parte do poder político, já que está a fechar serviços locais de cuidados de saúde. Para o governo, trata-se de garantir os cuidados de saúde com qualidade e ao mesmo tempo garantir a sustentabilidade futura do sistema nacional de saúde. E a atenção centrada no sector faz de cada facto que, noutras ocasiões, não seria notícia e é agora prova disto ou daquilo conforme os interesses em disputa.
Também o sector da educação, que clama e reclama uma atenção especial do conjunto da sociedade, não deixa de reclamar contra as medidas do governo para o sector. Com razão, os professores reclamam melhores condições de vida e de trabalho para um melhor desempenho a traduzir-se em melhores resultados na educação das crianças e jovens. Com apreensão, verificam que as medidas do governo se concentram na organização do trabalho das escolas e nos professores, fazendo crer que os resultados do sistema podem melhorar por simples alterações à organização do trabalho ou do sistema de avaliação dos professores. E cada pequeno facto da vida escolar ganha uma importância extraordinária.
Temos razão quando desconfiamos que, para as medidas governativas actuais, muito contribuíram critérios estranhos à melhoria da saúde ou da educação. E o governo até reconhece que pode estar a explicar mal as suas acções ou sem conseguir encontrar a bondade das ditas.
Já nas discussões locais sobre plano e orçamento para o município, a saúde e a educação ganharam novos sentidos. Pode acontecer que a saúde seja um pau de dois bicos e um parque escolar seja sinónimo de parque de estacionamento. A educação para a saúde da educação ainda vai ser disciplina localmente útil.
[o aveiro; 10/01/2008]
Quando os políticos no poder deixam fora dos seus programas e das suas preocupações um determinado sector, há logo quem pense que esse sector perdeu importância aos olhos da governação e pode sair prejudicado por falta de visibilidade e de medidas viradas para o seu desenvolvimento.
Penso que os cidadãos que actualmente se manifestam contra as mudanças na rede nacional de saúde preferiam que a saúde não tivesse merecido tanta atenção da parte do poder político, já que está a fechar serviços locais de cuidados de saúde. Para o governo, trata-se de garantir os cuidados de saúde com qualidade e ao mesmo tempo garantir a sustentabilidade futura do sistema nacional de saúde. E a atenção centrada no sector faz de cada facto que, noutras ocasiões, não seria notícia e é agora prova disto ou daquilo conforme os interesses em disputa.
Também o sector da educação, que clama e reclama uma atenção especial do conjunto da sociedade, não deixa de reclamar contra as medidas do governo para o sector. Com razão, os professores reclamam melhores condições de vida e de trabalho para um melhor desempenho a traduzir-se em melhores resultados na educação das crianças e jovens. Com apreensão, verificam que as medidas do governo se concentram na organização do trabalho das escolas e nos professores, fazendo crer que os resultados do sistema podem melhorar por simples alterações à organização do trabalho ou do sistema de avaliação dos professores. E cada pequeno facto da vida escolar ganha uma importância extraordinária.
Temos razão quando desconfiamos que, para as medidas governativas actuais, muito contribuíram critérios estranhos à melhoria da saúde ou da educação. E o governo até reconhece que pode estar a explicar mal as suas acções ou sem conseguir encontrar a bondade das ditas.
Já nas discussões locais sobre plano e orçamento para o município, a saúde e a educação ganharam novos sentidos. Pode acontecer que a saúde seja um pau de dois bicos e um parque escolar seja sinónimo de parque de estacionamento. A educação para a saúde da educação ainda vai ser disciplina localmente útil.
[o aveiro; 10/01/2008]
sem fim
leva-me para onde fores e chegados lá
conta-me uma história sem final feliz
que eu só aceito destino para a viagem
se a ternura que me deres não tiver fim
conta-me uma história sem final feliz
que eu só aceito destino para a viagem
se a ternura que me deres não tiver fim
A desordem vem de onde se espera
O fim do ano que passou estava cheio de surpresas que o não eram.
Os administradores e gestores do maior banco privado português tinham brincado de faz de conta que o dinheiro dos accionistas era dinheiro dos administradores ou gestores. Emprestavam milhões a amigos e familiares e depois davam por incobráveis essas dívidas sem que nada acontecesse. Sabemos que estão na prisão pessoas que roubaram a milionésima parte dos desvios que ouvimos mencionar neste baile de banqueiros. No labirinto do jogo de faz de conta dos banqueiros e amigos, vimos como eles se deixam filmar em desfiles de pouca vergonha como se nenhum crime houvesse. Há quem diga que, nos casos em estudo, o roubo foi feito de acordo com a lei. E a pouca vergonha que se lhes vê na cara talvez lhes venha de terem acreditado no grande educador cuja ética reside na lei.
