e chegar a casa

praceta


pois, pés a caminho...

podemos ver como a cidade se desdobra

lá dentro


há estudantes com as mãos afiadas pelos sonhos dos professores

olhando mais para cima

olhando mais para cima


ao sábado, quando voltamos ao lugar do dia antes damos por nós a olhar para o alto dos edifícios como olhamos para o alto das prisões onde um guarda vigia. o que nos move é ver se é possível escapar depois de lá entrarmos. e mesmo sabendo que não há guarda algum levantamos o olhar para ameias inexistentes onde sentinelas fumam às escondidas para nos esconder dos seus olhares.

a explicação dos pássaros

Quando um professor participa num debate sobre professores e sobre os malefícios da política da educação na actualidade, pode fingir que as decisões de hoje são as decisões do governo de hoje e louvá-las ou repudiá-las ou mesmo fingir que, mudando o ministro (ou a sensibilidade) ou mudando o governo para dar lugar à alternativa do costume, se resolve algum problema. Assim pensa e faz quem está no governo ou quem esteve no governo passado e para lá quer voltar na próxima volta. E há mesmo quem pense sinceramente isto e acredite que o que lá vai lá vai e que o que interessa agora é manter ou mudar para garantir estas reformas ou outra forma destas reformas. Há mesmo quem admita que um governante que passa por vários governos pode fazer a reforma nunca feita e que o que antes fez não existe ou foi errado sem que se veja uma beliscadura na sua carreira, nem lhe tenha sido exigido acto de contrição ou propósito firme de emenda. Como se os ministros de um novo governo do PS ou do PSD fossem outros, porque (a)parecem como novas pessoas, novas promessas, novos argumentos.

E pode fingir que a vida da educação e dos professores depende da capacidade de fazer cair ministros e governos para os substituir por outros ainda que mais dos mesmos. Isto não é mais do que o reforço e manutenção de uma ideia de resistência, fora dos dois partidos da alternância, como força popular, que vive de organizar grandes movimentos das massas quaisquer que eles e elas sejam como prova de vida e vitalidade. É como ter um desejo centrado no corpo do descontentamento de todos, ou do descontentamento nosso de cada dia. Há uma certa grandeza nisto. E uma tragédia. Os descontentamentos de todos pertencem à ordem das circunstâncias, não são um corpo de política, nem dão o corpo às políticas. Os descontentamentos de que falamos satisfazem-se numas braçadas em mar de enganos ou em marasmo.

Quem escolhe participar e não pode escolher responsáveis para os erros de hoje nem acredita em êxitos de hoje, à pergunta sobre quem é responsável por este ou aquele erro e mal estar, só pode responder "somos todos! somos todos!" para que os culpados saibam que a culpa está, ainda que a diferentes níveis, atribuída a todos e que é preciso discutir para decisões que se coloquem para lá do jogo de cadeiras por alternância.

É preciso discutir do ponto de vista da profissão dos professores, do ponto de vista da educação e ensino das crianças e dos jovens, do ponto de vista dos interesses individuais como partes interessadas nos interesses sociais. Do ponto de vista do outro, o que tem o poder de não estar no poder. Porque, em democracia, não é tolice subir a um banco, numa qualquer esquina, para falar da esperança muda.


[o aveiro; 28/02/2008]

curvado

cada dia, um dia. quando chegamos ao fim do dia, podemos dizer uma de duas coisas: este já cá canta e eu sobrevivo para mais um dia melhor que este e há quem não tenha chegado ao fim deste dia e as esperanças que tinha evaporaram-se ou já canta mais um dia de vida vivida com sentido certo de que amanhã posso apreciar a vida com os sentidos todos despertos. de qualquer modo, ganhamos um dia ao futuro de que fazemos parte. adormecemos cansados por tudo e por nada. escolhemos viver o dia seguinte ou desistir do dia seguinte. escolhemos, de qualquer modo, escolhemos reatar uma caminhada para algum lugar vazio ou cheio. vazio porque não reconhecemos as coisas em seu lugar ou porque o nosso lugar foi roubado e não somos mais que o abismo que aceitamos sem querer. cheio, ainda que esvaziado pela usura dos outros e do tempo, porque nos reconhecemos em tudo quanto somos ainda que perdidos dos outros e pelos outros, porque nos reconhecemos noutro início de luta, porque reconhecemos a nossa respiração, a nossa forma de andar no passo que sucede ao anterior. curvados, ainda que curvados... contra o vento, levados na tempestade enquanto fumamos o nosso último cigarro.

