Há alturas em que parece impossível não termos assunto. E sobre os assuntos do dia, há mesmo quem espere que todos falem, mesmo que não saibam do que falam ou digam o mesmo que já foi dito. Ler e reler opiniões que não adiantam coisa alguma ao já dito, torna-se tão cansativo! O assunto do dia sai da ordem do dia para passar a ser da ordem do horrível Quando um dos nossos assuntos se torna assunto do dia e da moda, sobre o qual todos temos de falar, tornamo-nos mudos para a nossa vida. Mudos de espanto, diminuídos e tristes!
Perdidos do nosso assunto, e incapazes para qualquer outro assunto. Sem assunto, pois.
Tentando não ceder à avalanche das mensagens dos que cavalgam a onda dos professores e da educação(?) numa euforia sem limites, começamos a dar atenção às coisas e pessoas em que não reparamos habitualmente.
À minha frente, uma jovem de negro segue calmamente. Penso em acelerar, mas desisto porque a jovem de negro vai de um lado ao outro do passeio e eu não acerto com os melhores momentos para a ultrapassagem. Ou é ela que é imprevisível na sua forma de andar em frente? Pelo sim, pelo não, deixo-me ir atrás dela que não tenho pressa. Depois da passadeira, parece-me que ela se integra num grupo que já circulava por aquele passeio.
E eu continuo o meu caminho sem assunto. Até que olho para o telefone e relógio que começara a vibrar como um alarme a avisar-me para não me atrasar e a mandar-me acelerar para, sem pressas, chegar a tempo ao lugar do trabalho.
Ao alargar a passada, volto a olhar para as costas que seguem à minha frente. Para escolher a melhor abordagem ao passeio estreito, para a ultrapassagem perfeita. E vejo que a jovem de negro, de novo isolada no passeio, dança ao som de uma música só dela. Eu não ouço, mas é como se ouvisse o som da brisa que a faz oscilar como um junco, em pé e arrancado das suas raízes.
Contrariado, decido mesmo ultrapassá-la. Um pé no passeio, outro na estrada, faço uma magnífica manobra de ultrapassagem. Magnífica, mas ridícula. Ao ouvir a gargalhada, olho para trás. E vejo as linhas e rugas das mãos dançando na jovem de negro. E vejo os olhos brilhantes e alegres de um belo rosto, rasgado por rugas.
A velha que dança vai ficando para trás, feliz por ver-me pelas costas.
[o aveiro; 20/03/2008]
eu virei as costas
sem poder levantar-me, acordado, deixei que a manhã acordasse
a tomar um café da esquina como o de todos os outros dias
enquanto
um vento ligeiro ao lado de uma neblina parda ou uma aragem prenha
com as águas a rebentar foi arrefecendo e ganhando a forma
do tambor
que marca a marcha fúnebre e a despedida.
a tomar um café da esquina como o de todos os outros dias
enquanto
um vento ligeiro ao lado de uma neblina parda ou uma aragem prenha
com as águas a rebentar foi arrefecendo e ganhando a forma
do tambor
que marca a marcha fúnebre e a despedida.
a vida dos outros
Recebo todos os dias anúncios nas diversas caixas de correio. Cada anúncio contém uma oferta irrecusável disto ou daquilo, seguramente de alguma coisa que eu não pedi. Atafulho os meus caixotes de lixo com as ofertas. De vez em quando, dou-me ao cuidado de responder recusando as ofertas, na tentativa vã de ser riscado da lista, arriscando-me a perder os laços a quem me quer tanto bem.
Recentemente comecei a receber conselhos, recomendações morais e políticas, reprovações de opções passadas e indicações para opções futuras. Espantoso mesmo é que a maior parte das reprovações e recomendações morais vêm assinadas por um senhor de nome “anónimo” que me conhece e a quem eu não posso conhecer. Não sei quem seja, nem sei se é alguma empresa ou partido,... Algumas vezes, o senhor anónimo tem o cuidado de dizer que já concordou com as minhas opções, sem dizer quais, ou de dizer que nunca concordou mas que é preciso que eu me dê ao respeito e faça isto ou aquilo tal qual ele acha que é bom que seja feito. O senhor anónimo chega mesmo a chamar-me nomes mais feios que o meu nome próprio, levando-me a pensar que foi engano e o recado é para filho da família adoptiva do senhor anónimo.
