Volto sozinha

Torno sola
tra due sonni laggiù, vedo l'ulivo
roseo sugli orci colmi d'acqua e luna
del lungo inverno. Torno a te geli

nella mia lieve tunica di fuoco.

Cristina Campo; Passo d'addio

filiação

quando me perguntam a filiação, o que querem saber?

depois, a piedade

De repente, um relance ocasional mostrou as fundas rugas vincadas nos cantos da boca. Tinha acabado de falar como se tivesse soltado um grito. Assustou-me e quando um animal nos assusta ou evitamos o olhar ou o fixamos hipnotizados e horrorizados. Foi por medo que vi as fundas rugas que lhe cavam os cantos dos olhos.

A piedade que lhe sobra chega para construir uma casa. Depois, a piedade levanta-se e muda de casa.

o saco de gatos

Sem saber que Neo estava escondido atrás da cortina pesada da sala imensa, mergulhada na penumbra da tarde ao fim de verão, a Mãe fez parar o afogueado Leo. Leo não escondia a agitação. Neo andava a esconder-lhe os números de brincar há muito tempo e agora até mesmo ele tinha decidido desaparecer para não mais ser achado.

A Mãe maquinal sentou Leo no seu colo e tentou sossegá-lo, contando-lhe uma fábula ou história sobre o tempo em que era menina e sonhava que tinha partido em busca da sua irmã Tia. Sem hesitar, contou ela, que caminhou por vários dias (meses ou anos, não sabia dizer) sempre em frente. Passou por perigos extremos nesse caminho estreito que não parava de desenrolar-se à sua frente como o tapete de corredor infinito. Às tantas, em seu sonho, adormeceu extenuada para não ver os olhos dos perigos. Ao acordar no cheiro da manhã, continuou a sua busca e logo reconheceu as árvores e as flores do espírito do lugar onde ela brincava com sua irmã, a Tia. E ali estava ela a brincar com o seu sorriso maroto entre os dedos ágeis. Riram-se a bom rir quando contaram uma à outra os seus sonhos que tinham vindo até ali e ao mesmo tempo, sem se perderem uma à outra.

Sem compreender a história, Leo não sossegava. Já cansada, Mãe levantou-o ao ar e prometeu-lhe outros números iguais de brincar, ainda mais coloridos. Largou-o, enquanto lhe passava as mãos pelo cabelo e desamordaçava a ternura da boca com alguma coisa como "menino mais mimado do mundo!". E afastou-se nos seus passos de silêncio.

Neo, que sempre pensara ser o mais mimado da Mãe e da Tia, saíu em fúria da sua caverna de cortina. Com os olhos lavados pelas lágrimas, rasgava os números de brincar de Leo. Daí a pouco, os dois, Neo e Leo, estavam a gritar um ao outro números de brincar. Atiravam palavras de doer um ao outro. Quando as pessoas voltaram à sala viram, com horror, que Leo e Neo se tinham cegado para não verem os olhos mais mimados do mundo nos olhos do outro. A mãe desmaiou ao entrar com dois conjuntos de números de brincar iguais como iguais eram os olhos dos seus dois gatos siameses.

As pessoas apanharam os números caídos nas suas orelhas voadoras. Os números não são para brincar! - disse a voz do desenho triste. A semana ainda mal começou.

[o aveiro; 29/12/2005]

os buracos, as falhas





cabelos em pé




atarrachado, de cabelos em pé.

(...)

(...)
O modo que tem um poeta de extrair do seu trabalho passado novas iluminações para a sua consciência, é parecido com o de Münchhausen para alcançar a lua: cortando a corda por baixo de si para a alongar por cima.
(...)
Cristina Campo; Os imperdoáveis

Orçamento das almas


Quando me sobra tempo - estudar aturadamente a tua geometria tal como ela é, confesso que me agrada - ponho-me a tentar compreender o orçamento das obras que te querem modificar e é um trabalho paciente
sou eu quem to digo olhando os mortos das tuas gavetas, o lixo espalhado nos teus gavetos, as flores murchas em teus altares e as despedidas das pessoas que te acenavam amor eterno e agora te acenam com lenços brancos e nevoeiros densos despedidas de primeiro inverno ou se encolhem como fantasmas em seus assombros, nos buracos financeiros do inferno
onde eu me perco sem poder dizer-te o que quero de ti mais do que és duvidando se quero ver-te jovem como dizem que vais ser ou velha tal como me pareces quando me pareces da minha idade cidade amargurada pelas rugas por onde se esgueiram as águas salgadas essas que ocupam os largos esses aquários onde nadam peixes de chapéu e chapinham carapaus e caras de pau e as reticências
que sempre aparecem quando não sabemos o que lá devia estar depois do que lá está e a terra continua a rodar e me sobra tempo para tentar compreender sem conseguir passar pela janela de onde posso espreitar as tuas gavetas vazias e abertas para o vazio de uma praça mandada abrir em nome de algum filho da mãe.

Por onde temos andado?




