Uma palavra qualquer e um perfume colhem-se ao acaso. Um fermento tem duas palavras alinhadas, guerrilheiras, encolhidas mas prontas para te saltar ao pescoço. As duas palavras assim alinhadas vivem no chão das palavras. Um desejo de palavras é uma trepadeira aérea, palavras enroladas no teu corpo. As palavras espreitam um campo de batalha, uma arena, uma cama, uma página em branco, um pretexto.
(que em tempo percebi e agora não percebo)
... justificação quase inútil ...
que
não é costume do autor confessar-se ou justificar-se e nem sequer publicar-se, mas publicando-se como memória experimental, convém esclarecer que estes textos foram escritos para serem lidos por um amigo aos microfones de uma emissora pirata de rádio do século passado e o sentido que têm tem de ser buscado em paisagens e personagens do século passado.
assinado:
AA
... nem sei que dia é hoje ...
Não sei que dia é hoje. O dia arrasta-se viscoso e fétido. Uma nuvem pegajosa e fria ocupa o norte e o sul da minha cabeça. Uma orquestra de bordões vibra dentro do átrio que a minha craniana é. O auditório é enorme e nem se sentaram todos os gritos de uma multidão revoltada. A pateada ressoa.
À saída, o homem que tentou cobrar as entradas pergunta pelos bilhetes de saída e as portas partem-lhe a cara. Um estrondo sobe desde o peito até ao átrio aberto na cabeça. A catástrofe foi evitada por uma multidão de pombas que, batendo as asas, irromperam dos ninhos, ali perto das olheiras, e ocuparam toda a amplidão do auditório em que se ouvia a ária do adeus à vida.
Não sei que dia é hoje. Um político vem até ao púlpito e declama um sermão previamente escrito. Ouço-lhe as imprecações e o ribombar da explosão da bomba que um terrorista trazia no bolso. Dentro da minha cabeça, se desfaz o político e o terrorista ingénuo e infeliz.
Não sei que dia é hoje. Um jornalista denunciou em voz vibrante e clara, a conspiração que percorre os corredores do palácio do poder. Uma secretária ouviu acidentalmente as palavras que umas murmuravam para os ouvidos dos outros e fugiu para as escadarias. Ali, por ter tomado consciência de si, iniciou um discurso inflamado até chegar a ambulância da sua próprima loucura. Um deputado esclareceu a imprensa que se ela assim estava e falava tal se devia a ter sido abandonada pelo deputado do seu círculo de amigos, entretanto eleito para outro parlamento.
Não sei que dia é hoje. Mas sei que uma nuvem pegajosa e fria ocupa o leste e o ocidente da minha cabeça. Um primeiro ministro declara que nunca mais declara coisa alguma. Felizmente, penso eu. O mesmo não pensa a oposição e e o seu próprio partido. Fazem um barulho danado. Dentro da minha cabeça, há ameaças de paz e nenhuma paz é possível.
Não sei que dia é hoje. Deixem-me em paz. Deixem-me em paz.Não sei que dia é hoje. Deixem-me em paz.
... em frente ...
Em frente, o quadro é quase branco. Só três vergões no papel denunciam que o papel foi torturado. Dois pequenos traços a carvão denunciam uma intenção frustrada de um esboço geométrico.
Em frente, a moldura cerca uma paisagem branca. No vidro, reflectem-se a estante e o quadro negro e vermelho da parede contrária. Vê-se ainda uma nesga de porta.
Em frente, o quadro é quase branco. Para a direita, uma porta dá para uma varanda e vêem-se telhados e, lá adiante, contra o céu cinzento de chumbo, destaca-se um edifício entre duas torres falsas, sendo que a torre da direita me parece igual à da esquerda depois de rodada de 90ª em torno de um eixo vertical que a atravessa de baixo até cima.. O eixo continua pelo céu dentro, parece-me mesmo que se enfiou nas nuvens. Talvez seja uma antena e sirva para estabelecer comunicação entre o edifício e o céu.
Em frente, o quadro é quase branco. Os candeiros acenderam-se na porta à direita. Também se acenderam nos carros velozes. Fixado a esta mesa, tudo vejo nitidamente. O que está fixo no exterior, olha-me como o quadro branco me olha com os seu olhos vazios de sentido. O que se move no exterior parecem-me olhos inquietos buscando um sentido no movimento. O que move não vê, pelo menos não vê o meu olhar perturbado pela penumbra entre o dia e a noite. Os faróis mostram a presença que se faz ausência. Sigo-os com o olhar e escuto o seu movimento como uma ondulação urbana chegando e partindo dos meus ouvidos. Os edifícios estão silenciosos. O quadro branco em frente está silencioso, atento aos meus movimentos que ele reflecte.