frielas

Há sempre o dia antes. Nesse dia, houve quem alertasse para o perigo que está em adiar o que devia ser a mais simples rotina diária em troca da obra necessária para encher o bolso ao pato bravo e o olho aos eleitores embasbacados. Nesse dia, houve quem alertasse para todos os perigos de não se cumprirem os planos e as recomendações a favor do interesse natural e contra as violações grosseiras pela iniciativa local criminosa. Nesse dia antes, os representantes das autarquias desmentem tudo e reafirmam que tudo fazem para evitar o pior e até o menos mau e garantem que onde tinham a ribeira encarcerada, têm agora um vale de águas livres a fertilizar as terras em volta, que nada do que é mau se vai repetir nos mesmos termos de antigamente. Assanhados, os autarcas tornam-se mesmo façanhudos, capazes de todas as façanhas a favor do desenvolvimento e do progresso e contra toda a reacção alérgica ao betão até nos convencerem que a via única do progresso está em cada obra aprovada, com a qual evitam e fintam a chuva e o vento.

Ainda o dia antes não acabou e já pinga. A chuva vai cair sem parar por umas horas. E no dia que se segue ao dia antes, aconteceu tudo o que se tinha dito que podia acontecer de mal. As ribeiras transbordam, galgando as suas margens. E novos rios arrastam dos altos, os aterros ainda que embargados e desaguam um mar de lama numa praça da baixa ou numa rua pavimentada sobre uma linha de água num dia em que a linha de água interpretava um papel de ingénua obediente numa peça de amadores. O que ontem era uma estrada é hoje um rio em que uma camioneta da carreira está tolhida numa confusão de águas. Dentro da camioneta, homens e mulheres presos, até serem salvos por bombeiros, tremendo já de frio e de pavor. É o dia em que as ribeiras, cansadas de serem desprezadas, se fazem rios e crescem. Neste dia, saltam para a ribalta as ribeiras. Arrastam e matam, por ordem de quem? E há autarcas que procuram e encontram explicações novas para os desmentidos de ontem quando falam em frente a um cenário de explosões de água pelas ruas que pavimentam antigas ribeiras, por eles condenadas à clandestinidade mais subterrânea.

Que dirão e farão eles amanhã, quando não se lembrarem da lama e dos mortos de hoje?

Na memória do dia, sobra-nos uma placa a afogar-se num cruzamento de estradas.

[o aveiro; 21/02/2008]

ar do fim da rua

a rua janela

o nosso lugar entre as nossas coisas


(...) para ver a minha paisagem a perder de vista. Este é o meu lugar. Se há lugar que seja meu é este. E, no entanto, ele é o lugar das coisas que lá estão e não mudam de lugar. Na mesa instável, há muito pouco lugar para mim, mas há vários vasos e uma persiana estragada. Agradeço às coisas o lugar que sobra, o lugar que elas me reservaram. Só me sinto bem entre as minhas coisas, aquelas que o tempo colou em lugar à mesa e dela, por isso, não podem ser despejadas (...)

descanso


já não és o mesmo! alguém diz é alenor ou coisa assim que não sei quem é e eu de ti só sabia que não te parecias com pessoa nem coisa a não ser com coisa nenhuma que tu és mutante a cada olhar ou se não és tu quem muda mudam os olhos de quem te vê ou muda o ponto de vista.

porto em visita

porto em visita

porto em visita


o guindaste nunca é um pormenor
é um risco no céu
é a ausência do andaime


é o homem de pés no chão
a construir um céu de betão

porto em visita

porto em visita

o douro


de muitos lugares se pode olhar um rio sentado num banco qualquer
ou feito criança ao colo de uma estátua de mulher
mesmo que os outros não vejam a estátua como nós a vemos
nem vejam o mesmo rio nem leiam o livro que nós lemos

ali naquele lugar se leio a página certa deixo o livro inteiro
menos uma certa página a única que ficou minha para sempre
amarrotada no meu bolso que a guarda e ao sonho que deixei de sonhar
para a ler repetidas vezes como um amante que hesita em despedir-se.