Outras vezes, toma como referência para as suas tiradas a coerência de posições de algum partido (ou sindicato ou dirigente sindical) que é público nunca me ter servido de referência. O melhor disto tudo é quando o senhor anónimo me recomenda que eu tome cuidado com esta ou aquela posição, por ela ser contestada por muitos dos eleitores de um partido importante no qual eu nunca votaria. Porque será que o senhor anónimo acha que pode influenciar-me com o desgosto de eleitores com mau gosto militante?
Uma característica do senhor anónimo (deve ser só um, penso eu) é ser só orelhas. Cada vez me parece mais que o senhor anónimo não lê um só dos papéis que está a rejeitar quando me escreve. Provavelmente, o senhor anónimo nem sabe ler e decora tudo o que querem que ele transcreva para a letra de forma das suas recomendações.
Volta e meia, também recebo cartas de amor. Detesto ter de admitir que a maior parte das declarações de amor que recebo vêm infectadas com vírus que só não me prejudicam porque elas não me procuram a mim e procuram um sistema operativo que não é o meu. E agrada-me confessar que gosto de receber cartas de amor. Sejam elas quais forem, são as que eu recebo e eu não posso dar-me ao luxo de lhes resistir.
Do mesmo modo, gosto de receber cartas do senhor anónimo. Já não tenho pai nem mãe. Para além do senhor anónimo, quem mais me pode dar conselhos e puxões de orelhas? O senhor anónimo faz de mim a criança que eu nunca fui.
[o aveiro; 13/03/2008]
Recentemente comecei a receber conselhos, recomendações morais e políticas, reprovações de opções passadas e indicações para opções futuras. Espantoso mesmo é que a maior parte das reprovações e recomendações morais vêm assinadas por um senhor de nome “anónimo” que me conhece e a quem eu não posso conhecer. Não sei quem seja, nem sei se é alguma empresa ou partido,... Algumas vezes, o senhor anónimo tem o cuidado de dizer que já concordou com as minhas opções, sem dizer quais, ou de dizer que nunca concordou mas que é preciso que eu me dê ao respeito e faça isto ou aquilo tal qual ele acha que é bom que seja feito. O senhor anónimo chega mesmo a chamar-me nomes mais feios que o meu nome próprio, levando-me a pensar que foi engano e o recado é para filho da família adoptiva do senhor anónimo.
Outras vezes, toma como referência para as suas tiradas a coerência de posições de algum partido (ou sindicato ou dirigente sindical) que é público nunca me ter servido de referência. O melhor disto tudo é quando o senhor anónimo me recomenda que eu tome cuidado com esta ou aquela posição, por ela ser contestada por muitos dos eleitores de um partido importante no qual eu nunca votaria. Porque será que o senhor anónimo acha que pode influenciar-me com o desgosto de eleitores com mau gosto militante?
Uma característica do senhor anónimo (deve ser só um, penso eu) é ser só orelhas. Cada vez me parece mais que o senhor anónimo não lê um só dos papéis que está a rejeitar quando me escreve. Provavelmente, o senhor anónimo nem sabe ler e decora tudo o que querem que ele transcreva para a letra de forma das suas recomendações.
Volta e meia, também recebo cartas de amor. Detesto ter de admitir que a maior parte das declarações de amor que recebo vêm infectadas com vírus que só não me prejudicam porque elas não me procuram a mim e procuram um sistema operativo que não é o meu. E agrada-me confessar que gosto de receber cartas de amor. Sejam elas quais forem, são as que eu recebo e eu não posso dar-me ao luxo de lhes resistir.
Do mesmo modo, gosto de receber cartas do senhor anónimo. Já não tenho pai nem mãe. Para além do senhor anónimo, quem mais me pode dar conselhos e puxões de orelhas? O senhor anónimo faz de mim a criança que eu nunca fui.
[o aveiro; 13/03/2008]
semana da leitura
Na tarde de quinta, fui a S. João de Loure, aqui tão perto, ler Tonino Guerra.
Contente mesmo contente
estive muitas vezes durante a vida
mas nunca tanto como me senti na Alemanha
quando ao ser libertado
dei por mim a olhar uma borboleta
sem vontade de a comer.