Em frente, o quadro é quase branco, sobre uma parede branca. Posso desenhar a esquina com um traço negro. Dobro a esquina com os olhos e parto pelas ruas até lá onde o quadro é negro. O corpo aqui fica suportando os dedos inábeis que martelam letra a letra o quadro branco do computador.
Em frente o quadro é quase branco. Viro-lhe as costas, mas sei que nas minhas costas está o quadro quase branco e nele colados estão dois olhos cansados de ver. Para os recuperar, viro-me para o quadro quase branco e volto a ver o quadro quase branco e à direita a rua com os seus edifícios mergulhados na escuridão, as luzes fixas dos candeeiros, as luzes móveis dos faróis chegando e partindo, fugindo de mim.
Com nitidez vejo o mundo quase branco. Um mundo de papel e de luz, de luz no papel. Um mundo inóspito por dentro de mim. Um mundo inóspito por fora de mim. Neste mundo sem fronteiras visíveis, um lobo anda à voltas como se estivesse encurrralado no quadro quase branco, em frente de mim. Nitidamente vejo-lhe os olhos brilhantes, os meus olhos.
... dachau ...
A 20 de Março de 1933, em Dachau - Alemanha, é aberto o primeiro campo de concentração. Ao mesmo tempo, é terrível e necessário falar destas datas. É preciso escrever cartas aos nossos filhos e aos filhos dos nossos filhos também sobre os horrores.
A Andreia e o Zé tornaram mais simples a memória do dia negro, não o ocultando, mas desvendando-o no seu reverso de esperança: No campo de concentração Stalag Ulía na Silésia, em 1941, Messiaen compõe o "Quarteto para o fim do tempo". Lá, nas mais incríveis condições, para um público de guardas e prisioneiros é estreado o "Quarteto para o fim do tempo".
Tenho de agradecer ao Zé a à Andreia terem dedicado aos seus alunos do Conservatório alguns momentos dos mais belos da humanidade, mesmo estando eles impregnados de sofrimento. Tenho de lhes agradecer poder escrever esta carta sobre o horror, temperada pelo poder do homem livre, mesmo estando preso, temperada pela criação que, até no meio da destruição, irrompe como uma hamonia desconcertante:
A 20 de Março de 1933, em Dachau, Alemanha, é aberto o primeiro campo de concentração nazi. Contra ele, não posso evitar um surto de cólera humana e, ao mesmo tempo, apesar dele, um vendaval de esperança: um pequeno silvo de trompa que anuncia o futuro ainda humano.
Apesar dele.
Graças a eles.
... há quantos anos? ...
Há 33 anos, em 24 de Março de 1962, as comemorações do Dia do Estudante estão proibidas por Manuel Lopes de Almeida. Toda a gente(?) se lembra da crise académica de 62, que vem desde o seu início com a repressão brutal da ocupação da cantina da cidade universitária, com a realização do proibido I Encontro de Estudantes em Coimbra e a criação do Secretariado Nacional dos Estudantes Portugueses. De Manuel Lopes de Almeida pouca gente se lembrará, mas todos se lembrarão da comemoração que proporcionou com a sua proibição. Greves de protesto, Solidariedade Nacional das Academias, Luto Académico. O Ministro há-de acabar por supender todas as direcções associativas. Para isso recebe a ajuda interessada de muitos académicos de caca que ajudam a reprimir os estudantes e a limitar a autonomia das estruturas associativas.
Para medir o peso da coisa, basta dizer que Marecelo Caetano se demitiu do cargo de reitor da universidade, tal foi a gravidade das violações.
Não vale a pensa agradecer a Manuel Lopes de Almeida, nem aos seus amigos porcos polícias, nem aos seus académicos de caca, nem aos seus porcos palhaços.
Há 21 anos, em 24 de Março de 1974. Uma reunião clandestina do Movimento das Forças Armadas decide um golpe militar para um dia entre 20 e 28 de Abril de 1974.
Poderia estar a dizer isto aos meus amigos, na mesa do café. Mas não estava a dizer isto aos microfones de uma rádio local e independentes. Agradeço ao Movimento das Forças Armandas na sua decisão de 24 de Março.
Há pouca memória disto e os estudantes, com toda a liberdade, comemoram em vez da vida vivida e da primavera, o regresso do capitão fantasma ou do capitão litro.
... alergias ...
Com a primavera atacam-me todas as alergias. Esqueço-me de outras alergias intemporais, para me concentrar no combate às novas alergias. Como se irá ver.