rua de todos os dias


todos os dias várias vezes ao dia passo por ela sem ver os amigos que nela moram
o acaso esconde-nos uns dos outros é o que vos digo por experiência
só vejo o martim que é um cão daquela rua tal qual como eu fiel à manhã
e à tarde

descanso


quando estou cansado e os braços me doem em negação
dou-lhes o gesto de varrer a melancolia de uma tela
tapando com nova paisagem a paisagem que lá estava
assim olhando em dias diferentes pela mesma janela

um amigo em visita pensa que um varredor deixa de ouvir
enquanto varre o pó do seu corpo para debaixo do tapete
e em cada instante procura o instante certo para partir
no fim de uma frase em que cai um . de silêncio

os meus olhos que não cabem na minha cabeça olham
a minha boca que refaz o dia pelo verso do arrependimento
e piscam o código sincero letra a letra para que a boca o soletre

obrigada.

não há semana sem senão

Ouvimos um novo bastonário e temos a vaga sensação de que o que ele diz não carece de prova nem carece de refutação. A sensação vaga de que todos sabem do que se está a falar sem que seja possível concretizar, a sensação vaga de que, por isso, se trata de um mal social qualquer que não se pode cortar pela raíz, porque a sua raíz está no poder e no estado actual das cosias. A vaga sensação de que falamos do inevitável, de uma quadrilha de males menores a quem temos de pagar protecção para que as coisas possam continuar a funcionar.
Lemos as públicas notícias dos truques nas câmaras em que os técnicos de uma delas assinam de cruz os projectos dos técnicos da outra onde podem aprovar os projectos que fazem, embora não possam assinar os projectos que aprovam. Temos a vaga sensação de que em todo o país, em cada uma das câmaras, pode acontecer isso mesmo e não podemos fazer coisa alguma contra isso, porque é assim que as coisas funcionam e, se não fosse assim, nem as casas do desenvolvimento cresciam para cima e já há muito todo o progresso se tinha afundado num mar sem betão. Temos a vaga sensação de que sem esses factos consumados não tínhamos construído as casas em reservas naturais, agrícolas, de orla marítima,... nem tínhamos direito a ver a especulação do oito que se faz oitenta para que alguém ou algum grupo num só dia enriqueça por ter sabido um dia antes o que podia ser feito mais por obra e graça de um técnico do que de outro qualquer nosso senhor do planeamento. Temos a vaga sensação de que não vem mal ao mundo por cada um de nós fazer o mesmo que todos os outros fazem ainda que seja errado e até, por vezes, crime. A vaga sensação de que há coisas que se repetem.
Lemos as letras gordas das brincadeiras de corredor em que cada um dá corda aos seus sapatos e fala sobre educação e sobre professores e sobre o que deve e não deve ser e até sobre a melhor forma de atropelar o parlamento e o bom senso como se houvesse uma autoridade com autorização para atropelar as próprias leis, os próprios prazos, a própria sombra. Lemos as letras gordas e nem acreditamos. Sobra a vaga sensação de que tudo está a acontecer só porque está a acontecer e contra isso nada, porque sabemos que o mal está em tudo o que lemos e ouvimos e contra o céu da boca nos bate, porque não sabemos as regras deste jogo de faz de conta, a conta que fazemos ao rosário que rezamos sem sabermos que oração nem a quem.
Não há semana sem senão? Antes isso que um tiro no escuro?


[o aveiro; 14/02/2008]

fátima



levado pelo vento vaguearás pelos corredores
descobrindo o homem e o filho do homem
a quem dedicaste um último verso
uma oração assobiada num anfiteatro
cheio de peregrinos tão atentos

que não ouvem mais que os dentes
mastigando o pão, a alface, o bife panado

fátima



Ao lado da cruz, para onde sobem os olhos, há um fantástico guindaste
que te eleva ao céu assim tu o queiras.