E também falei para a rádio da Escola Básica Integrada. Um bom dia, pois!
o relatório do medo
Antigamente e agora (como o provam os concursos de televisão) a grande prova de sabedoria passava e passa por dar respostas a muitas perguntas que ou não têm qualquer sentido ou têm sentido em mundos muito reduzidos em tempo e em espaço. As respostas escolhidas como certas podem nem ser as certas para toda a gente que saiba procurar respostas certas e quem as dá pode nem saber do que está a falar. Valorizamos para efeitos de validação de conhecimentos as perguntas e as respectivas respostas certas sem cuidarmos de que alguém as compreenda. Deste modo, fazemos passar por conhecimento o resultado de treinos intensivos em memorizações de detalhes. É importante ter decorado grandes poemas ou canções para os recitar e cantar em família. Sem compreender o sentido do que decorava, treinei competências próprias que, até hoje, me têm ajudado a memorizar, quando quero, textos que compreendo. Mas sei que as incríveis orações decoradas não fazem prova de qualquer sabedoria ou inteligência a merecer louvor pelo seu conteúdo. Talvez mereça louvor a aplicação e a persistência postas nesse treino.
Sobrevive a ideia de que repetindo ensinamos e que quem (se) repete acaba por saber. É verdade que quem repete muitas vezes uma mesma coisa acaba por decorar, e pode lembrar-se dos nomes de certas famílias de rios, de personagens mais ou menos reais, de anos de batalhas, ... sem que isso signifique compreensão inteligente sobre o que decorou. Quando as coisas parecem muito mal, repetimos para nós mesmos que levar a decorar é melhor que nada. E é. De vez em quando, em desespero de causa, tendemos a querer uma escola de repetidores.
Ora, neste tempo em que as informações estão em toda a parte e disponíveis em suportes diversos, decorar não tem a mesma importância que tinha quando a transmissão oral de nomes e factos era a via privilegiada.
Basear todo o ensino na transmissão de conhecimentos e esta, na repetição do mesmo, até tudo ficar decorado, criou um sistema. A gestão deste sistema tarda em ser acusada de distribuir tarefas socialmente inúteis a muitas pessoas. Para além de inúteis, nocivas; já que tendem a reproduzir-se que é repetir-se de outra forma. O pior de um sistema de repetidores por obrigação de estado está na criação de um sistema de registos e relatórios inúteis sobre os maus resultados do trabalho inútil. Podemos mesmo estar a assistir à substituição, por relatórios palavrosos e inúteis, dos restos de trabalho útil. Há quem diga ainda que já nem sabemos escrever e que só fazemos cópias. Além de inúteis, os relatórios podem ser todos iguais: um só relatório, afinal.
[o aveiro; 6/03/2008]
Sobrevive a ideia de que repetindo ensinamos e que quem (se) repete acaba por saber. É verdade que quem repete muitas vezes uma mesma coisa acaba por decorar, e pode lembrar-se dos nomes de certas famílias de rios, de personagens mais ou menos reais, de anos de batalhas, ... sem que isso signifique compreensão inteligente sobre o que decorou. Quando as coisas parecem muito mal, repetimos para nós mesmos que levar a decorar é melhor que nada. E é. De vez em quando, em desespero de causa, tendemos a querer uma escola de repetidores.
Ora, neste tempo em que as informações estão em toda a parte e disponíveis em suportes diversos, decorar não tem a mesma importância que tinha quando a transmissão oral de nomes e factos era a via privilegiada.
Basear todo o ensino na transmissão de conhecimentos e esta, na repetição do mesmo, até tudo ficar decorado, criou um sistema. A gestão deste sistema tarda em ser acusada de distribuir tarefas socialmente inúteis a muitas pessoas. Para além de inúteis, nocivas; já que tendem a reproduzir-se que é repetir-se de outra forma. O pior de um sistema de repetidores por obrigação de estado está na criação de um sistema de registos e relatórios inúteis sobre os maus resultados do trabalho inútil. Podemos mesmo estar a assistir à substituição, por relatórios palavrosos e inúteis, dos restos de trabalho útil. Há quem diga ainda que já nem sabemos escrever e que só fazemos cópias. Além de inúteis, os relatórios podem ser todos iguais: um só relatório, afinal.
[o aveiro; 6/03/2008]
olhando mais para cima
ao sábado, quando voltamos ao lugar do dia antes damos por nós a olhar para o alto dos edifícios como olhamos para o alto das prisões onde um guarda vigia. o que nos move é ver se é possível escapar depois de lá entrarmos. e mesmo sabendo que não há guarda algum levantamos o olhar para ameias inexistentes onde sentinelas fumam às escondidas para nos esconder dos seus olhares.
