animaçal
Tive um animal de estimação com quem valia a pena falar sem dizer uma palavra. O melhor dia antes de o perder de vista foi quando ele percebeu que eu o ia fotografar para nunca mais o perder de vista.
se sei a cor do tempo que faz
A cor do tempo que faz
Ainda se lembrava da cor do seu tempo. Quando nos encontrávamos acidentalmente ele soltava a língua para me dizer o mesmo de sempre: sei muito bem a cor do meu tempo.
Eu não sabia como continuar uma conversa que assim começava mas não me ia embora sem dizer alguma frase de circunstância para dentro, muito baixinho dentro da minha cabeça para ninguém ouvir. A minha avó tinha dito para eu dizer isso quando me visse a braços com um encontro das palavras sei muito bem a cor do meu tempo. Também me disse que não movesse a boca ao dizer, mesmo que fosse muito baixinho, alguma frase de circunstância, e eu assim fazia sempre para não ser mal interpretado que, acrescentava a minha avó, era preciso que não se ouvisse o que eu pudesse dizer.
Um dia, sem precisar de apoio para a coragem de falar em alta voz, em resposta à frase sei muito bem a cor do meu tempo informei-o calmamente morreu a minha avó que penso ter conhecido por saber como ela o considerava e o conhecia muito bem a ponto de ser ela quem me ensinou a ouvi-lo sem lhe dirigir qualquer palavra que se ouvisse quando lhe respondesse.
E ele respondeu: sei muito bem a cor do meu tempo.
vermelho do meu sangue
E neste ano, para agradar à falecida avó e aos reis magros e frugais, deparou-se com a obrigação de ser o que nasce para morrer pouco depois na cruz prevista para a sua morte. E, só tarde, percebeu que estava metido em trabalhos tais como ser chamado em cada ano para representar o que nasce. Em resposta a um murmúrio da multidão que se juntara para a missa do galo e, já preso na cruz, ele gritou em voz baixa Se é bom? Para mim será bom ver outro aqui no próximo ano o que levantou o galhofar da multidão até às lágrimas de tanto rir. Na festa da quaresma, porque não se fala de outra coisa, até as crianças sabem bem que é sempre o mesmo a gramar com os espirros da vaca, o frio do ninho de natal e os pregos da cruz até à páscoa em cada ano. Só ao neto da falecida avó é que nunca disseram que ela tinha deixado uma boa maquia para garantir que, após a sua morte, em cada ano, na sua terra, o seu neto fará a tempo inteiro as vezes do cristo todo o tempo desde o natal à páscoa.E todos os anos até à grande final no ano em que o seu amigo Judas trinque a última daquelas trinta moedas que a sua avó queria ver trincadas, uma por ano, que ganhara ao jogo de resistir a pôr no prego.
A coroa de espinhos
A coroa de espinhos Não é muito raro uma mulher ser enfeitada ou enjeitada. E é mais raro ainda encontrar uma mulher que não use ou não tenha usado uma coroa de espinhos, pelo menos uma vez na vida. Para que os homens da vida de uma mulher sejam considerados porcos espinhos têm de dar a saber serem capazes de morrer em vida por amor enquanto brincam com as suas vítimas ao fura orelhas ou narinas em troca de brincos pendentes, escravas, anéis e colares de ouro. As suas vítimas são as vítimas mais amorosas que amantes e mais arranhadas que amadas. Quando isso acontece pela aldeia na quaresma de toda a gente, não há quem estranhe as feridas fáceis e faciais da vizinha sempre que esta sai a passear de braço dado com o seu namorado ou esposo e vai enfeitada com a coroa de espinhos de um porco espinho, como um véu de quem não pode andar de cabeça ao léu.
uma capa de 2008
capa de quê? de uma borrada mal colada qualquer..... e eu gosto de a ter desenhado e de a ter de volta ao ninho quando já nem eu sei........... capa de quê?
danças da manhã
danças da manhã
- ela ri de tudo o que acontece
ela ri de tudo o que acontece
quando se aninha no meu corpo
e ele estremece
e, quando na brusca busca do corpo,
o corpo adormece
ela ri de tudo o que não acontece
- quando acordares estás servido
quando acordares estás servido
pela desquímica do teu desejo:
o sumo de laranja, o ovo cozido
o café da manhã , o adeus e o beijo.
quando acordares estás de malas feitas
e em vez da vida escolhes o emprego
vala comum de onde espreitas
a esquina subterrânea e o palco do cego
toma o teu lugar, despe o cheiro,
pendura as palavras que disseste
no teu tempo mais inteiro
mas se não puderes despir a glória
da noite que viveste
queima a farda para aquecer a memória. - com as unhas abre um corredor
com as unhas
abre um corredor de maresia e sémen
nas palmas das mãos
abre os vales de um labirinto para o fio do sangue
de modo a que eu te encontre enquanto te persigo
e antes de acordar
a palidez da vida.
- podes sempre imaginar a arquitectura
podes sempre imaginar a arquitectura
como uma palavrosa e teórica estrutura
que explique como da manhã se faz a tarde
podes sempre imaginar que não és deste mundo
e que buscas a imperfeição que abandonaste em vida
seduzida por um anunciante de produtos para a felicidade
podes sempre imaginar um molde
para as tuas idas e outro para os teus regressos
e uma harmonia para os editais das tuas promessas.
- espero na manhã cinzenta
espero na manhã cinzenta
o sossego do jardim molhado:
uma árvore que estremunhada estique
os ramos e cante
ou que uma ave presa dentro dela cante.
quando
a multidão das aves se calar
uma gota de silêncio caia lentamente para o ar.
-
sábias mãos no corpo da manhã
sábias mãos no corpo da manhã
sábios os dedos quando
entram e abrem – entreabrem
os seus lábios
sábia a língua que fala a língua
do corpo da manhã ao seu baixo ouvido
sábio o sexo que ouve compreende
explode e não se rende
mesmo enquanto sucumbe
assim, a lança
que fende
desvela uma fenda
de luz.
-
e a mãe do actor faz de virgem faz de conta
e a mãe do actor faz de virgem faz de conta
num bordado a ponto de cruz
contracenando com uma madalena barata e tonta
dos braços em volta, os laboriosos dedos
procuram o calor de uma nesga da luz
coada pelos martírios dos medos
foi publicada há muitos anos e eu não me lembrei por ter sido mas por voltar a ser ou a não ser...
© adalmeida
o labirinto do peregrino quando sobrevive um dia mais
Quando, num dos corredores do labirinto, um peregrino encontra outro de fé diversa, pode puxar da metralhadora. É por isso que os corredores dos labirintos do homem estão juncados de cadáveres.
O chão do labirinto é feito de cadáveres que, na sua rigidez e podridão, criam uma elevação de cartografia sem fé. Quando a elevação é tal que os peregrinos podem ver por cima das muralhas do labirinto, são castigados pela luz.
Cada um, à maneira da sua fé, benze-se perante a realidade e, em vez da metralhadora, pode estender a mão. Falo dos peregrinos que se benzem de pé.
Os que só se benzem ajoelhados nunca verão por cima das muralhas. Para estes, a realidade tem o cheiro inconfundível dos seus mortos. Para estes, a saída é a redonda e abençoada boca da metralhadora capaz de fazer sobrepor o cheiro da pólvora ao cheiro dos mortos ou de tornar o cheiro inconfundível dos mortos dos outros mais forte que o cheiro dos seus mortos.
Nos muros de Jerusalém desenhei estas palavras, nem tocadas pela fé, nem tocadas pela esperança. Queria dizer que as minhas palavras são sopradas pela razão e pela mente.
Mas, perdido no labirinto das razões, sei que não há razão sem fé não sei em quê.
de há quanto tempo o quê e....
.... como te repetes....... repetidamente
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dei por mim
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Dei por mim a falar
para o boneco
que estava em palco
e em pânico.
Ouvi alguém dizer
ao boneco
que estava em palco
e em pânico eu.
