(d)escrevo, logo existe; mas a que sabe?

Nunca sei quando devo ficar de rastos. Preciso de quem me ensine a arte de escolher os dias para ficar de rastos. Ou ando eu sempre de rastos e já nem dou por isso?

E tendo aprendido a desistir do que há de sagrado em mim,

- aquilo a chamo desejo volátil, santidade do corpo em si ou da vida vivida por si mesma no acerto ou concerto com as vidas dos outros -

todos os dias me resigno a ouvir os passos dos que se afastam, sem que me levante para os seguir.

Isto não interessa, eu sei. E apesar de saber que nada interessa, escrevo-o para que passe a existir o sem interesse

- porque afinal o sem interesse é a minha vida - única e irrepetível.

Estas frases afirmam e provam a existência. Não quero provar a unicidade. Provar, provar ... só a existência. E continuar sem saber, sem conhecer ... o sabor.

devastado

(...)
I will show you fear in a handful of dust.

Frisch whet der Wind
Der Heimat zu
Mein Irisch Kind,
Wo weilest du?


"You gave me hyacinths first a year ago;
'They call me the hyacints girl.'
- Yet when we came back, late, from the Hyacinth garden,
Your arms full, and your hair wet, I could not
Speak, and my eyes failed, I was neither
Living nor dead, and I knew nothing.
Looking into the heart of light, the silence.
Oed' und leer das Meer.

[T. S. Eliot; The waste Land]

o desejo volátil

Eu achava que queria ser poeta, mas no fundo queria ser poema.

[Vila-Matas; Batleby & Companhia]

estagnardia

Há dias em que espalhamos palavras sobre todas as coisas da nossa vida, como quem estende um pano sobre as nódoas da mesa. Para quem chega de novo, vindo de fora, o que vê é a toalha lavada. Mas para nós? Tentamos parar o movimento perpétuo por um instante melancólico. Mas nós sabemos que há o dia seguinte, que nada parou entretanto porque nada aconteceu a não ser sobrepor as palavras, uma ou outra mentira piedosa sobre nós mesmos para nós mesmos. É certo que deixamos que alguns grãos de poeira se colem à pele do lugar.

Acordo ainda mais cansado ao ter de reconhecer que tudo recomeça uma e outra vez na cabeça que é onde precisamos de travar e é onde não há travões... onde não há travões. Eu posso decidir que não dou mais um passo e deixar-me adormecer paralisado nesse instante mágico em que decido sobre o meu corpo. Mas a imaginação é o filme que passa contando-me tudo o que fui e tudo o que não serei por ser incapaz de ser o dia seguinte de mim.

.... em saco roto

se eu me levantar e pedir a palavra para dizer

Como Novalis disse ...

é porque não sou um saco roto

se acordar

se a manhã vier beijar-me
como só ela sabe
eu hei-de saber calar-me
no colo em que meu sonho cabe.



se acordar?
sonho acordado.

lutas de família

Num blog praxista , feminino, estão publicados textos contra a praxe. Um dos textos escolhidos foi escrito em 97 pelo meu filho mais novo que é também o meu filho mais velho. A este respeito, vale a pena ler um filho afirmar-se, no seu Diário de Bordo , orgulhoso em estar ao lado do Pacheco Pereira, do mesmo lado da barricada.
Nos idos de 70 do século passado, contra a queima e contra a guerra, ao lado de Pacheco Pereira militavam os pais do meu filho.

tisana 17

Nos anos em volta de 1970, lia muita poesia e comprava alguma com o pouco dinheiro que ia tendo (e era muito, pelo menos para a poesia que ninguém que eu conhecesse comprava). Hei-de revisitar uma a uma as mulheres que lia - agora que me lembro, as mulheres da poesia desses anos, deixaram-me mais marcas que os homens. Um dos livros que copiei laboriosamente ainda antes de o comprar era o "39 tisanas" da Ana Hatherly. Quando o procurei há uns dias e o não encontrei como fiel do armazém da memória impressa, decidi comprar as "351 tisanas" para conversar à porta de casa com o porco Rosalina ou com a chave que abria a porta aberta.


Era uma vez uma chave que vivia no bolso de um homem. Durante muito tempo desempenhou com honestidade o seu trabalho de abrir portas. Até que um dia descobriu que todo o seu trabalho tinha consistido sempre em abrir portas que já estavam abertas. Quando descobriu isso lançou-se corajosamente para fora do bolso. Caíu no chão. Ficou ali. Passa uma criança vê a chave e diz que coisa tão engraçada para fazer um carrinho.

cello






Ouço o que quero ouvir.

Porque somos felizes?

Em verdade, devia contar-vos o dia de hoje como um dia infeliz. De facto, assim parece. Como professor de matemática, decidi fazer uma viagem lenta com os estudantes que trabalham comigo. Para que as coisas parecessem claras ainda antes de partirmos, escrevi como sumário qualquer coisa como: tentativa de construção de uma nova operação ou conceito... pensando. Deixei que eles tomassem os lugares do espírito e tentei ganhá-los para a viagem que eu queria fazer. A ideia parecia-me simples: depois de lhes ter posto uns dias antes um problema complicado, ia agora colocar tudo o que sabíamos sobre o tampo das nossas mesas de cabeceira e procurar de toda a tralha que carregámos, uma ferramenta que fosse interessante e funcionasse a unir os pedaços do tal problema do dia antes. Fomos andando aos solavancos. Não perdemos tudo, algumas peças se foram montando, mas os estudantes não perceberam o essencial. E o pior é que alguns dos que se aproximaram para me perguntar pelo verdadeiro intento, acabaram dizendo que mais me valera ter dado a definição simplesmente.

Na minha vida de professor, isto acontece. Porque eu explico mal. Ou, mais frequentemente, porque os estudantes não querem saber como é que as coisas se fazem, como é que elas aparecem ou como é que escolhemos uma possibilidade entre várias. Também não querem muitas vezes saber porque é que a escolha convencional funciona. Basta-lhes que funcione para os efeitos que o professor desejar.
Em cada falhanço destas tentativas pedagógicas, apetece desistir. Mas nunca desisto, porque é possível que numa destas tentativas um estudante dê um salto para lado do processo do pensamento científico.

Os políticos todos pensam que o povo não quer saber dos processos, nem está apto a percebê-los. Pensam que o povo quer saber do que funciona ou não. Os políticos dizem ao povo o que pensam que ele quer ouvir, ainda que seja mentira. Desistiram tão radicalmente da verdade que dizem ao povo que os impostos vão descer (ainda que seja mentira) e enervam-se se os investidores e decisores europeus ouvirem o que foi dito ao povo em vez de lerem só a verdade que está escrita nos papéis onde a verdade se esconde da compreensão do povo.

De cada vez que há eleições, quase chegamos a pensar que estes políticos têm razão. De cada vez que falhamos com os estudantes, quase desistimos de explicar para impingir a receita.

Somos felizes, porque não desistimos.

[o aveiro; 11/11/2004]

nada me custa mais do que corrigir provas... de amor

Quando te pergunto e tu respondes,
procuro o certo e o errado ou o que escondes?

Eu não quero saber o que é certo ou o que é errado
nem quero virar o ar dos sons para vibrar por outro lado


Sou eu quem se desfaz em tinta vermelha verdadeira
chorando sangue sobre a tua resposta azul certeira

a não esperada
ou a não desejada
ou o contrário de tudo ... que é nada.

depois vieram tambêm cá