a explicação dos pássaros
Quando um professor participa num debate sobre professores e sobre os malefícios da política da educação na actualidade, pode fingir que as decisões de hoje são as decisões do governo de hoje e louvá-las ou repudiá-las ou mesmo fingir que, mudando o ministro (ou a sensibilidade) ou mudando o governo para dar lugar à alternativa do costume, se resolve algum problema. Assim pensa e faz quem está no governo ou quem esteve no governo passado e para lá quer voltar na próxima volta. E há mesmo quem pense sinceramente isto e acredite que o que lá vai lá vai e que o que interessa agora é manter ou mudar para garantir estas reformas ou outra forma destas reformas. Há mesmo quem admita que um governante que passa por vários governos pode fazer a reforma nunca feita e que o que antes fez não existe ou foi errado sem que se veja uma beliscadura na sua carreira, nem lhe tenha sido exigido acto de contrição ou propósito firme de emenda. Como se os ministros de um novo governo do PS ou do PSD fossem outros, porque (a)parecem como novas pessoas, novas promessas, novos argumentos.
E pode fingir que a vida da educação e dos professores depende da capacidade de fazer cair ministros e governos para os substituir por outros ainda que mais dos mesmos. Isto não é mais do que o reforço e manutenção de uma ideia de resistência, fora dos dois partidos da alternância, como força popular, que vive de organizar grandes movimentos das massas quaisquer que eles e elas sejam como prova de vida e vitalidade. É como ter um desejo centrado no corpo do descontentamento de todos, ou do descontentamento nosso de cada dia. Há uma certa grandeza nisto. E uma tragédia. Os descontentamentos de todos pertencem à ordem das circunstâncias, não são um corpo de política, nem dão o corpo às políticas. Os descontentamentos de que falamos satisfazem-se numas braçadas em mar de enganos ou em marasmo.
Quem escolhe participar e não pode escolher responsáveis para os erros de hoje nem acredita em êxitos de hoje, à pergunta sobre quem é responsável por este ou aquele erro e mal estar, só pode responder "somos todos! somos todos!" para que os culpados saibam que a culpa está, ainda que a diferentes níveis, atribuída a todos e que é preciso discutir para decisões que se coloquem para lá do jogo de cadeiras por alternância.
É preciso discutir do ponto de vista da profissão dos professores, do ponto de vista da educação e ensino das crianças e dos jovens, do ponto de vista dos interesses individuais como partes interessadas nos interesses sociais. Do ponto de vista do outro, o que tem o poder de não estar no poder. Porque, em democracia, não é tolice subir a um banco, numa qualquer esquina, para falar da esperança muda.
[o aveiro; 28/02/2008]
E pode fingir que a vida da educação e dos professores depende da capacidade de fazer cair ministros e governos para os substituir por outros ainda que mais dos mesmos. Isto não é mais do que o reforço e manutenção de uma ideia de resistência, fora dos dois partidos da alternância, como força popular, que vive de organizar grandes movimentos das massas quaisquer que eles e elas sejam como prova de vida e vitalidade. É como ter um desejo centrado no corpo do descontentamento de todos, ou do descontentamento nosso de cada dia. Há uma certa grandeza nisto. E uma tragédia. Os descontentamentos de todos pertencem à ordem das circunstâncias, não são um corpo de política, nem dão o corpo às políticas. Os descontentamentos de que falamos satisfazem-se numas braçadas em mar de enganos ou em marasmo.
Quem escolhe participar e não pode escolher responsáveis para os erros de hoje nem acredita em êxitos de hoje, à pergunta sobre quem é responsável por este ou aquele erro e mal estar, só pode responder "somos todos! somos todos!" para que os culpados saibam que a culpa está, ainda que a diferentes níveis, atribuída a todos e que é preciso discutir para decisões que se coloquem para lá do jogo de cadeiras por alternância.
É preciso discutir do ponto de vista da profissão dos professores, do ponto de vista da educação e ensino das crianças e dos jovens, do ponto de vista dos interesses individuais como partes interessadas nos interesses sociais. Do ponto de vista do outro, o que tem o poder de não estar no poder. Porque, em democracia, não é tolice subir a um banco, numa qualquer esquina, para falar da esperança muda.