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escolhida a palavra
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o dia estava bom para nada
uma morrinha despejada do céu
caía mansamente na cabeça
da cidade
quem tinha deixado o chapéu
em casa nem acelerava o passo
e assobiava
as palavras que já tinha escolhido
…
ao chegar a casa
só me restava confessar a mim mesmo
que me esquecera
das palavras que tinha escolhido
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quando amanhece
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amanhecem os patos
na borda da água.
entretanto
na água
uma mulher entra decidida
a depenar o primeiro
pato do dia
e, já cansado da insónia,
um filho de paito conhecido
entra na fila dos clientes
para o leilão dos chapéus.
no mesmo instante,
a multidão dos patos
lança-se à água
no ponto onde comerão
quem os espera com um saco de pão
despedaçado
minuciosamente.
entretanto, liberta, voando
a mão que lhes acenava
migalha a migalha,
gota a gota,
sangrava.
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à torre
___________________
ao longe, a torre.
não ouço, mas podia ouvir.
se não fosse surdo, ouviria o sino da torre.
não o vejo, mas sei que aquela torre não engana
e alberga um ou mais sinos.
não o vejo, nem o ouço, mas sei
que aquela é uma torre sineira.
e isso é tudo o que preciso de saber.
o resto é consequência.
a existência, a prova de vida,
o passeio do cego,
o passeio do surdo,
o passeio da rua.
em tempos, vi a minha rua
pela primavera,
pelo verão,
pelo outono
e pelo inverno.
conheço a minha rua de olhos fechados,
como a palma da minha mão.
gosto muito da minha rua.
já posso gostar sem sentido.
sem sentidos.
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vai andando, vamos andando
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sem pensar sempre sem pensar
no passo seguinte vais andando sem parar
e sempre procurando o lado correcto
do passeio e da passadeira
vamos andando e devagar e a parar
para ver o lado de onde vem o ar
ou para virar as costas ao ar
soprado ou para olhar para o chão
sagrado que nunca nos custa pisar
como se os nossos passos deixassem
uma marca que ao chão dissesse
alguma coisa nenhuma de nada
se lermos hoje o que dissemos
uns aos outros há alguns anos
com a emoção da zanga
– o desaguisado –
não paramos de nos rir da falta
de importância desse momento
maior que nada
e vamos andando sem parar mais um pouco
para cumprir uma decisão maior
que o flamingo que pensas
que avistaste ao longe antes de perguntar
se não podíamos aumentar a visão
com o smartphone ou outro binóculo para
confirmares que os flamingos
nos abandonaram este ano
e eu vou andando sem querer saber
da importância da falta
do flamingo porque eu gosto mesmo é
das pequenas garças que quando dão por mim
fazem uma nuvem como se todas tivessem sentido
medo da minha sombra passageira.
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o positivo do negativo
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Há fotografias que mostram as poses muito variadas
assumidas ao longo da vida,
leve e pesado, alegre e triste, à soldado e à civil,
sempre baixo e fácil de arrumar
em camas pequenas e em casas de pé baixo.
Muitas pessoas que conhecem o original
há muitos anos, quando o encontram,
repetem que ele está sempre na mesma
e ele habituou-se a retorquir que sabe que foi
velho desde sempre e, por isso, nem deram
pela seu actual pêlo branco
que faz de si um urso polar aqui
refugiado da alteração climática
na calote polar
O que pode haver de positivo no negativo?
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empurra a sombra
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No cimo do monte, alquebrado, sentou-se para descansar.
Foi-se a sombra da árvore que o tinha acolhido e
o sol caminhou para o pôr do sol e
perdeu-se numa escuridão tão soturna como fresca.
Deu por si a sonhar que com os pés empurrava
a sua sombra pela encosta abaixo.
Ainda não se tinha despegado da sua sombra
quando teve vontade de dois dedos de conversa
e lamentou não ter quem o ouvisse falar
da sua paz no encosto da sua terra,
da sua montanha.
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demolição
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Levantei-me para ver que nada há
que eu possa fazer para mudar de casa,
— disse a mulher que não queria mudar de casa
e continuou -— e, de certo modo,
é isso que eu quero porque me habituei
de tal modo a esta casa que chego a pensar
que ela é minha e só minha
ou eu sou dela e só dela.
O homem que não lia o seu velho jornal
tranquilamente, por estar sempre a ser interrompido
pela alta voz da mulher surda do andar
de cima, levantou a voz para dar
prova de vida, e disse
em voz a uma certa altura:
Devias ter dito
levantei-me para ver que
nada há que eu queira fazer
para mudar de casa.
A vizinha da casa ao lado
aumentou o volume do seu som
dizendo ou cantando o que era costume dizer:
Avé Maria cheia de graça o senhor
é convosco bendita
sois vós entre as mulheres
bendito é o fruto
do vosso ventre Jesus zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz
que só se calou quando
o prédio ao lado estremeceu com um grito:
Amen.
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a luz e o tempo
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É quando vemos
a escuridão do porvir
que tentamos deixar de ver
como se não pudesse ser nossa herança,
essa escuridão.
É quando abrimos os olhos
tentando enfrentar, defrontar
e confrontar a nossa passagem
que pode acontecer vermos como eles
continuam em frente, sem saber
o que nós sentimos por tentarmos
adivinhar o que está là à frente
pelo que esteve lá à frente no nosso tempo
e ao saber como vamos ficando para trás.
Naturalmente, são como nós que fomos em frente
cheios de medo e só capazes de dar o próximo passo
em frente e entrar na,
percebemos agora,
escuridão do nosso tempo.
É quando percebemos que pode ser outra,
mais tenebrosa escuridão
a de hoje que a de ontem,
ao vê-los avançar vendo, sabemos
que eles são muito melhores que nós
e sabem mais que autorizar
a si mesmos o passo em frente.
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senhores da guerra
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Do cabelo faz um elmo de guerreiro e este,
assim triste foi denunciado pelo olhar.
Há quem consiga imaginar e imaginar-se
alegre e guerreiro simultaneamente e,
só por isso, é ainda mais triste o duelo
que trava consigo mesmo até à morte.
Não falo de piedade, quando falo dos guerreiros
na aparência alegres e a passear a idolátrica
e o esplendor para uma multidão
de crânios ocos, na verdade cada um deles oco,
sozinho e triste.
Falo só do vazio em que o elmo
encerra quem o encera antes da marcha triunfal
que é sempre uma derrota para a humanidade.
Os homens senhores da guerra acham
que todas as vítimas mortais das suas guerras
pela guerra ou das suas guerras pela paz
são danos colaterais.
E a soma dos danos colateriais só nos diz
que a humanidade é um dano colateral,
uma banalidade para os senhores da guerra
alienados da sua humanidade.
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entre o pior e o melhor
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Dizem-me que o pior ainda está por vir.
Também me dizem que é o melhor que
está ao virar da esquina.
Fiquei-me pelo meio da ponte
que liga o pior ao melhor
sem me preocupar onde era
uma coisa ou outra.
Ali permaneci por muitos anos
sem saber do melhor e sem saber do pior.
Habituei-me ao lugar onde morri
e agora é tarde para mudar de lugar.
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foi a tenpestade que baixou os braços
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Foi a tempestade que baixou os braços,
amainou finalmente
e eu tive pena dela, muita pena,
porque, pelas ruas passeiam pessoas contentes
por ela ter desistido e ter ido embora.
Todas sem saudades dela
e sem desejar vê-la de novo.
E eu que não estive com ela
quando ela se despedia
briguenta e louca.
Só hoje me deu a vontade
de dizer-lhe adeus:
” Adeus, minha bela tempestade” —
que eu namorei da janela,
— “e como foste vibrante!”
Adeus, mulher, adeus.
4/7/88
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economia do voo
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Digo-te que amanhã hei-de poisar como uma ave cansada de voar.
Digo-te hoje.
Se te digo adeus hoje sei que não posso deixar de te dizer amanhã
adeus de novo.