Só precisas de atenção para veres o guindaste na fotografia
e, depois, subir ao céu não é um problema de fé.

fátima

fátima

fátima

fátima, mesmo!

fátima, mesmo!

ribeira de pena


recorto a luz das montanhas na espessa sombra dos altos céus:
de um só golpe as separo para ter uma linha de voo de onde espreite deus

rua do mercado de santiago

aves de cinza

As aves carregaram para os seus ninhos o cotão dos meus bolsos, a poeira à minha volta e até o meu tabaco de cachimbo. Nunca se devem deixar os pacotes de tabaco abertos, mas naquela manhã eu não podia fechar nada que me dissesse respeito.
Estava deitado, com a cabeça enterrada na areia, enquanto as sentia debicar o meu mundo todo espalhado. Não podia mexer-me e as aves tudo levaram.
Quando me levantei tarde demais, persegui cambaleante as últimas aves do meu pesadelo. Adivinhei os seus ninhos pelos cheiro do tabaco e fiquei emboscado a ganhar forças.
Deixei passar os dias. Não me mexia. Seguia fascinado os voos e maravilhava-me com os saques das aves. Partiam e regressavam aos ninhos, sempre em construção, com pequenas partículas nos bicos. Não interrompia a construção. A partir de certa altura, habituadas à minha presença rígida, as aves começaram a debicar por perto e algumas vezes chegavam a poisar nos meus ombros.

Um dia não contive o grito horrível. E as aves esvoaçaram para fora dos seus ninhos. Entretanto, eu, com mil cuidados, subi as traves.

Quando alcancei o primeiro ninho, enchi o cachimbo e, deliciado, fumei o ninho.


pretextos. 1993. arsélio martins

a rua de perdizes

dois dedos de conversa

Dai-me dois dedos de conversa - lamuriava o pobre numa das esquinas da praça. Algumas pessoas que passavam, sem perceber o que lhe pediam, deitavam moedas para os ouvidos do pobre.

Dai-me dois dedos de conversa - clamava o pobre. Uma beata, ao passar, com a alma cheia de compreensão pelo seu papel neste mundo, parou para falar com o pobre. Os olhos dele brilharam.

E disse, de novo: Dai-me dois dedos de conversa! A beata começou por lhe perguntar pela família, se não tinha filhos que o cuidassem, se não tinha mulher, se não tinha trabalho, se não tinha vontade de rezar e agradecer a deus, se não tinha tinha, se não tinha cartão de assistência, se não tinha ido à sopa dos pobres, se não tinha ido à cáritas, se não tinha ido à missa, se não encontrava na oração o refrigério para as suas penas, se não tinha ido confessar-se, se não tinha ido comungar.

O pobre virou os olhos para o céu e disse: Pai, porque me abandonaste? A beata ganhou alento e continuou com as perguntas a que o pobre não respondia. Mas agora mais impaciente. Queria respostas e não aquela ladaínha: Dai-me dois dedos de conversa que o pobre teimava em repetir, enquanto ela falava com ele. E finalmente ela desistiu, dizendo, sem perguntar: Você ou é estúpido ou é surdo. Para o ouvir responder: Muito Obrigado.

Ela partiu intrigada, voltando para o confessionário.

O pobre saiu do seu sítio, depois de se ter limpado de todas as perguntas e de todas as moedas. No bolso, embrulhadas no seu lenço,só guardara as únicas cinco palavras que lhe tinham dado: estúpido, é, ou, surdo, você.