[o aveiro; 28/02/2008]
curvado
cada dia, um dia. quando chegamos ao fim do dia, podemos dizer uma de duas coisas: este já cá canta e eu sobrevivo para mais um dia melhor que este e há quem não tenha chegado ao fim deste dia e as esperanças que tinha evaporaram-se ou já canta mais um dia de vida vivida com sentido certo de que amanhã posso apreciar a vida com os sentidos todos despertos. de qualquer modo, ganhamos um dia ao futuro de que fazemos parte. adormecemos cansados por tudo e por nada. escolhemos viver o dia seguinte ou desistir do dia seguinte. escolhemos, de qualquer modo, escolhemos reatar uma caminhada para algum lugar vazio ou cheio. vazio porque não reconhecemos as coisas em seu lugar ou porque o nosso lugar foi roubado e não somos mais que o abismo que aceitamos sem querer. cheio, ainda que esvaziado pela usura dos outros e do tempo, porque nos reconhecemos em tudo quanto somos ainda que perdidos dos outros e pelos outros, porque nos reconhecemos noutro início de luta, porque reconhecemos a nossa respiração, a nossa forma de andar no passo que sucede ao anterior. curvados, ainda que curvados... contra o vento, levados na tempestade enquanto fumamos o nosso último cigarro.
frielas
Há sempre o dia antes. Nesse dia, houve quem alertasse para o perigo que está em adiar o que devia ser a mais simples rotina diária em troca da obra necessária para encher o bolso ao pato bravo e o olho aos eleitores embasbacados. Nesse dia, houve quem alertasse para todos os perigos de não se cumprirem os planos e as recomendações a favor do interesse natural e contra as violações grosseiras pela iniciativa local criminosa. Nesse dia antes, os representantes das autarquias desmentem tudo e reafirmam que tudo fazem para evitar o pior e até o menos mau e garantem que onde tinham a ribeira encarcerada, têm agora um vale de águas livres a fertilizar as terras em volta, que nada do que é mau se vai repetir nos mesmos termos de antigamente. Assanhados, os autarcas tornam-se mesmo façanhudos, capazes de todas as façanhas a favor do desenvolvimento e do progresso e contra toda a reacção alérgica ao betão até nos convencerem que a via única do progresso está em cada obra aprovada, com a qual evitam e fintam a chuva e o vento.
Ainda o dia antes não acabou e já pinga. A chuva vai cair sem parar por umas horas. E no dia que se segue ao dia antes, aconteceu tudo o que se tinha dito que podia acontecer de mal. As ribeiras transbordam, galgando as suas margens. E novos rios arrastam dos altos, os aterros ainda que embargados e desaguam um mar de lama numa praça da baixa ou numa rua pavimentada sobre uma linha de água num dia em que a linha de água interpretava um papel de ingénua obediente numa peça de amadores. O que ontem era uma estrada é hoje um rio em que uma camioneta da carreira está tolhida numa confusão de águas. Dentro da camioneta, homens e mulheres presos, até serem salvos por bombeiros, tremendo já de frio e de pavor. É o dia em que as ribeiras, cansadas de serem desprezadas, se fazem rios e crescem. Neste dia, saltam para a ribalta as ribeiras. Arrastam e matam, por ordem de quem? E há autarcas que procuram e encontram explicações novas para os desmentidos de ontem quando falam em frente a um cenário de explosões de água pelas ruas que pavimentam antigas ribeiras, por eles condenadas à clandestinidade mais subterrânea.
Que dirão e farão eles amanhã, quando não se lembrarem da lama e dos mortos de hoje?
Na memória do dia, sobra-nos uma placa a afogar-se num cruzamento de estradas.
[o aveiro; 21/02/2008]
Ainda o dia antes não acabou e já pinga. A chuva vai cair sem parar por umas horas. E no dia que se segue ao dia antes, aconteceu tudo o que se tinha dito que podia acontecer de mal. As ribeiras transbordam, galgando as suas margens. E novos rios arrastam dos altos, os aterros ainda que embargados e desaguam um mar de lama numa praça da baixa ou numa rua pavimentada sobre uma linha de água num dia em que a linha de água interpretava um papel de ingénua obediente numa peça de amadores. O que ontem era uma estrada é hoje um rio em que uma camioneta da carreira está tolhida numa confusão de águas. Dentro da camioneta, homens e mulheres presos, até serem salvos por bombeiros, tremendo já de frio e de pavor. É o dia em que as ribeiras, cansadas de serem desprezadas, se fazem rios e crescem. Neste dia, saltam para a ribalta as ribeiras. Arrastam e matam, por ordem de quem? E há autarcas que procuram e encontram explicações novas para os desmentidos de ontem quando falam em frente a um cenário de explosões de água pelas ruas que pavimentam antigas ribeiras, por eles condenadas à clandestinidade mais subterrânea.
Que dirão e farão eles amanhã, quando não se lembrarem da lama e dos mortos de hoje?
Na memória do dia, sobra-nos uma placa a afogar-se num cruzamento de estradas.