Cansadas as asas, poisarei no teu beiral e olhar-te-ei um instante
Só por um instante te olharei
enquanto maquinalmente aliso as minhas penas
para voltar a partir.
Partirei, depois de dar uma volta larga em frente da tua janela.
Despeço-me. Parto sem poder partir definitivamente.
Digo-te adeus. Porque hoje não sei mais que dizer
e os meus gestos têm a economia própria
de quem voa.
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umas vezes por outras
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Uma vez por outra,
via-se um senhor de fato e gravata
a passear o seu cão pela gravata:
nunca separados e, sempre de igual cor,
vestidos a rigor, um vestido como cão
e outro como cavalheiro.
Quando os viam, as pessoas perguntavam:
Quando não os vimos, onde é que eles estão?
De onde é que eles vêm?
De resto, nunca ouvi falar do cão
nem do cavalheiro a quem os via
uma vez por outra como era o meu caso.
Um dia vi, colada no vidro de uma loja
que só conhecemos fechada,
uma fotografia do cão e do cavalheiro
DESAPARECIDOS
se alguém souber do seu paradeiro,
p.f. informe Dona xmxmvmcml
Infelizmente com esses dados nunca
nos foi possível chegarmos à fala
com a Dona para lhe comunicarmos
o que não sabíamos nem sabemos.
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o homem levanta-se do seu lugar
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O homem levanta-se do seu lugar e caminha até
uma porta fechada do comboio parado
no apeadeiro.
Teimosamente carrega em botões
até que a porta se abre.
Inclina-se e, pela sua mão,
entra na carruagem um velho cego
que, imediatamente apalpa com as mãos
o que divide o espaço sem tocar nas pessoas
à volta.
Com a sua bengala segue até encontrar
o lugar disponível e senta-se.
Ainda antes de ter voltado ao lugar
a meu lado o homem que vê,
já o velho cego está sentado
no lugar que escolheu e olha-nos
onde estamos no banco do extremo oposto
ao seu na carruagem.
Ouviu cuidadosamente os passos
do homem sentado ao meu lado.
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nunca será a tua vez
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disseram-te, ouvi dizer, que um dia será o teu dia
e que uma hora será a tua hora
mas também, ouvi dizer, que agora
mesmo agora teria
sido a tua vez
assim tivesses dado por ela
antes de te atirares pela janela
na tua nudez
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rugas
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ninguém me contou o que se passou.
imagino que tenha sido como eu digo,
mas eu nunca soube ao certo quem sou
ou se a memória de mim viaja comigo
as rugas podem ser rasuras a negar
o que antes se disse a respeito do que foi
uma partida por mar uma chegada pelo ar
um quarto fechado onde o incerto me mói
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duas manhãs
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À primeira não a reconheci.
À segunda, distraí-me a olhar para ela sem pensar nisso.
A certa altura, percebi que estava a embaraçá-la
e tirei os olhos dela para olhar o relógio no pulso.
Ela viu bem que eu não uso relógio de pulso
e eu percebi que ela tinha acabado comigo.
Já era tarde e não havia nada a fazer.
Ela tinha esperado por uma palavrinha
e eu nem abrira a boca.
Mais cedo, encontrei-a e ela olhou-me
com a piedade que só as manhãs passadas conhecem.
Muito mais tarde dei por uma manhã a passar
por mim e logo que abri a boca
me pus à conversa com ela.
Não pensei em apresentar-me antes
de, deslumbrado, ter começado a falar-lhe,
confesso que falava alto e para todos
repararem, sobre a beleza da manhã
com quem tinha começado a viver naquele momento.
Nunca uma manhã passou por mim com tanta pressa.
Dentro dela, ainda agora, e ouvi tocar
as doze badaladas do sino da torre
na minha cabeça a informar-me que tinha saído
da manhã que se fizera tarde.
Percebi bem tudo o que me tinha acontecido
e porque é que nada do que me acontecera
poderia repetir-se. E sentei-me.
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as novas velhas de Alex(1)
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Um dia destes este amigo de Alex,
recebeu de Alex duas notícias:
que na década de 80 do século passado
conheceste ricardo soares e com ele te travaste
de razões, particularmente em julho de 1989, que me ofereceste quatro páginas
a5 de uma folha a4 dobrada a que deste
um título pretensioso “Os milagres”:
Ao primeiro poema chamaste
O milagre de Fátima
Não há lugar melhor para chegar à fala
do que a cama dos meus amantes:
— D. Clementina falava assim para a mala,
pendurando no cabide alguns brilhantes—
Doravante não me deixarei cair
em tentação — continuou D. Clementina,
virada para o armário do pecado, pronta a sair
da casca que usava em menina.
Tirou a cruz sossegada no seu colo,
e depois de O beijar, poisou-a no peitoril.
Só então saíu do seu quarto de hotel parolo
para a caça ao pregrino de Abril.
Ao segundo poema chamaste
O milagre do caulino
Por um breve momento, 100 aldeões levantam o nariz
para o sino a rebate.
E a guarda nacional e republicana do meu país
dispara e abate.
A minha glória patriótica vem
deste facto percentual:
mais do que na China, também
se mata em Portugal.
Ao terceiro poema chamaste
O milagre de S. Bento
Governa-nos.
Penteia-se de manhã.
Veste um fato cinzento de lapelas brilhantes.
Nas faces es(ca)vacadas afivela um sorriso.
Mostra os dentes rutilantes.
Discursa o discurso.
O único que sabe. O geral.
O seu génio é uma parolice genial.
Envenena-nos.
O que ele sabe é que funciona.
Repete que não há alternativa
e a alternativa é como ele no discurso e na saliva:
Só tem 4 notas a sanfona.
Estamos governados
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as novas velhas de Alex (2)
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Este amigo de Alex recebeu de Alex recentemente, cópias electrónicas (a partir de um site do projecto Aveiro-Digital) de textos mais ou menos poéticos publicados então e resgatados pelo amigo de Alex. Poderão ser visitados por aqui, em volta do que então se chamava livro 2 – crónicas políticas que incluia 9 pequenos textos. O terceiro deles exibia-se e dava pelo nome deixo mulher e dois filhos e parto . Penso que a maior parte dos três leitores de então nunca tentou perceber o título. Estou convencido que o primeiro dos três leitores sempre soube, mas nunca falou disso a não ser consigo. Aqui fica:
... tudo o que tenho trago comigo ...
Deixo mulher e dois filhos e parto.
Sempre para o norte, parto ao princípio
da tarde guiada pela estrela polar
(que se não via).
Há mesmo quem diga que a estrela polar
em vez de me guiar, me atrai.
E que não é a primeira vez que me perco
e que os meus filhos foram
cruzamentos com a estrela polar.
Também disseram que me cruzei
com um cometa passageiro (amor de um dia)
e que só isso explica a pequena cauda
luminosa (de poeiras astrais) que os meus filhos
ostentam quando se apresentam em toda a sua nudez.
Pouca gente ou ninguém diz isso,
pois apesar de estarem convencidos
disso nunca viram as esvoaçantes e luminosas
caudas verdadeiras dos meus filhos.
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Galocha
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Cortarei a relva por cortar
como se fosse um rapaz convidado
para brincar no teu jardim de brincar
onde tu mandas nas flores como em pau mandado
que eu sou para ter acesso
ao jardim dos meus sonhos secretos
onde te canto a tua vida como se fora processo
criado sobre estrume colhido nos currais mais abjectos
na esperança mais disfarçada
de que descubras o meu jeito de maldiçào
nos cheiros espalhados ao teu ar de amaldiçoada
por ti que moras na minha alma como os piolhos na solidão
Cortarei a relva por cortar
de novo amanhã e depois de amanhã futuro
para que possas rebolar-te entre as flores que vais cheirar
sem as plantar e nem eu as semeei sendo só acaso de vento podre de maduro.
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por quem grita? por quem gritamos?