pretexos. 1993, arsélio martins

O que é bom e o que não é

Considero muito positivas todas as discussões públicas de política educativa. Do lado de dentro da esfera de influência das medidas da política governamental, consideramos que, por ser aberta ao público, a opinião dos professores se dissolve e não se forma como opinião técnica insubstituível. De certo modo, arrogamos para os professores um papel especial, subestimamos a nossa opinião como parte da opinião pública. E desvalorizamos a opinião pública sempre que ela se mostra contrária ás nossas razões. Participar em muitos debates sobre as medidas em discussão pública diminui em muito a minha participação individual. Em alguns casos, deixo de exprimir as minhas próprias ideias por elas terem sido prejudicadas em debates dos quais se fazem resumos consensuais.Para não criar incompreensão relativamente a um patamar do debate, pode acontecer que empobreça muito a participação pública. Se é verdade que não devo presumir muito sobre a bondade absoluta das minhas ideias que perdem e se vão desgastando em sucessivos debates, também é verdade que só uma parte dos participantes nas discussões teve acesso a esses pequenos senões. Minúcias? Talvez. Mas como saber que elas se perderam por terem sido apresentadas num sítio, quando podiam ter ganho outro relevo noutro lugar do tempo?
Está em discussão pública o regime jurídico de autonomia, administração e gestão das escolas. Aparentemente, esta questão tem estado na praça pública e não há quem não tenha ouvido cobras e lagartos da parte das organizações representativas dos professores, particularmente, dos sindicatos. Tais manifestações de disputa política reclama a atenção do público, mas pode desviar a discussão dos diversos aspectos, até porque os promotores das manifestações criam a ilusão de que um aspecto é a única coisa importante para esconder todas as outras. Acontece muitas vezes que a praça pública nos leva a recusar globalmente a mudança que podia interessar-nos só por termos concentrado a vontade em rejeitar um aspecto da mudança. O pior disto tudo é que enfraquecemos muito a discussão pública se a trocarmos pela praça pública e isso pode significar que prejudicamos a razão que devia ser dominante para servir de apoio a decisões. Preciso é que todos nos sintamos capazes de tomar decisões conscientes e razoáveis que, pela via da razão, obriguemos a mudar as propostas de decisão ou nos obriguemos a respeitar uma decisão que pudemos discutir livremente e apreciámos as razões que a assistem.
Um abaixo assinado, do qual consta o meu nome, pede o alargamento do tempo para a discussão. Perguntaram-me qual é a minha opinião sobre a proposta em discussão, se tem aspectos positivos, ... Assinamos a petição para dar tempo a quem sente que o não teve. Só para isso e para que tomemos a decisão que pratiquemos como a nossa decisão.

[o aveiro; 31/01/2008]

a escola olha-se ao espelho para ver o quê?

Como estudante e como professor, participei e assisti a muitos confrontos. Não estou a falar só de confrontos políticos que opõem jovens e professores a governos e às autoridades. Assisti a confrontos entre jovens, entre professores, e os que opõem jovens aos seus professores ou que opõem professores aos seus alunos no contexto da escola e da sala de aula. Em todos os ambientes de trabalho (ou de estudo, claro), haja ou não exercício de autoridade de umas pessoas sobre outras, há confrontos e conflitos. Não há professor e não há aluno que não tenha vivido alguma situação de conflito e não tenha sido marcado por boas e más resoluções de conflitos. Naturais são os conflitos na escola, e também o são nas famílias. E, no que toca às relações humanas, todos sabemos que faltam as receitas para os resolver. Uma parte da experiência docente vive dos conflitos que educam.
A profissão docente integra conflitos e resoluções, a um certo nível. Muitos conflitos são educativos para todas as partes e constituem-se imprescindíveis patamares de amadurecimento, de crescimento saudável e de conhecimento de si mesmo na relação com os outros. Um conflito na escola é um problema que pede e espera resolução.

O problema que não tem solução à vista é a ausência de conflito onde parece haver uma agitação parecida com uma guerra sem sentido, travada por crianças e jovens que se movimentam descoordenados, agredindo-se e insultando-se de forma gratuita, traindo regras minuto a minuto como personagens amorais de um video-jogo em que só o movimento doentio conta. Muitos deles esgotam-se num delírio qualquer como se prolongassem uma insónia indisciplinada por uma consola de jogo electrónico montado por outros disciplinadíssimos jovens que, em algum lugar do mundo, se concentram em gestos precisos de que depende a ração diária de arroz.

Não haverá um problema de saúde pública nestas infantis atitudes de desprezo pelas regras que vai até ao desconhecimento dos outros? Parece-me fácil explicar que há. A cura está na escola? Só quando o despertador infantil se afogar em dramas é que vamos discutir a demolição de cada dia? Que nos diz o espelho?

[o aviero; 25/01/2008]

a nesga de fumo



sentado, na varanda, ao frio da tardinha
os meus olhos semicerram-se à altura desta nesga
enquanto faço pontaria com os canos do nariz
a disparar tiros de fumo e pirraça à lei mais vesga.

a biblioteca ou a vida?