[o aveiro; 21/02/2008]
o nosso lugar entre as nossas coisas
(...) para ver a minha paisagem a perder de vista. Este é o meu lugar. Se há lugar que seja meu é este. E, no entanto, ele é o lugar das coisas que lá estão e não mudam de lugar. Na mesa instável, há muito pouco lugar para mim, mas há vários vasos e uma persiana estragada. Agradeço às coisas o lugar que sobra, o lugar que elas me reservaram. Só me sinto bem entre as minhas coisas, aquelas que o tempo colou em lugar à mesa e dela, por isso, não podem ser despejadas (...)
descanso
já não és o mesmo! alguém diz é alenor ou coisa assim que não sei quem é e eu de ti só sabia que não te parecias com pessoa nem coisa a não ser com coisa nenhuma que tu és mutante a cada olhar ou se não és tu quem muda mudam os olhos de quem te vê ou muda o ponto de vista.
porto em visita
o guindaste nunca é um pormenor
é um risco no céu
é a ausência do andaime
é o homem de pés no chão
a construir um céu de betão
o douro
de muitos lugares se pode olhar um rio sentado num banco qualquer
ou feito criança ao colo de uma estátua de mulher
mesmo que os outros não vejam a estátua como nós a vemos
nem vejam o mesmo rio nem leiam o livro que nós lemos
ali naquele lugar se leio a página certa deixo o livro inteiro
menos uma certa página a única que ficou minha para sempre
amarrotada no meu bolso que a guarda e ao sonho que deixei de sonhar
para a ler repetidas vezes como um amante que hesita em despedir-se.
rua de todos os dias
todos os dias várias vezes ao dia passo por ela sem ver os amigos que nela moram
o acaso esconde-nos uns dos outros é o que vos digo por experiência
só vejo o martim que é um cão daquela rua tal qual como eu fiel à manhã
e à tarde
descanso
quando estou cansado e os braços me doem em negação
dou-lhes o gesto de varrer a melancolia de uma tela
tapando com nova paisagem a paisagem que lá estava
assim olhando em dias diferentes pela mesma janela
um amigo em visita pensa que um varredor deixa de ouvir
enquanto varre o pó do seu corpo para debaixo do tapete
e em cada instante procura o instante certo para partir
no fim de uma frase em que cai um . de silêncio
os meus olhos que não cabem na minha cabeça olham
a minha boca que refaz o dia pelo verso do arrependimento
e piscam o código sincero letra a letra para que a boca o soletre
obrigada.
não há semana sem senão
Ouvimos um novo bastonário e temos a vaga sensação de que o que ele diz não carece de prova nem carece de refutação. A sensação vaga de que todos sabem do que se está a falar sem que seja possível concretizar, a sensação vaga de que, por isso, se trata de um mal social qualquer que não se pode cortar pela raíz, porque a sua raíz está no poder e no estado actual das cosias. A vaga sensação de que falamos do inevitável, de uma quadrilha de males menores a quem temos de pagar protecção para que as coisas possam continuar a funcionar.
Lemos as públicas notícias dos truques nas câmaras em que os técnicos de uma delas assinam de cruz os projectos dos técnicos da outra onde podem aprovar os projectos que fazem, embora não possam assinar os projectos que aprovam. Temos a vaga sensação de que em todo o país, em cada uma das câmaras, pode acontecer isso mesmo e não podemos fazer coisa alguma contra isso, porque é assim que as coisas funcionam e, se não fosse assim, nem as casas do desenvolvimento cresciam para cima e já há muito todo o progresso se tinha afundado num mar sem betão. Temos a vaga sensação de que sem esses factos consumados não tínhamos construído as casas em reservas naturais, agrícolas, de orla marítima,... nem tínhamos direito a ver a especulação do oito que se faz oitenta para que alguém ou algum grupo num só dia enriqueça por ter sabido um dia antes o que podia ser feito mais por obra e graça de um técnico do que de outro qualquer nosso senhor do planeamento. Temos a vaga sensação de que não vem mal ao mundo por cada um de nós fazer o mesmo que todos os outros fazem ainda que seja errado e até, por vezes, crime. A vaga sensação de que há coisas que se repetem.
Lemos as letras gordas das brincadeiras de corredor em que cada um dá corda aos seus sapatos e fala sobre educação e sobre professores e sobre o que deve e não deve ser e até sobre a melhor forma de atropelar o parlamento e o bom senso como se houvesse uma autoridade com autorização para atropelar as próprias leis, os próprios prazos, a própria sombra. Lemos as letras gordas e nem acreditamos. Sobra a vaga sensação de que tudo está a acontecer só porque está a acontecer e contra isso nada, porque sabemos que o mal está em tudo o que lemos e ouvimos e contra o céu da boca nos bate, porque não sabemos as regras deste jogo de faz de conta, a conta que fazemos ao rosário que rezamos sem sabermos que oração nem a quem.