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alguém ouviu a floresta das palavras?
a mim que nada ouço, parece
que as palavras são feitas
silêncio da sílica amorfa que forra
as paredes do rio de lava que não foi mais longe
por ter arrefecido ao ar ainda longe da foz que não conheceu.
ir em frente para a foz,
inclinados para trás como quem quer cair na nascente.
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nascente da foz
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nunca me espanto com tanto quanto sei
tu fazeres de ti e eu de mim sem voz
para que os dois lados da rua que nos separa
sejam as margens afinal de um rio de mágoas
e já não há tempo para nos juntarmos a nascente
nem coragem para mergulharmos à chegada na foz
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proibida a entrada <
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proibida a entrada
a menos que nada
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quando um rio galga
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quando um rio galga
a meretíssima meretriz
que escreve para o público
umas redondilhas sobre o seu nariz
ao seu jeito de quem se assoa
ao emaranhado ninho púbico
onde se assoou meia lisboa
sabe bem a quem abraçar para aquecer
o seu mealheiro de falso pudor
debitando fel essa praga de fedor
contra a contra cultura de contra-poder
a melra usa e abusa do seu meio
como fosse ele aquela antiga virtude
que faz gala maior no vício e amiúde
do que pinga da ganância faz seu recheio
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nada a nada se desenha tudo
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afagar o papel com as pontas dos dedos
desenhar a tua luz que se refugia
por dentro da esquina mais sombria
nos meus olhos chorando-te os medos
em ti desenhar-te o corpo pelas linhas
que os meus olhos vêem e os dedos sentem
dobrando os lençóis em que te embaínhas
como espada de palavras que a mim e ti mentem
e eu fosse o meu espírito perdido de mim
em ti de papel passado
© adealmeida
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pterodactilografo
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extinto
1
estou perdido numa era
que se separou do nosso tempo
por um rasgão de monteiro
algures onde não havia mãos
e as asas ainda não escreviam
teorias nem eram ferramentas
para voar sobre papeis
que ainda nem tinham pernas
para andar
contavam-se apenas como penas
os papeis da dívida
que só pode ser divina
e por isso negociável numa nuvem
entre o céu e o inferno
entre os credores que são testasv de ferro de deus e do diabo
2.
um antigo governo nomeou
um contrato milionário
a ser pago pelo estado
visando doar
a um grande grupo financeiro
um novo banco
cuja propriedade era já
do velho povo
nação valente
e imortal
de pessoas sobrevivas
em cada momento
no território
3.
variáveis conjuntos de pessoas
tomados como uma só mole
imensa
de contribuintes
fiadores
que vão morrendo
à medida que nascem
cada vez menos
novos contribuintes
fiadores
formando a mesma mole
cada vez menos imensa
como
comentam os pterodactilógrafos
justificando assim
novas e maiores contribuições
devidas por dívidas atribuídas
por estrangeirados e estranhos
a cada uma das partículas da mole
imensa
por divisão entre todos
menos os estranhos estrangeirados
para lhes pagar
a esses estranhos
tratantes
vigilantes
e visitantes
que vêm pastar o prado
cercado
por uma vedação de arame farpado
que, para ser privado,
só sendo sustentado pela mole cada vez menos imensa
e cada vez mais intensa
4.
régio monteiro
sabe que vai ser assassinado
e enterrado para ser comido,
na derradeira morada
que é uma casa de pasto,
por necrófagos em tudo semelhantes
aos assassinantes
como ele foi
em vida
abusando de nome e assinatura
em sentenças de morte capital
à mole humana sem digna sepultura
que dá pelo nome de portugal
Que não descanse em paz ó régio monteiro!
© adealmeida
---------------------------------
para uma teoria da devolução pg.3
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o primeiro sinal estava nas folhas
recebidas e o último esteve nas folhas
marcadas por sinais a anunciar
o seu regresso a casa.
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voltar a pedir...
São estas conversas, as mais íntimas, que nós mais procuramos ... para as ouvir. Temos de aprender a desenhar e a não perder pitada do que só os surdos podem ouvir sem querer.
a descoberta de São Tomé de não ver nem ler................. para crer...
perdidos de 1980:
lendo
o que não entendo
não vendo.
Só vendo.
…a coisa é séria por etapas
A coisa é séria -
Diz o homem debruçado
num buraco do cais.
A água verde azeitona
é também a cor dos seus olhos.
Na sua face líquida de lágrimas
nadam destroços de alma.
Tocaram a campainha.
(Ouvi a campainha
Quem é? Quem é?
Sou eu, talvez me tenha enganado doutor,
mas não se esqueça de dizer
à dona maria da luz
o que acabo de lhe dizer.)
Tinha enlouquecido.
Antes quando se via
Ao espelho da baía
e as lágrimas se confundiam
nas águas, pensava
em estudar direito
numa universidade europeia.
Quando me sentava na escadaria
Sentado na escadaria
olhava-me espelhado
no alcatrão luzidio
e era como se houvesse mar e baía
lá ao fundo da escadaria
ao chegar ao lodo.
Nada à superfície
Nadam à superfície
pelas ruas do cais
os destroços do meu rosto
e as minha sombras
passam sonâmbulas
pelas portas
Sonâmbulas
Sonâmbulas fazem vénias
e desculpe desculpe doutor
mas não se esqueça de dizer
à dona maria da luz
o que acabo de lhe dizer.
Está bem?
Está bem. Fique descansado
que a mim nada custa dizer
nada a ninguém.
…sede fiéis
Reconhecei oh dogmáticos sinceramente que a urgência
Com que manejais a ansiedade
Vos ilude mas vos prepara para a eternidade
Cercai-vos de muralhas altas
Ainda mais altas que o voo dos pardais
Para que não vos acordem mais
Cercai-vos de ilusões e escrevei-as em lindas frases
Como se fossem novas e decisivos mandamentos
Para que não preciseis de mais pensamentos
Adorai-vos, exaltai do vosso legítimo orgulho
Vós que vos descobristes aliás com barulho
Que a cabeça do povo é o vosso bandulho
Fortalecei a vossa crença, benzei-a
Pedi ao vosso CC cume altíssimo sabedoria
Que escreva em letras de fogo a liturgia
Expulsai o vosso seio, da vossa prenda
Tudo o que seja sinal de desavença
E até à última geração os sinais de descrença.
Sede fiéis.
… ilha desencantada
Aqui quando faz bom tempo podemos ir pescar
À linha
o céu está quieto e brilhante como o mar
pescamos o sol pela tardinha
Aqui às vezes deparamos com deus
Atrás de uma escrivaninha
Cumprimentamos: como vai? Como vão os seus?
E já ele se escondeu numa entrelinha.
Aqui há um sossego quente no ar
Um silêncio quebrado um assobio
Nas águas paradas e doces do mar
Nada de costas um navio
Vivemos numa ilha do vento
Uma vassoura enorme
Varre de norte a sul incansável
A areia levantada do seu túmulo
A areia morta passeia pelo ar
E fustiga quem se aventura
Pelos corredores da ilha
Entre as casas de pálpebras fechadas.
…Crepúsculo
Nós, os velhos
Amamos das noites os crepúsculos
As alvoradas veem-nos de joelhos
Com dores de ferrugem nas dobras dos músculos
Nós os antigos
Preferimos a angústia amarela
Do sol morto e odiamos a janela
Preferimos o mundo reduzido dos postigos
Nós
Preferimos a completa noite
O invisível caído como um açoite
Enquanto ficamos mais sós
Nós
… círculos
Habituavam-se as aves à gaiola
E os peixes coloridos aos aquários
Habituavam-se os pedintes à esmola
E os operários aos salários.
Habitavam bairros inteiros
Figuras destacáveis de cartão
Que quitavam a solidão
Com gratuitos fogareiros
Desenhados a carvão.
Pela madrugada nevoenta dos escarros
rodavam pelas circulares do destino
Autocarros
Desatino ao desatino
Quando as sirenes fabris uivavam
Os autocarros tropeçavam
Às portas por onde entravam
Sem rosto pernas mortas
De operários de desgosto.