Acusavam o homem de não ter ideias.
Agora acusam o homem de ter ideias. Acusam o homem de ter ideias qeu não pode cumprir. Acusam o homem de ter ideias que quer cumprir.
Acusavam o homem de não ligar ao que a sociedade quer. Acusam o homem de ouvir demasiado a sociedade civil, mostrando que não sabe o que quer. Acusam-no de ter a mania de ser o homem que sabe o que quer para o país, que o que interessa é o que o país quer e não o que ele quer para o país.
Acusam-no de defender demais o estado providência. Acusam-no de defender demais o mercado. Acusam-no de defender demais a imiciativa privada. Acusam-no de defender demais a intervenção do sector público. Acusam-no.
Acusam-no de estar rodeado de imbecis e idiotas que nada sabem dos problemas do país. Acusam-no de estar rodeado de pessoas que sabem demais e que, por isso, podem ser prejudiciais ao país.
Acusavam o homem. Acusam o homem. Acusarão o homem. Porque a política está a tornar-se num jogo sem regras. Em política , devia discutir-se mais as ideias e menos estender dedos acusadores a todas as ideis. Devíamos ter uma ideia-tesoura para cortar dedos acusadores com rumo, mas sem moral.
As palavras não chegam para para vencer alergias. É, por isso, que continuo com comichões.
... pacheco ...
Já, muitas vezes, defendi que há novos políticos que sabem que se tomou desnecessária a hipocrisia profunda. Porque a opinião pública está anestesiada ou porque a opinião pública não existe, eles dizem a verdade quando dizem que mentiram e mentem quando estão a dizer a verdade.
Nenhuma ideia interessa se estiver provado que os votos têm a ver compromissos clientelares somados ao medo social que todas as mudanças trazem dentro. Nenhuma ideia interessa, se estiver provado que as pequenas e grandes cumplicidades, de tantos anos de governação são os fios com que se teceu um tecido social pegajoso desde a mais pequena aldeia aos grandes negócios da capital e do capital.
O meu amigo Pacheco dramatiza todos os dias a vida política, afirma coisas, alerta para a insegurança dos investidores, para o desastre, para as brincadeiras do Soares, estica cordas entre os mastros mais altos do deserto. Pacheco chama a atenção para o abismo que sobrevirá caso caia o partido do governo de tantos que são só alguns, valendo por muitos. Como se estivesse a cumprir uma missão de consciência, com toda a sua convicção, o meu amigo Pacheco cria o desastre, fala do desastre, cria autores para o desastre, acusa autores do desastre nacional, descreve o futuro desastre com as cores mais negras, adivinha o desastre futuro nas palavras dos opositores, denuncia veementemente a oposição de estar conscientemente a prometer mundos e fundos que não há, para atirar o país para a bancarrota e o desastre.
O meu amgigo Pacheco é, para além de deputqado, chefe de bancada e de claque, pretende ser também um cientista, um analista político, um estratega. E é vaidoso demais para deixar por mãos alheias os seus méritos de cientista social e estratega. E, sem olhar para trás, vai de publicar as suas ideias tácticas para repetir a maioria governamental. Segundo ele é preciso dramatizar em crescendo até às eleições.
Assim, o meu amigo Pacheco se denuncia como argumentista do drama, que ele, como actor, está a representar. O meu amigo Pacheco não é tão estúpido que não tenha percebido que, entre a representação e a criação no teatro da vida social, há só um pequano passo. O meu amigo Pacheco já deve ter lido que há loucura nisto. Sabendo da ligação entre os meios e os fins, já nem sei se o meu amigo Pacheco não estará a tentar um meio fim.
Não há qualquer hipocrisia vulgar em Pacheco. A hipocrisia do meu amigo Pacheco é invulgar.
... a casa espanhola ...
De vez em quando, entrava naquela loja escura e funda e pedia umas calças iguais às que trazia vestidas. Sem grandes complicações e sem grandes conversas, procurava-se, vestia-se, media-se, pagava-se. Uns dias depois, buscava as calças que iam ser as calças do meu hábito de usar calças.
De fora, vejo as mesmas pessoas dentro da loja. Mas esta foi renovada e eu sinto-me cheio de dúvidas para lá entrar. Será que a renovação da loja mudou as pessoas? E os preços? Será que as pessoas ainda me conhecem? Será que possa pedir as minhas calças sem que tentem vender-me umas calças que não sejam iguais às calças fora de moda que eu sempre usei?