Não há semana sem senão? Antes isso que um tiro no escuro?
[o aveiro; 14/02/2008]
Lemos as públicas notícias dos truques nas câmaras em que os técnicos de uma delas assinam de cruz os projectos dos técnicos da outra onde podem aprovar os projectos que fazem, embora não possam assinar os projectos que aprovam. Temos a vaga sensação de que em todo o país, em cada uma das câmaras, pode acontecer isso mesmo e não podemos fazer coisa alguma contra isso, porque é assim que as coisas funcionam e, se não fosse assim, nem as casas do desenvolvimento cresciam para cima e já há muito todo o progresso se tinha afundado num mar sem betão. Temos a vaga sensação de que sem esses factos consumados não tínhamos construído as casas em reservas naturais, agrícolas, de orla marítima,... nem tínhamos direito a ver a especulação do oito que se faz oitenta para que alguém ou algum grupo num só dia enriqueça por ter sabido um dia antes o que podia ser feito mais por obra e graça de um técnico do que de outro qualquer nosso senhor do planeamento. Temos a vaga sensação de que não vem mal ao mundo por cada um de nós fazer o mesmo que todos os outros fazem ainda que seja errado e até, por vezes, crime. A vaga sensação de que há coisas que se repetem.
Lemos as letras gordas das brincadeiras de corredor em que cada um dá corda aos seus sapatos e fala sobre educação e sobre professores e sobre o que deve e não deve ser e até sobre a melhor forma de atropelar o parlamento e o bom senso como se houvesse uma autoridade com autorização para atropelar as próprias leis, os próprios prazos, a própria sombra. Lemos as letras gordas e nem acreditamos. Sobra a vaga sensação de que tudo está a acontecer só porque está a acontecer e contra isso nada, porque sabemos que o mal está em tudo o que lemos e ouvimos e contra o céu da boca nos bate, porque não sabemos as regras deste jogo de faz de conta, a conta que fazemos ao rosário que rezamos sem sabermos que oração nem a quem.
Não há semana sem senão? Antes isso que um tiro no escuro?
[o aveiro; 14/02/2008]
fátima
levado pelo vento vaguearás pelos corredores
descobrindo o homem e o filho do homem
a quem dedicaste um último verso
uma oração assobiada num anfiteatro
cheio de peregrinos tão atentos
que não ouvem mais que os dentes
mastigando o pão, a alface, o bife panado
fátima
Ao lado da cruz, para onde sobem os olhos, há um fantástico guindaste
que te eleva ao céu assim tu o queiras.
Só precisas de atenção para veres o guindaste na fotografia
e, depois, subir ao céu não é um problema de fé.
ribeira de mágoa
oiço-te como se ouvisse um bater de asas, como se sentisse um roçar
de felino cego à porta do automóvel veloz que atropela o instante
da minha morte
ribeira de pena
recorto a luz das montanhas na espessa sombra dos altos céus:
de um só golpe as separo para ter uma linha de voo de onde espreite deus
aves de cinza
As aves carregaram para os seus ninhos o cotão dos meus bolsos, a poeira à minha volta e até o meu tabaco de cachimbo. Nunca se devem deixar os pacotes de tabaco abertos, mas naquela manhã eu não podia fechar nada que me dissesse respeito.
Estava deitado, com a cabeça enterrada na areia, enquanto as sentia debicar o meu mundo todo espalhado. Não podia mexer-me e as aves tudo levaram.
Quando me levantei tarde demais, persegui cambaleante as últimas aves do meu pesadelo. Adivinhei os seus ninhos pelos cheiro do tabaco e fiquei emboscado a ganhar forças.
Deixei passar os dias. Não me mexia. Seguia fascinado os voos e maravilhava-me com os saques das aves. Partiam e regressavam aos ninhos, sempre em construção, com pequenas partículas nos bicos. Não interrompia a construção. A partir de certa altura, habituadas à minha presença rígida, as aves começaram a debicar por perto e algumas vezes chegavam a poisar nos meus ombros.
Um dia não contive o grito horrível. E as aves esvoaçaram para fora dos seus ninhos. Entretanto, eu, com mil cuidados, subi as traves.