E tudo se repetia
Maquinalmente
Cada dia mais mais se esfria
A máquina da gente.
……de solidão
Há homens que o não são
Que são bolsas de pedras na mão
pontaria feita à humanidade
São uma manada de cães ladrando aos homens
que o são
Açulados por febres de classe alta
Atiçados pela inteligência que lhes falta
pelo medo cão.
Nas grandes capitais dos homens que o não são
Que deixaram de ser o que não é programado
Para a sua condição
Descem ao mundo povoado.
Para que os reconheçam trazem sorriso rebuçado
Desprezo programado
Olfacto apurado
E cueiro de alma desinfectado.
São pagos a ouro
E têm na algum tesouro
Que tudo merecem até um bom agoiro
Porque sem eles coitado do moiro
Coitado do preto coitada da preta
Que não saberia dar aos filho em chupeta
Em vez do leite da teta
Nem usaria inoxidável a grilheta.
Veem do benelux
Com os respectivos lux-sabonetes
Trazem suas bebidas e comidas de luxo
Em latas assépticas trazem salmonetes
E chicletes
Vêm de paris
E de Lisboa
Senhores do seu nariz
“numa boa”
Vêm
O pior é que vêm.
aniadversário de professor
- Qual é a sua opinião sobre o regulamento?
- Levanto-me para gritar, para cantar;
à luz reflectida na baía levanto uma flor como emblema.
Proponho antes outro tema:
em vez do regulamento, a alegria.
- Senhor Professor, não lhe pedi alternativa
para esta discussão,
só lhe pedi uma crítica construtiva
para o regulamento da organização.
- Que me desculpe o camarada,
mas eu, de regulamentos sei nada.
Mas ainda assim, proponho
que do regimento com força de lei,
faça parte o direito de gozar a vida
e a arte das carícias do vento
e que seja incentivado o deslizar
do pensamento
que ele se possa dispersar
numa flor, no silêncio e na voz deste poema;
que se possa e deva conversar
para descanso, por alegria, e sem tema. - Senhor professor, está a desviar-nos do assunto da agenda.
- Eu só quero conversar,
“serrar presunto”
que a minha conversa faz parte da lenda:
Quando nasceu o primeiro homem e começou
a falar por falar inventou nesse exercício fútil
o lobisomem para ter uma sombra para ser
par. A felicidade é o homem e o seu
lobo, é a propriedade e o roubo, é a luta de
línguas contrárias e uma unidade de ideias
adversárias.
O avô do homem era um lérias:
Deus conversava sozinho, até sozinho
inventava na ponta da língua o caminho das
coisas mais sérias. Diz a lenda das escrituras
que Deus andava à solta pelo céu e a
terra era a sua aventura, uma ideia livre que lhe
caiu do chapéu.
E diz, outra vez a escritura,
que foi o homem quem
inventou a censura.
- Senhor Professor, peço-lhe que tenha paciência
e chamo-lhe a atenção:
aqui somos homens de ciência
e queremos regulamentar tudo e até a paixão.
- Que seja reconhecido o direito ao erro,
até desse erro em que cai a ciência de, em nome do homem,
lhe cavar o enterro
para, em seguida, lhe pedir paciência.
Eu só quero conversar sobre a liberdade do ar.
Eu só me quero resgatar
do tempo de tanto tempo que perdi a organizar
em nome da felicidade e da natureza
que algumas coisas há
que já só há em ficheiro:
como o ar, como a volúpia, como a beleza…
Eu só quero despejar da alma as palavras ao ar e ficar a vê-las voar.
- Senhor Professor, mais uma vez lhe digo que não lhe permito…
- Que do seu regulamento, meu amigo, eu faça
um mito.
Mas deixe-me desenvolver outra mitologia,
falar como quem fala para o seu
umbigo, sem me preocupar com signos, com
semiologia; deixá-las só elas as palavras
compreender o que digo. Falo por falar
com as palavras que me não deixam calar. - Senhor Professor, estamos a perder tempo e isto não é um passatempo.
- Eu sei que sou um contratempo; a minha
paisagem é um quadro pintado de azul claro,
de verde , de cores frias… - Senhor Professor, dou o nosso encontro por acabado que não estamos para aturar as suas manias.
Eu farei o regulamento necessário que dele depende o meu salário.
- Obrigado, obrigado por esta prenda de aniversário de ficar a saber...
… da noite
Dorme meu amor
Embrulha-te na escuridão,
Protectora da noite, nela imersa
Pelo meu lado, agarro-me a um clarão
e rasgo-me em vários para uma conversa.
Dorme meu amor
Crisálida de noite liberdade
Pela manhã ao sol brilhante borboleta de ar
Pelo meu lado esfaqueio a cidade
Rua a rua veia a veia para me sangrar..
(ás vezes conto as batalhas perdidas
As ganhas contam-se pelos dedos
Assinalá-los-ás por épocas por vidas
Por amores por sonhos por medos)
Mas dorme meu amor
Tranquila a esperança é amanhã
Hoje foi só uma dura passagem
pelo meu lado urdo uma via sacra em teia de lã
a quente, bordada na minha alma a vida via viagem
(ás vezes canto pelas esquinas
Uma desdita maior do que a minha
Pelo mesmo preço ainda canto duas sinas
A minha bem triste e a da pobrezinha)
Dorme meu amor
Nas dobras da noite da solidão
Da minha ausência
Pelo meu lado carrego os erros numa canção
Numa vibração da voz um cristal de demência.
Dorme meu amor dorme
Meu amor melhor meu sonho eu feminino
Não te arrepies quando regresso neste destino
De mim sobrou só este poema conforme.
S. Tomé, princípio de 1980
© Arsélio Martins, professor só... logo após.....
se quando escrevo não penso no que escrevo.....
ainda como se fosse ontem
então o que escrevi sobre o mais importante que é torcer o nariz foi só mostrar-te tal qual és visto pela minha mão direita
Prevertido
Prévert foi ao mercado das flores
comprar as flores mais lindas e mais silvestres
para adornar o peito da mulher mais bela.
Prévert foi ao mercado das roupas
comprar os vestidos mais leves, frescos e belos
para vestir o corpo da mulher mais bela.
Prévert foi ao mercado dos vinhos
comprar os melhores néctares
para celebrar a mulher mais bela.
Prévert foi ao mercado das ferragens
comprar a corrente mais bonita e forte
para prender a mulher mais bela.
Prévert foi ao mercado dos escravos
para comprar a mulher mais bela
Felizmente tu,
meu amor,
não estavas lá.
para me lembrar outro Arsélio Martins de outro século
12022021, hoje
hoje vejo uma máscara mal amanhada sem tapar a boca que nos come e o nariz que nos respira
Neste mês de Fevereiro, sobra-...
Tenho tempo demais para pensar no inexistente de lá fora... furturo ou talvez melhor furto do futuro, porque há quem assim diga. Mas isso tem o seu temporal porvir. Para hoje o tema....
...é outro e apaixonante: há quem escreva como se não escrevesse.
[Assim é, claro! digo eu como especialista do assunto. Sabido e admitido é que quem escreve finge querer deixar uma herança aos vindouros que não pode confundir-se com a utilidade do texto de algum velho ou novo testamento ou de testamento dado à guarda de juizo, advogado, solicitador para que o acumulado seja entregue a mula ou a cu....do em acordo com alguma vontade mesmo que não expressa forçosamente impressa. Ainda em vida percebi que ninguém dos meus sobrevivos sentirá obrigação em levar-me e entregar o meu cadáver para uma participação no teatro anatómico.
Há muitas trocas de opinião entre os mais próximos do cadáver: ouvi mesmo dizer que isso não tem sentido até porque o morto nunca pode ter a certeza de não vir a calhar em sorte um naco de sistema respiratório ou reprodutivo de bisavó ... à mesa do teatro anatómico em sorte atribuída a um seu bisneto...]