O primeiro sinal de alarme vem dos bolsos. Rompem-se sempre antes de tudo o mais. Depois, à transparência, vejo que o tecido, ao cimo, entre as perneiras, está no fio. E vai chegar o momento em que caminho para a loja modernizada, menos escura mas ainda funda, tem que ser tomado apesar de todos os temores. Lá irei.
Por enquanto, vou passeando o meu bolso direito roto. Por enquanto, o bolso esquerdo, já no fio, ainda não deixa cair o isqueiro e, cheio de coisas, equilibra o saco que penduro do ombro direito.
Quando trago as mãos nos bolsos, a mão direita roça a perna direita. É por isso que estou a pensar em mudar para cuecas mais clássicas que agora se chamam boxers.
Para manter a minha mania clássica a respeito de calças confortáveis e já rotas, vou actualizar-me a respeito de cuecas, com a explicação conservadora de que os boxers têm o formato das cuecas da aldeia da infância, fico em paz comigo.
... convergência de divergências ...
Um dia vieram dizer-me que podia haver uma convergência de divergências. E eu assinei por baixo. Ainda não percebi como é, mas é uma coisa nova e é por isso que assino por baixo.
A minha mão esquerda, inábil e grotesca no gesto de assinar, assina o apelo. Além da minha mão esquerda, assinaremos dois pés e trinta e tal pessoas de diversas formações. Professores, cientistas, objectores, arquitectos, profissionais da política, cantores, compositores, sindicalistas, operároios, camponeses, soldados e marinheiros. Todos à beira da idade dos que mal chegam ao século seguinte, os subscritores querem dar-lhe uma marca de água limpa. Os subscritores estão convencidos que há uma diferença assinalável entre os que defendem o que a esquerda tradicional tem para oferecer. E é nisto que há um drama e um abismo. Eles pensam que o que defendem também pode ser oferecido e eu, abaixo assinado, não tenho alguma coisa a oferecer e não sei se há alternativa no que defendo.
Não defendo a mesma coisa, porque não me defendo. E talvez porque não queira construir os amanhãs que hão-de vir, para que outros os vivam. Em nome do futuro dos outros tem-se destruído o presente de quem vive, de tal modo que quem vive, só sobrevive. Começo a pensar que bastava não destruir o presente de quem vive. Nenhum futuro precisa de mais que uma herança universal não hipotecada e sem impostos sucessórios a pagar.
... ordem de prisão ...
O presidente deu ordem de prisão ao comandadnte.
O comandante tem sete irmãos. O comandante estudou num colégio de jesuitas em Tampico e até foi professor. O comandante encontrou em Chiapas o lugar da revolução.
O presidente fez guerra ao comandante e nela perdeu dedos e anéis. O presidente encenou o diálogo com chiapas. Todos os presidentes são capazes do diálogo, sendo incapazes de matar a fome. Podem ser definitivamente incapazes de matar a fome e a sede de justiça, mas julgam-se sempre capazes de matar quem tem fome e sede de justiça.
O comandante não é o índio que devia ser, é só latino-americano. Apesar de usar um disfarce, eles conseguiram saber quem ele é. Pelo diálogo com as populações, pelo diálogo com ele, pelas polícias. O comandante marcos está marcado. Uns diziam-no marcado para ser preso, outros dirão que está marcado para ser assassinado. Uns e outros sabem que ele está marcado para ser um símbolo.
O presidente deu ordem de prisão ao comandante. E o comandante deixou-se prender na teia de todos os presidentes. Uma aranha poderosa suga o cérebro de todos os presidentes, ministros, deputados. É, por isso, que a maior parte dos poderosos deste mundo têm marcas de idiotia no olhar.
O comandante talvez até já tenha sido preso, talvez até já tinha sido assassinado..
No seu olhar ainda se reflecte o céu das montanhas e uma floresta verde. Lembro-me da frase que ele usou para cumprimentar o zedillo eleito: Benvindo ao pesadelo… Saúde. E um para-quedas para esse precipício que há no seu amanhã.
Eu estou para aqui a chorar, cheio de pena do presidente idiota.
... as criadas...
Dois homens são as criadas. Um terceiro homem é a senhora que se nota pelo traje mais vistoso.
Nenhum deles finge ser o que não é e no entanto são o que eu disse que são.
O que é que separa o homem de ser a mulher cobiçada ou a criada? O que é que separa o homem de ser o que quer dar a entender que é?
Os dois homens que são as criadas vestem fardas de criadas, vestindo desse modo alguns gestos e pequenos ódios. Vestem cheiros também, quando vestem o espaço de cozinha e a lida da limpeza. Se tivessem amantes, eles representavam o odor próprio dos outros serviçais. Não se chega ao acto feito, ao facto. Vestir é representar o por fazer.