Há muito tempo que se vem espalhando a fama das virtudes da iniciativa privada e mais fama ainda têm os gestores privados que passam pelo poder político e até fazem leis convenientes para serem a ética conveniente na troca de favores e aos corredores criados para ir do público ao privado.
Quando a crise se instala no privado, saltam gestores do público para gerir o privado, saltam nomes de conhecidos políticos a querer atribuir a si e aos seus a virtude da boa administração dos bens privados e públicos.
Não, não é a política que dirige a economia. Alguns políticos descobriram que a melhor e mais mesquinha forma de defender os seus interesses mais privados e inconfessáveis é ser político de serviço até passar a gestor privado e depois público e depois privado.
Nunca as viagens entre os sectores público e privado tinham parecido tão privadas. Já nem têm vergonha de vir exigir o quinhão deste ou daquele partido, como se fosse natural dividir a economia pelos partidos que disputam o poder político.
Como pode ser bom o ano que aí vem?
Há alguma irracionalidade no exercício de alguns poderes. Só podemos esperar que a razão e a justiça possam ocupar discretos lugares de onde se deixem ver e ouvir como rigorosos exercícios de liberdade e democracia e não como maus espectáculos sem fim à vista.
Que desordem habita o lugar dos poderosos?
[o aveiro; 04/01/2007]
Os administradores e gestores do maior banco privado português tinham brincado de faz de conta que o dinheiro dos accionistas era dinheiro dos administradores ou gestores. Emprestavam milhões a amigos e familiares e depois davam por incobráveis essas dívidas sem que nada acontecesse. Sabemos que estão na prisão pessoas que roubaram a milionésima parte dos desvios que ouvimos mencionar neste baile de banqueiros. No labirinto do jogo de faz de conta dos banqueiros e amigos, vimos como eles se deixam filmar em desfiles de pouca vergonha como se nenhum crime houvesse. Há quem diga que, nos casos em estudo, o roubo foi feito de acordo com a lei. E a pouca vergonha que se lhes vê na cara talvez lhes venha de terem acreditado no grande educador cuja ética reside na lei.
Há muito tempo que se vem espalhando a fama das virtudes da iniciativa privada e mais fama ainda têm os gestores privados que passam pelo poder político e até fazem leis convenientes para serem a ética conveniente na troca de favores e aos corredores criados para ir do público ao privado.
Quando a crise se instala no privado, saltam gestores do público para gerir o privado, saltam nomes de conhecidos políticos a querer atribuir a si e aos seus a virtude da boa administração dos bens privados e públicos.
Não, não é a política que dirige a economia. Alguns políticos descobriram que a melhor e mais mesquinha forma de defender os seus interesses mais privados e inconfessáveis é ser político de serviço até passar a gestor privado e depois público e depois privado.
Nunca as viagens entre os sectores público e privado tinham parecido tão privadas. Já nem têm vergonha de vir exigir o quinhão deste ou daquele partido, como se fosse natural dividir a economia pelos partidos que disputam o poder político.
Como pode ser bom o ano que aí vem?
Há alguma irracionalidade no exercício de alguns poderes. Só podemos esperar que a razão e a justiça possam ocupar discretos lugares de onde se deixem ver e ouvir como rigorosos exercícios de liberdade e democracia e não como maus espectáculos sem fim à vista.
Que desordem habita o lugar dos poderosos?
[o aveiro; 04/01/2007]
mudamos de um ano para o outro...
mudamos de um ano para o outro sem sentir essa dor suavíssima das árvores quando perdem as folhas o amarelo e o ouro na suave largada para o fértil chão preparado por tempestades nas noites e neblinas densas nas manhãs.
esperamos ver as folhas verdes nas mesmas árvores e ainda depois as mesmas amarelas ou douradas.
já não há quem chore por imaginar como a vida vai e vem e bem podemos descer encosta abaixo que nem um nenhum soluço estará solto suspenso no ar quieto deste inverno.
nem as vacas nem as vacas para murmurar no prado que nós vimos como elas passeavam entre os anos pachorrentas estrada abaixo
e o carro parado enquanto elas desciam de ano
tenso para subir estradinha acima como quem sopra uma ilusão e vê como voa.
esperamos voltar para ver as folhas verdes nas mesmas árvores dispostas a fazer fronteira entre dois lados do mundo dois mundos.
sabemos em qual dos lados do mundo os amigos plantaram a sua sede.
e bebemos a água roubada à fundura da serra a boa colheita o bom ano.
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