Quando chegamos aqui e agora, na hora de escrever o que nos falta impingir, só nos falta o que fomos acumulando que é tudo o que esquecemos até agora, aqui mesmo. O que escrevo, sei eu antes e agora, só a mim interessa. Como exemplo, houve um tempo em que escrevia para ser dito na rádio independente de aveiro e ouvido mesmo aqui ao lado sem pensar que não sobrava para ser lido. Do mesmo modo, escrevi para jornais locais (e não só) para ser lido não me lembro por que leitores que não ouviam as letras que juntara para as acompanhara até adormecerem nas páginas de jornal Sei que foi assim. E o que foi já era ... de outra era.
entretanto...
De vez em quando..........antigamente
Tenho muitos cadernos abandonados por mim em prateleiras do tempo passsado.
De vez em quando passo uma mão pela capa de algum caderno que quero passar para as mãos de uma neta - essa que se reinventa todos os dias, em cada papel que apanha a jeito.
Para que o caderno fique sem mácula do tempo antes da prateleira, rasgo as páginas já riscadas por mim em tempo da prateleira onde se riscou.
O acaso dos riscos, das rugas.
Pretextos: perseguir gralhas que nunca vi e vejo....
Uma palavra qualquer e um perfume colhem-se ao acaso. Um fermento tem duas palavras alinhadas, guerrilheiras, encolhidas mas prontas para te saltar ao pescoço. As duas palavras assim alinhadas vivem no chão das palavras. Um desejo de palavras é uma trepadeira aérea, palavras enroladas no teu corpo. As palavras espreitam um campo de batalha, uma arena, uma cama, uma página em branco, um pretexto.
(que em tempo percebi e agora não percebo)
... justificação quase inútil ...
que não é costume do autor confessar-se ou justificar-se e nem sequer publicar-se, mas publicando-se como memória experimental, convém esclarecer que estes textos foram escritos para serem lidos por um amigo aos microfones de uma emissora pirata de rádio do século passado e o sentido que têm tem de ser buscado em paisagens e personagens do século passado.assinado: AA
... nem sei que dia é hoje ...
Não sei que dia é hoje. O dia arrasta-se viscoso e fétido. Uma nuvem pegajosa e fria ocupa o norte e o sul da minha cabeça. Uma orquestra de bordões vibra dentro do átrio que a minha craniana é. O auditório é enorme e nem se sentaram todos os gritos de uma multidão revoltada. A pateada ressoa.
À saída, o homem que tentou cobrar as entradas pergunta pelos bilhetes de saída e as portas partem-lhe a cara. Um estrondo sobe desde o peito até ao átrio aberto na cabeça. A catástrofe foi evitada por uma multidão de pombas que, batendo as asas, irromperam dos ninhos, ali perto das olheiras, e ocuparam toda a amplidão do auditório em que se ouvia a ária do adeus à vida.
Não sei que dia é hoje. Um político vem até ao púlpito e declama um sermão previamente escrito. Ouço-lhe as imprecações e o ribombar da explosão da bomba que um terrorista trazia no bolso. Dentro da minha cabeça, se desfaz o político e o terrorista ingénuo e infeliz.
Não sei que dia é hoje. Um jornalista denunciou em voz vibrante e clara, a conspiração que percorre os corredores do palácio do poder. Uma secretária ouviu acidentalmente as palavras que umas murmuravam para os ouvidos dos outros e fugiu para as escadarias. Ali, por ter tomado consciência de si, iniciou um discurso inflamado até chegar a ambulância da sua próprima loucura. Um deputado esclareceu a imprensa que se ela assim estava e falava tal se devia a ter sido abandonada pelo deputado do seu círculo de amigos, entretanto eleito para outro parlamento.
Não sei que dia é hoje. Mas sei que uma nuvem pegajosa e fria ocupa o leste e o ocidente da minha cabeça. Um primeiro ministro declara que nunca mais declara coisa alguma. Felizmente, penso eu. O mesmo não pensa a oposição e e o seu próprio partido. Fazem um barulho danado. Dentro da minha cabeça, há ameaças de paz e nenhuma paz é possível.
Não sei que dia é hoje. Deixem-me em paz. Deixem-me em paz.Não sei que dia é hoje. Deixem-me em paz.
... em frente ...
Em frente, o quadro é quase branco. Só três vergões no papel denunciam que o papel foi torturado. Dois pequenos traços a carvão denunciam uma intenção frustrada de um esboço geométrico.
Em frente, a moldura cerca uma paisagem branca. No vidro, reflectem-se a estante e o quadro negro e vermelho da parede contrária. Vê-se ainda uma nesga de porta.
Em frente, o quadro é quase branco. Para a direita, uma porta dá para uma varanda e vêem-se telhados e, lá adiante, contra o céu cinzento de chumbo, destaca-se um edifício entre duas torres falsas, sendo que a torre da direita me parece igual à da esquerda depois de rodada de 90ª em torno de um eixo vertical que a atravessa de baixo até cima.. O eixo continua pelo céu dentro, parece-me mesmo que se enfiou nas nuvens. Talvez seja uma antena e sirva para estabelecer comunicação entre o edifício e o céu.
Em frente, o quadro é quase branco. Os candeiros acenderam-se na porta à direita. Também se acenderam nos carros velozes. Fixado a esta mesa, tudo vejo nitidamente. O que está fixo no exterior, olha-me como o quadro branco me olha com os seu olhos vazios de sentido. O que se move no exterior parecem-me olhos inquietos buscando um sentido no movimento. O que move não vê, pelo menos não vê o meu olhar perturbado pela penumbra entre o dia e a noite. Os faróis mostram a presença que se faz ausência. Sigo-os com o olhar e escuto o seu movimento como uma ondulação urbana chegando e partindo dos meus ouvidos. Os edifícios estão silenciosos. O quadro branco em frente está silencioso, atento aos meus movimentos que ele reflecte.
Em frente, o quadro é quase branco, sobre uma parede branca. Posso desenhar a esquina com um traço negro. Dobro a esquina com os olhos e parto pelas ruas até lá onde o quadro é negro. O corpo aqui fica suportando os dedos inábeis que martelam letra a letra o quadro branco do computador.
Em frente o quadro é quase branco. Viro-lhe as costas, mas sei que nas minhas costas está o quadro quase branco e nele colados estão dois olhos cansados de ver. Para os recuperar, viro-me para o quadro quase branco e volto a ver o quadro quase branco e à direita a rua com os seus edifícios mergulhados na escuridão, as luzes fixas dos candeeiros, as luzes móveis dos faróis chegando e partindo, fugindo de mim.
Com nitidez vejo o mundo quase branco. Um mundo de papel e de luz, de luz no papel. Um mundo inóspito por dentro de mim. Um mundo inóspito por fora de mim. Neste mundo sem fronteiras visíveis, um lobo anda à voltas como se estivesse encurrralado no quadro quase branco, em frente de mim. Nitidamente vejo-lhe os olhos brilhantes, os meus olhos.
... dachau ...
A 20 de Março de 1933, em Dachau - Alemanha, é aberto o primeiro campo de concentração. Ao mesmo tempo, é terrível e necessário falar destas datas. É preciso escrever cartas aos nossos filhos e aos filhos dos nossos filhos também sobre os horrores.
A Andreia e o Zé tornaram mais simples a memória do dia negro, não o ocultando, mas desvendando-o no seu reverso de esperança: No campo de concentração Stalag Ulía na Silésia, em 1941, Messiaen compõe o "Quarteto para o fim do tempo". Lá, nas mais incríveis condições, para um público de guardas e prisioneiros é estreado o "Quarteto para o fim do tempo".
Tenho de agradecer ao Zé a à Andreia terem dedicado aos seus alunos do Conservatório alguns momentos dos mais belos da humanidade, mesmo estando eles impregnados de sofrimento. Tenho de lhes agradecer poder escrever esta carta sobre o horror, temperada pelo poder do homem livre, mesmo estando preso, temperada pela criação que, até no meio da destruição, irrompe como uma hamonia desconcertante:
A 20 de Março de 1933, em Dachau, Alemanha, é aberto o primeiro campo de concentração nazi. Contra ele, não posso evitar um surto de cólera humana e, ao mesmo tempo, apesar dele, um vendaval de esperança: um pequeno silvo de trompa que anuncia o futuro ainda humano.