Um dia de cada vez, mais velho um dia me sinto. Lembro-me vagamente de ter vontade de ser mais velho em anos do que era realmente. Também tinha a ideia que sabedoria e experiência eram maiores e melhores quanto mais velho fosse. E, de certo modo, para mim a vida não era interessante e bem a trocava por números maiores a representar a mesma vida. À minha volta, todos me diziam que não tinha razão.

Aceitei passar a viver, acumulando lentamente a sabedoria e a experiência. Lembro-me vagamente de chegar a dar-me por satisfeito com esta lenta acumulação por ver outras pessoas a elogiar este ou aquele aspecto de coisas que eu dizia ou fazia. De certo modo, devo ter incorporado na minha sabedoria e também na minha experiência, os livros e os filmes que ia vendo e, de tal modo o fazia que passava por minha sabedoria e minha experiência o que constava dos livros que lia ou dos filmes que via. Lembro-me de ter como certo ter feito ou descoberto algumas coisas que posso não ter feito e muito menos descoberto. Dava por certo para mim mesmo que uma boa parte da minha vida conhecida se tinha forjado no que ouvia, lia ou via dos outros.

Hoje, duvido dessa razão e lamento o tempo que perdi a ler os livros e a ver os filmes dos outros. Porque não guardo memória dos livros que li nem dos filmes que vi, nem dos meus actos passados, nem dos factos a que assisti. Para mim, eu sou o livro que estou a escrever e começo a pensar que, para os outros, eu também sou o livro. Mesmo para os que me conheceram ao longo de muitos anos, eu sou o livro. O que me tem dado muitos dissabores e complicações que perturbam a minha vida que... não é mais que o livro que estou a escrever.

Por ter tomado consciência de não ter memória de mim, em cada visita à biblioteca, procurava escrever uma fatia da minha vida que permanecesse em condições de ser consultada por mim em qualquer momento. Comprei um caderno de folhas que fui preenchendo laboriosamente. Como o tempo podia ser pouco, tinha de ser rápido na construção da minha vida. Esta, não a outra de que não guardara memória. De manhã, ia para a biblioteca municipal, perdido entre os outros velhos a ler as frescas pelos títulos dos diários. E passava a maior parte das tardes numa biblioteca que me diziam ser na escola onde trabalhara a maior parte da minha vida. Para não ser interrompido pela amizade curiosa das pessoas, que me conheciam não me lembrava de onde, passei a mostrar-me sempre muito ocupado e passei a ir também à biblioteca da universidade. Bem, para ser franco, eu não ia propriamente às bibliotecas. Ia para as salas de leitura e procurava livros que contassem uma história dos anos de vida de alguém que, em cada momento, podia ser a história dos anos que me faltavam à minha vida escrita. E copiava, principalmente copiava, excertos de romances tendo o cuidado de mudar os nomes das personagens. Em vez dos nomes dos personagens dos romances escrevia os nomes de pessoas de uma lista laboriosamente escrita e confirmada pelas pessoas que moravam na casa de que tinha chave e onde me aparecia comida, cama e roupa lavada.

Foi assim que escrevi milhares de folhas que foram sendo ordenadas como um diário da minha vida, desde o nascimento até agora. Por me ter sobrado algum tempo, cheguei a substituir alguns anos da minha vida por outros, se encontrava algum romance que aumentasse a coerência do relato que eu ia lendo com regularidade (era a minha vida que ali estava guardada, que diabo!). Mas tinha sempre pouco tempo, já que o tempo ia passando e eu tinha sempre de acrescentar vida lida por cada dia de vida.

Uma mulher, de que me lembro de ver desde sempre, embora me esqueça das pessoas todos os dias, falou-me do meu caderno e de um outro acontecimento que lá estaria descrito. Fui verificar e lá estava o assunto de que ela me tinha falado. Ela estava afinal a perguntar-me coisas sobre a minha vida!!! Tinha andado a ler o romance da minha vida! Não me zanguei, antes pelo contrário. Na altura, até teve muita piada porque ela corrigia a pontuação e até fazia comentários engraçados sobre a forma como aparecia no meu caderno este ou aquele acontecimento, esta ou aquela pessoa. A confusão só começou quando ela deu a ler o caderno a outras pessoas da família e houve alguém que se lembrou de dizer que aquilo era afinal o diário da minha vida e fez notar que todos os nomes eram reais. Alguém estava muito zangado com a forma como era tratado nos meus cadernos. E foi, a partir daí, que a minha vida se complicou muito. Ainda procurei defender a minha vida tal como ela estava escrita, mas isso só aumentou a zaragata à minha volta.