Um teceiro homem é a senhora. O que separa esta mulher do homem que lhe levanta a pose de vaidade intensa e lhe dá uma salgada voz de entrega e perdição? Nada nem ninguém pode separar o que não é separável - por esta razão à criada sobra não uma razão, mas a maldição de adorar a mulher perfumada.
Uma criada sabe. Não tem razão.
As criadas cheiram a lavado
... o português suave...
Compro um braçado de flores para oferecer ao santo que me ofereceu as botas da tropa. Com mais dinheiro comprava-lhe o convento de mafra ou, pelo menos, um lugar no chão de mafra para uma tumba patriótica decente.
Compro um ramo de violetas para oferecer à dama que me trouxe ao colo e me consolou depois da trágica derrota frente ao kasparov ainda este jogava na segunda divisão do campeonato que se disputava no xadrez lá para os lados de pinheiro da cruz.
Compro um camião de rosas de cheiro para oferecer à primadona que cantou no meu funeral tão convictamente comovida e contralto que deus decidiu ressuscitar-me de entre os mortos para não ter de a ouvir cantar de tristeza.
Comnpro um quintal de flores de papel reciclado para os lados de vouzela para levar a minha mulher em seu altar no dia em que ela aceitar a máxima divisão comigo: ela trabalha e eu descanso para todo o sempre.
Compro tudo o que me faz bem à consciência. Hoje compro uma rosa. Comovo-me com o regresso à luta. Compro uma ideia solta. Uma fita para o meu cabelo. Compro um chapéu e um par de óculos, para não ver que está tudo tão mudado. O mundo é tão diferente. Mesmo as moscas não são as mesmas. As moscas têm uma vida tão curta que também isso me comove.
Compro um cartão de sócio do porto. Se comprasse a jóia, que jóia comprava? Compro um santo e uma senha. Compro uma sanha assassina e dois bilhetes para a ópera. Compro um passe para toda a temporada do s. carlos, outro para temporada do centro cultural de belém e ainda outro para a temporada do politeama. Sento-me na esperança de ver todos os espectáculos. Estou de acordo com todos os espectáculos e com os argumentos a favor da pena de pato. Se me deixar mato quem me rouba. Comovo-me com as imagens da virgem mãe violada e reclamo justiça. Compro a imagem de uma mulher perdida nos inacabados corredores da catedral. Compro um papel ilustrado desenhado com os pés daquele que cortou as mãos para não poder matar-se.
Comovo-me com a dedicação dos cães e comovo-me com a causa dos gatos. Compro rações. Compro o detergente que lava mais branco. Compro uma boa acção de um banco igualmente bom. Comovo-me com a dedicação do capital no regresso a casa.
Sou português.
... os gnomos
Os gnomos tomaram conta do céu. Uns pintaram tudo cor de laranja, dizendo que o nosso mundo é cor de rosa. Outros pintaram tudo cor de rosa, frisando que a cor laranja é o negro mais escuro e que o mundo ficou um beco e buraco negro para onde foram atraídos morcegos e vampiros.
Quando quiseram ser mais claros os gnomos cor de rosa falaram do tráfico no beco dos gnomos cor de laranja. Ainda não arriscaram a falar de tráfico de drogas pesadas mas trabalharam de tráfico de influências que é droga leve.
Todos os gnomos experimentaram e verificaram que dá uma sensação de estar acima de toda a suspeita e acima da lei. Costumavam dizer que que é excitante como voar.
Mas os gnomos cor de rosa passaram-se a dizer que a sensação a ter não era essa de estar acima da lei, mas simplesmente fora da lei. E que era preciso pôr os gnomos traficantes dentro da lei.
Foi assim que os gnomos cor de rosa inventaram uma nova lei, porque para gnomos dentro da lei faltava escrever uma lei. Uma lei que, aplicando o código penal aos gnomos, fechasse tudo numa teia legal.
Há quem diga que é mais uma lei para sobrevoar. Está a aumentar a excitação dos gnomos voadores. Mesmo aqueles que têm sido incapazes de voar por via das influências (mais venéreas que veneráveis) estão excitados e alugaram um zepelin para sobrevoar a nova lei. Nunca contaram o que viram lá de cima. Mas há quem diga que voltaram mudos, por terem visto a aranha falante e a sua ninhada.
O que é certo é que neste período pré-eleitoral os gnomos de todas as cores pintam o céu de azul celeste.
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... pelas escrituras...
......inda voltaremos a falar