Apesar dele.
Graças a eles.
... há quantos anos? ...
Há 33 anos, em 24 de Março de 1962, as comemorações do Dia do Estudante estão proibidas por Manuel Lopes de Almeida. Toda a gente(?) se lembra da crise académica de 62, que vem desde o seu início com a repressão brutal da ocupação da cantina da cidade universitária, com a realização do proibido I Encontro de Estudantes em Coimbra e a criação do Secretariado Nacional dos Estudantes Portugueses. De Manuel Lopes de Almeida pouca gente se lembrará, mas todos se lembrarão da comemoração que proporcionou com a sua proibição. Greves de protesto, Solidariedade Nacional das Academias, Luto Académico. O Ministro há-de acabar por supender todas as direcções associativas. Para isso recebe a ajuda interessada de muitos académicos de caca que ajudam a reprimir os estudantes e a limitar a autonomia das estruturas associativas.
Para medir o peso da coisa, basta dizer que Marecelo Caetano se demitiu do cargo de reitor da universidade, tal foi a gravidade das violações.
Não vale a pensa agradecer a Manuel Lopes de Almeida, nem aos seus amigos porcos polícias, nem aos seus académicos de caca, nem aos seus porcos palhaços.
Há 21 anos, em 24 de Março de 1974. Uma reunião clandestina do Movimento das Forças Armadas decide um golpe militar para um dia entre 20 e 28 de Abril de 1974.
Poderia estar a dizer isto aos meus amigos, na mesa do café. Mas não estava a dizer isto aos microfones de uma rádio local e independentes. Agradeço ao Movimento das Forças Armandas na sua decisão de 24 de Março.
Há pouca memória disto e os estudantes, com toda a liberdade, comemoram em vez da vida vivida e da primavera, o regresso do capitão fantasma ou do capitão litro.
... alergias ...
Com a primavera atacam-me todas as alergias. Esqueço-me de outras alergias intemporais, para me concentrar no combate às novas alergias. Como se irá ver.
Acusavam o homem de não ter ideias.
Agora acusam o homem de ter ideias. Acusam o homem de ter ideias qeu não pode cumprir. Acusam o homem de ter ideias que quer cumprir.
Acusavam o homem de não ligar ao que a sociedade quer. Acusam o homem de ouvir demasiado a sociedade civil, mostrando que não sabe o que quer. Acusam-no de ter a mania de ser o homem que sabe o que quer para o país, que o que interessa é o que o país quer e não o que ele quer para o país.
Acusam-no de defender demais o estado providência. Acusam-no de defender demais o mercado. Acusam-no de defender demais a imiciativa privada. Acusam-no de defender demais a intervenção do sector público. Acusam-no.
Acusam-no de estar rodeado de imbecis e idiotas que nada sabem dos problemas do país. Acusam-no de estar rodeado de pessoas que sabem demais e que, por isso, podem ser prejudiciais ao país.
Acusavam o homem. Acusam o homem. Acusarão o homem. Porque a política está a tornar-se num jogo sem regras. Em política , devia discutir-se mais as ideias e menos estender dedos acusadores a todas as ideis. Devíamos ter uma ideia-tesoura para cortar dedos acusadores com rumo, mas sem moral.
As palavras não chegam para para vencer alergias. É, por isso, que continuo com comichões.
... pacheco ...
Já, muitas vezes, defendi que há novos políticos que sabem que se tomou desnecessária a hipocrisia profunda. Porque a opinião pública está anestesiada ou porque a opinião pública não existe, eles dizem a verdade quando dizem que mentiram e mentem quando estão a dizer a verdade.
Nenhuma ideia interessa se estiver provado que os votos têm a ver compromissos clientelares somados ao medo social que todas as mudanças trazem dentro. Nenhuma ideia interessa, se estiver provado que as pequenas e grandes cumplicidades, de tantos anos de governação são os fios com que se teceu um tecido social pegajoso desde a mais pequena aldeia aos grandes negócios da capital e do capital.
O meu amigo Pacheco dramatiza todos os dias a vida política, afirma coisas, alerta para a insegurança dos investidores, para o desastre, para as brincadeiras do Soares, estica cordas entre os mastros mais altos do deserto. Pacheco chama a atenção para o abismo que sobrevirá caso caia o partido do governo de tantos que são só alguns, valendo por muitos. Como se estivesse a cumprir uma missão de consciência, com toda a sua convicção, o meu amigo Pacheco cria o desastre, fala do desastre, cria autores para o desastre, acusa autores do desastre nacional, descreve o futuro desastre com as cores mais negras, adivinha o desastre futuro nas palavras dos opositores, denuncia veementemente a oposição de estar conscientemente a prometer mundos e fundos que não há, para atirar o país para a bancarrota e o desastre.
O meu amgigo Pacheco é, para além de deputqado, chefe de bancada e de claque, pretende ser também um cientista, um analista político, um estratega. E é vaidoso demais para deixar por mãos alheias os seus méritos de cientista social e estratega. E, sem olhar para trás, vai de publicar as suas ideias tácticas para repetir a maioria governamental. Segundo ele é preciso dramatizar em crescendo até às eleições.
Assim, o meu amigo Pacheco se denuncia como argumentista do drama, que ele, como actor, está a representar. O meu amigo Pacheco não é tão estúpido que não tenha percebido que, entre a representação e a criação no teatro da vida social, há só um pequano passo. O meu amigo Pacheco já deve ter lido que há loucura nisto. Sabendo da ligação entre os meios e os fins, já nem sei se o meu amigo Pacheco não estará a tentar um meio fim.
Não há qualquer hipocrisia vulgar em Pacheco. A hipocrisia do meu amigo Pacheco é invulgar.
... a casa espanhola ...
De vez em quando, entrava naquela loja escura e funda e pedia umas calças iguais às que trazia vestidas. Sem grandes complicações e sem grandes conversas, procurava-se, vestia-se, media-se, pagava-se. Uns dias depois, buscava as calças que iam ser as calças do meu hábito de usar calças.
De fora, vejo as mesmas pessoas dentro da loja. Mas esta foi renovada e eu sinto-me cheio de dúvidas para lá entrar. Será que a renovação da loja mudou as pessoas? E os preços? Será que as pessoas ainda me conhecem? Será que possa pedir as minhas calças sem que tentem vender-me umas calças que não sejam iguais às calças fora de moda que eu sempre usei?
O primeiro sinal de alarme vem dos bolsos. Rompem-se sempre antes de tudo o mais. Depois, à transparência, vejo que o tecido, ao cimo, entre as perneiras, está no fio. E vai chegar o momento em que caminho para a loja modernizada, menos escura mas ainda funda, tem que ser tomado apesar de todos os temores. Lá irei.
Por enquanto, vou passeando o meu bolso direito roto. Por enquanto, o bolso esquerdo, já no fio, ainda não deixa cair o isqueiro e, cheio de coisas, equilibra o saco que penduro do ombro direito.
Quando trago as mãos nos bolsos, a mão direita roça a perna direita. É por isso que estou a pensar em mudar para cuecas mais clássicas que agora se chamam boxers.
Para manter a minha mania clássica a respeito de calças confortáveis e já rotas, vou actualizar-me a respeito de cuecas, com a explicação conservadora de que os boxers têm o formato das cuecas da aldeia da infância, fico em paz comigo.
... convergência de divergências ...
Um dia vieram dizer-me que podia haver uma convergência de divergências. E eu assinei por baixo. Ainda não percebi como é, mas é uma coisa nova e é por isso que assino por baixo.