Quando alcancei o primeiro ninho, enchi o cachimbo e, deliciado, fumei o ninho.
pretextos. 1993. arsélio martins
Estava deitado, com a cabeça enterrada na areia, enquanto as sentia debicar o meu mundo todo espalhado. Não podia mexer-me e as aves tudo levaram.
Quando me levantei tarde demais, persegui cambaleante as últimas aves do meu pesadelo. Adivinhei os seus ninhos pelos cheiro do tabaco e fiquei emboscado a ganhar forças.
Deixei passar os dias. Não me mexia. Seguia fascinado os voos e maravilhava-me com os saques das aves. Partiam e regressavam aos ninhos, sempre em construção, com pequenas partículas nos bicos. Não interrompia a construção. A partir de certa altura, habituadas à minha presença rígida, as aves começaram a debicar por perto e algumas vezes chegavam a poisar nos meus ombros.
Um dia não contive o grito horrível. E as aves esvoaçaram para fora dos seus ninhos. Entretanto, eu, com mil cuidados, subi as traves.
Quando alcancei o primeiro ninho, enchi o cachimbo e, deliciado, fumei o ninho.
pretextos. 1993. arsélio martins
dois dedos de conversa
Dai-me dois dedos de conversa - lamuriava o pobre numa das esquinas da praça. Algumas pessoas que passavam, sem perceber o que lhe pediam, deitavam moedas para os ouvidos do pobre.
Dai-me dois dedos de conversa - clamava o pobre. Uma beata, ao passar, com a alma cheia de compreensão pelo seu papel neste mundo, parou para falar com o pobre. Os olhos dele brilharam.
E disse, de novo: Dai-me dois dedos de conversa! A beata começou por lhe perguntar pela família, se não tinha filhos que o cuidassem, se não tinha mulher, se não tinha trabalho, se não tinha vontade de rezar e agradecer a deus, se não tinha tinha, se não tinha cartão de assistência, se não tinha ido à sopa dos pobres, se não tinha ido à cáritas, se não tinha ido à missa, se não encontrava na oração o refrigério para as suas penas, se não tinha ido confessar-se, se não tinha ido comungar.
O pobre virou os olhos para o céu e disse: Pai, porque me abandonaste? A beata ganhou alento e continuou com as perguntas a que o pobre não respondia. Mas agora mais impaciente. Queria respostas e não aquela ladaínha: Dai-me dois dedos de conversa que o pobre teimava em repetir, enquanto ela falava com ele. E finalmente ela desistiu, dizendo, sem perguntar: Você ou é estúpido ou é surdo. Para o ouvir responder: Muito Obrigado.
Ela partiu intrigada, voltando para o confessionário.
O pobre saiu do seu sítio, depois de se ter limpado de todas as perguntas e de todas as moedas. No bolso, embrulhadas no seu lenço,só guardara as únicas cinco palavras que lhe tinham dado: estúpido, é, ou, surdo, você.
pretexos. 1993, arsélio martins
Dai-me dois dedos de conversa - clamava o pobre. Uma beata, ao passar, com a alma cheia de compreensão pelo seu papel neste mundo, parou para falar com o pobre. Os olhos dele brilharam.
E disse, de novo: Dai-me dois dedos de conversa! A beata começou por lhe perguntar pela família, se não tinha filhos que o cuidassem, se não tinha mulher, se não tinha trabalho, se não tinha vontade de rezar e agradecer a deus, se não tinha tinha, se não tinha cartão de assistência, se não tinha ido à sopa dos pobres, se não tinha ido à cáritas, se não tinha ido à missa, se não encontrava na oração o refrigério para as suas penas, se não tinha ido confessar-se, se não tinha ido comungar.
O pobre virou os olhos para o céu e disse: Pai, porque me abandonaste? A beata ganhou alento e continuou com as perguntas a que o pobre não respondia. Mas agora mais impaciente. Queria respostas e não aquela ladaínha: Dai-me dois dedos de conversa que o pobre teimava em repetir, enquanto ela falava com ele. E finalmente ela desistiu, dizendo, sem perguntar: Você ou é estúpido ou é surdo. Para o ouvir responder: Muito Obrigado.
Ela partiu intrigada, voltando para o confessionário.
O pobre saiu do seu sítio, depois de se ter limpado de todas as perguntas e de todas as moedas. No bolso, embrulhadas no seu lenço,só guardara as únicas cinco palavras que lhe tinham dado: estúpido, é, ou, surdo, você.
pretexos. 1993, arsélio martins
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