A partir de certa altura, aquela mulher que era referida por mulher do Arsélio (que sou eu) deixou de falar comigo. Não foi mau. Isso permitiu-me copiar de alguns romances os últimos meses da minha vida.

Agora parece-me mesmo que toda a gente já leu o meu livro ou parte dele. Já vi fotocópias soltas de algumas páginas do meu diário. É fácil identificar-me pela letra.

E tenho reparado que os mais velhos, que antes falavam comigo, vão deixando de me falar.

Uma rapariga mais nova que muitas vezes aparece a ajudar-me confirmou o que eu suspeitava: as pessoas mais velhas que comigo se cruzam constam da minha lista e não têm gostado da forma como são tratadas no livro. Eu disse à rapariga: “Ninguém lhes pediu que lessem a minha vida. A minha vida é minha e eu não dei autorização para tirarem cópias dos meus cadernos!" Ela riu-se na minha cara, enquanto me respondia: "Oh avô, deixa lá. O teu romance já é um best-seller e é considerado o livro mais intrigante que algum dia foi escrito. É mesmo estudado como um caso original de escrita". Não sei porquê, mas ocorreu-me chamar-lhe Raquel e vi que ela dava pelo nome. Então, contei-lhe como é que fazia e pedi-lhe que me acompanhasse o trabalho de adaptação pelas bibliotecas durante uns dias. Ela assim fez. Quando vi que ela tinha aprendido a completar a minha vida, despedi-me dela e de mim. Penso que ela sabe quando vai escrever a palavra FIM. Só não é a mesma letra. Mas isso não é importante. O importante para uma vida escrita é o método, a técnica, o tempo e a biblioteca.

boletim da biblioteca josé estêvão; aveiro; janeiro de 2008

transparece o que se mostra

O nosso país pertence à comunidade europeia. Muitas directivas europeias são transpostas para o quadro legal português e passam a obrigar os portugueses. Muitas outras não são transpostas e, independentemente, de se considerar que isso é bom ou mau, manda a transparência que, sobre a situação de Portugal na transposição das directivas, não haja qualquer omissão por parte do governo. Não se pode esconder uma directiva que é transposta. Mas de certo modo escondem-se as directivas sempre que elas não são transpostas, como se elas não existissem para os cidadãos comuns. Não é bom para a democracia. De certo modo, os cidadãos ficam inibidos de exigir a transposição de directivas que considerem favoráveis.

Também temos problemas com aplicações das leis da república a todo o território. Damos por eles, quando o governo regional da região autónoma da Madeira opta por ignorar ou quando recusa obstinadamente cumprir alguma lei da república. De qualquer modo, os madeirenses e açorianos devem ter informações sobre todas as leis e sobre os aspectos de alguma lei do governo da república não aplicados às suas regiões. A transparência está no respeito pelo direito à informação, não é bom que nos sintamos protegidos por não conhecermos.

Os municípios, câmaras e assembleias municipais, têm algumas competências na aplicação das leis da república ao nível local, por exemplo, na fixação das taxas ou na percentagem desta ou daquela taxa que, a ser cobrada, fica para o município. A este respeito, há uma parte dos nossos eleitos que acha más todas as taxas sobre aspectos que respeitem à iniciativa privada na aplicação de capitais. E reparámos na dificuldade real em aplicar taxas moderadoras sobre casas devolutas há vários anos, até ao ponto de tentarem ignorar a lei e a possibilidade de decisão da Assembleia.
Acho eu e acham outros eleitos que a Assembleia deve tomar decisão pública sobre o assunto ainda que seja para justificar e assumir a responsabilidade da não aplicação de qualquer taxa. Nada é menos transparente que ignorar parte da lei que não se quer aplicar.

O que transparece é o que se mostra.

[o aveiro; 17/01/2008]

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