A minha mão esquerda, inábil e grotesca no gesto de assinar, assina o apelo. Além da minha mão esquerda, assinaremos dois pés e trinta e tal pessoas de diversas formações. Professores, cientistas, objectores, arquitectos, profissionais da política, cantores, compositores, sindicalistas, operároios, camponeses, soldados e marinheiros. Todos à beira da idade dos que mal chegam ao século seguinte, os subscritores querem dar-lhe uma marca de água limpa. Os subscritores estão convencidos que há uma diferença assinalável entre os que defendem o que a esquerda tradicional tem para oferecer. E é nisto que há um drama e um abismo. Eles pensam que o que defendem também pode ser oferecido e eu, abaixo assinado, não tenho alguma coisa a oferecer e não sei se há alternativa no que defendo.
Não defendo a mesma coisa, porque não me defendo. E talvez porque não queira construir os amanhãs que hão-de vir, para que outros os vivam. Em nome do futuro dos outros tem-se destruído o presente de quem vive, de tal modo que quem vive, só sobrevive. Começo a pensar que bastava não destruir o presente de quem vive. Nenhum futuro precisa de mais que uma herança universal não hipotecada e sem impostos sucessórios a pagar.
... ordem de prisão ...
O presidente deu ordem de prisão ao comandadnte.
O comandante tem sete irmãos. O comandante estudou num colégio de jesuitas em Tampico e até foi professor. O comandante encontrou em Chiapas o lugar da revolução.
O presidente fez guerra ao comandante e nela perdeu dedos e anéis. O presidente encenou o diálogo com chiapas. Todos os presidentes são capazes do diálogo, sendo incapazes de matar a fome. Podem ser definitivamente incapazes de matar a fome e a sede de justiça, mas julgam-se sempre capazes de matar quem tem fome e sede de justiça.
O comandante não é o índio que devia ser, é só latino-americano. Apesar de usar um disfarce, eles conseguiram saber quem ele é. Pelo diálogo com as populações, pelo diálogo com ele, pelas polícias. O comandante marcos está marcado. Uns diziam-no marcado para ser preso, outros dirão que está marcado para ser assassinado. Uns e outros sabem que ele está marcado para ser um símbolo.
O presidente deu ordem de prisão ao comandante. E o comandante deixou-se prender na teia de todos os presidentes. Uma aranha poderosa suga o cérebro de todos os presidentes, ministros, deputados. É, por isso, que a maior parte dos poderosos deste mundo têm marcas de idiotia no olhar.
O comandante talvez até já tenha sido preso, talvez até já tinha sido assassinado..
No seu olhar ainda se reflecte o céu das montanhas e uma floresta verde. Lembro-me da frase que ele usou para cumprimentar o zedillo eleito: Benvindo ao pesadelo… Saúde. E um para-quedas para esse precipício que há no seu amanhã.
Eu estou para aqui a chorar, cheio de pena do presidente idiota.
... as criadas...
Dois homens são as criadas. Um terceiro homem é a senhora que se nota pelo traje mais vistoso.
Nenhum deles finge ser o que não é e no entanto são o que eu disse que são.
O que é que separa o homem de ser a mulher cobiçada ou a criada? O que é que separa o homem de ser o que quer dar a entender que é?
Os dois homens que são as criadas vestem fardas de criadas, vestindo desse modo alguns gestos e pequenos ódios. Vestem cheiros também, quando vestem o espaço de cozinha e a lida da limpeza. Se tivessem amantes, eles representavam o odor próprio dos outros serviçais. Não se chega ao acto feito, ao facto. Vestir é representar o por fazer.
Um teceiro homem é a senhora. O que separa esta mulher do homem que lhe levanta a pose de vaidade intensa e lhe dá uma salgada voz de entrega e perdição? Nada nem ninguém pode separar o que não é separável - por esta razão à criada sobra não uma razão, mas a maldição de adorar a mulher perfumada.
Uma criada sabe. Não tem razão.
As criadas cheiram a lavado
... o português suave...
Compro um braçado de flores para oferecer ao santo que me ofereceu as botas da tropa. Com mais dinheiro comprava-lhe o convento de mafra ou, pelo menos, um lugar no chão de mafra para uma tumba patriótica decente.
Compro um ramo de violetas para oferecer à dama que me trouxe ao colo e me consolou depois da trágica derrota frente ao kasparov ainda este jogava na segunda divisão do campeonato que se disputava no xadrez lá para os lados de pinheiro da cruz.
Compro um camião de rosas de cheiro para oferecer à primadona que cantou no meu funeral tão convictamente comovida e contralto que deus decidiu ressuscitar-me de entre os mortos para não ter de a ouvir cantar de tristeza.
Comnpro um quintal de flores de papel reciclado para os lados de vouzela para levar a minha mulher em seu altar no dia em que ela aceitar a máxima divisão comigo: ela trabalha e eu descanso para todo o sempre.
Compro tudo o que me faz bem à consciência. Hoje compro uma rosa. Comovo-me com o regresso à luta. Compro uma ideia solta. Uma fita para o meu cabelo. Compro um chapéu e um par de óculos, para não ver que está tudo tão mudado. O mundo é tão diferente. Mesmo as moscas não são as mesmas. As moscas têm uma vida tão curta que também isso me comove.
Compro um cartão de sócio do porto. Se comprasse a jóia, que jóia comprava? Compro um santo e uma senha. Compro uma sanha assassina e dois bilhetes para a ópera. Compro um passe para toda a temporada do s. carlos, outro para temporada do centro cultural de belém e ainda outro para a temporada do politeama. Sento-me na esperança de ver todos os espectáculos. Estou de acordo com todos os espectáculos e com os argumentos a favor da pena de pato. Se me deixar mato quem me rouba. Comovo-me com as imagens da virgem mãe violada e reclamo justiça. Compro a imagem de uma mulher perdida nos inacabados corredores da catedral. Compro um papel ilustrado desenhado com os pés daquele que cortou as mãos para não poder matar-se.
Comovo-me com a dedicação dos cães e comovo-me com a causa dos gatos. Compro rações. Compro o detergente que lava mais branco. Compro uma boa acção de um banco igualmente bom. Comovo-me com a dedicação do capital no regresso a casa.
Sou português.
... os gnomos
Os gnomos tomaram conta do céu. Uns pintaram tudo cor de laranja, dizendo que o nosso mundo é cor de rosa. Outros pintaram tudo cor de rosa, frisando que a cor laranja é o negro mais escuro e que o mundo ficou um beco e buraco negro para onde foram atraídos morcegos e vampiros.
Quando quiseram ser mais claros os gnomos cor de rosa falaram do tráfico no beco dos gnomos cor de laranja. Ainda não arriscaram a falar de tráfico de drogas pesadas mas trabalharam de tráfico de influências que é droga leve.
Todos os gnomos experimentaram e verificaram que dá uma sensação de estar acima de toda a suspeita e acima da lei. Costumavam dizer que que é excitante como voar.
Mas os gnomos cor de rosa passaram-se a dizer que a sensação a ter não era essa de estar acima da lei, mas simplesmente fora da lei. E que era preciso pôr os gnomos traficantes dentro da lei.
Foi assim que os gnomos cor de rosa inventaram uma nova lei, porque para gnomos dentro da lei faltava escrever uma lei. Uma lei que, aplicando o código penal aos gnomos, fechasse tudo numa teia legal.
Há quem diga que é mais uma lei para sobrevoar. Está a aumentar a excitação dos gnomos voadores. Mesmo aqueles que têm sido incapazes de voar por via das influências (mais venéreas que veneráveis) estão excitados e alugaram um zepelin para sobrevoar a nova lei. Nunca contaram o que viram lá de cima. Mas há quem diga que voltaram mudos, por terem visto a aranha falante e a sua ninhada.
O que é certo é que neste período pré-eleitoral os gnomos de todas as cores pintam o céu de azul celeste.
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... pelas escrituras...
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Nenhum de nós sabe quanto custa um abraço. Com gosto, pagamos todos os abraços solidários sem contarmos os tostões. Não regateamos o preço d...
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eu bem me disse que estava a ser parvo por pensar que só com os meus dentes chegavam para morder até o futuro e n...