Perguntam-me porque vou todos os dias à escola. Porque há várias escolas na escola. Nestes últimos dias, entre as aulas, as reuniões e o natal passámos a vida (Arsélio, Aurélio & Mariana) a traduzir o Geometriagon, da iniciativa de Giovanni Artico, para que os apreciadores da geometria de régua e compasso possam desafiar-se a si mesmos resolvendo problemas, fazendo construções, etc. É uma prenda de Natal. Ainda continuamos a polir arestas, a melhorar as adaptações (a língua e a linguagem...), mas aí está mais um Lugar Geométrico. Aceitamos ajudas, correcções, críticas e sugestões.

Sentia-me bem enquanto dividia um segmento AB em três partes. Só com o compasso. Sem me perder. Clique na bandeira portuguesa e veja os problemas. Um ou outro dos 200 ou mais pode resolver. Basta começar. Melhora-se com o exercício persistente. É o que vos digo.

Claro que o Geometriagon não sgnifica o abandono dos nossos lugares geométricos costumeiros
bloGEOMETRIA
geometrias.net
que são reforçados com a companhia que faz realçar as suas individualidades.
Voltamos a eles, já de seguida. As Geometrias merecem e precisam de parceiros, parcerias e companhias.
Nós também. É por isso que vamos à escola.

A festa

Todos nos queixamos da falta de avaliação rigorosa dos sistemas. Dizemos que quando pensamos em avaliação, estamos a pensar na avaliação dos outros e, forçados a aceitar que temos de ser avaliados como tudo o que mexe, tudo fazemos para contornar as mudanças a que uma avaliação séria nos forçaria. Falamos de avaliação e avaliamos todos os nossos dias.

É isso. Nestas vésperas das festas passamos os dias em avaliações do desempenho dos estudantes e sentimos há tanta avaliação a mais como consequências a menos. Sabemos que uma boa parte dos nossos fracassos não têm origem no trabalho de todos os dias, mas antes na falta do pão de todos os dias em cada uma das casas que habitamos. Falar de pão é falar de espírito, de cultura, da língua e das linguagens, de reconhecimento do trabalho como prestação social, ou de respeito pelos outros, de fraternidade, de solidariedade.

A avaliação nas escolas dá pela falta da primeira demão na pintura. Como se fosse natural, assume-se que nada há a esperar do lado dos primeiros pintores e a escola, sabendo que não pode dar a tal primeira demão, cobre a falta ou a ferrugem com uma demão de máscara e sobre a qual cola a sua marca, uma marca de instrução.

Os sistemas de recuperação, ao nível da marca da instrução especializada, não fazem mais que acrescentar máscara à máscara. Que se deixa cair e se perde a cada pequeno distúrbio ou sempre que alguém acerta com uma pergunta no essencial.

A frequentíssima avaliação nas escolas diz-nos o que não vale a pena e alerta-nos para o que valeria a pena mudar se o princípio de que partimos fosse que somos todos iguais em oportunidades que valem a pena, resultantes do esforço, se nutrem de mais esforço, que o que interessa é antes de mais o que se aprende e o que se sabe. E que a felicidade não tem como medida o vil metal e o privilégio. A frequentíssima avaliação nas escolas deixa-nos cansados ao mesmo tempo que diz à sociedade que estamos em férias e em festa. A sociedade fala disso avaliando-se. falando do que não sabe fazer.

Não foi a escola que contaminou a sociedade com o seu modelo de avaliação. É o contrário que acontece.

Boas festas, pois!

[o aveiro;22/12/2005]

Candidato

As campanhas políticas passam por nós e pelos dias da nossa vida. Agora passa por nós a campanha dos candidatos à Presidência da República. Passam pela nossa vida os candidatos, o que dizem os candidatos e o que dizem dos candidatos.

Por mim, passa tudo e passam todos duas vezes.

Numa primeira volta, ouço os candidatos todos apresentar as suas posições e as suas propostas políticas, para concordar com pequenos detalhes num ou noutro discurso e escolher um lado, um candidato.

E, por força das minhas escolhas, começa uma segunda volta. À minha volta, as vozes levantam-se gritando a inutilidade da candidatura do meu candidato e sobre o facto de ele não ser afinal candidato já que não se afigura provável a sua eleição e ele levanta problemas que não os triviais das candidaturas à Presidência da República, referindo principalmente opiniões divergentes das ideias e planos dos governos. Perguntam-me algumas vezes se ele é candidato ou não ou se não é mais que uma campanha. Perguntam-me se não seria mais sério e responsável ele desistir a favor de algum outro que reuna condições para uma disputa real. [Conselhos e opiniões muito semelhantes foram utilizadas contra a candidatura do Bloco de Esquerda às Câmara e Assembleia Municipais em que participei recentemente. Se os tivesse seguido, tinha aceitado que as minhas opiniões não contam e podiam ser perfeitamente contidas nas opiniões de algum eleito de um outro partido. E eu sei que isso não é verdade.]

A democracia empobrece quando alguma corrente de opinião desiste da sua afirmação pública e desiste das suas candidaturas. Até porque desiste de fazer representar na luta política as pessoas que lhe dão vida e se revêem na opinião política do seu candidato e porta voz.

Cavaco Silva é o economista também responsável pela desgraça a que chegámos , o cara de pau salvador do país com as mesmas artes da desgraça e apoiado nos mesmos artistas. Há mesmo quem acredite que desgraça após desgraça é graça certa.

Louçã é também economista. Vem dizer-nos que o que nos salva são as pessoas em acção e que Cavaco Silva não é mais que ministro de uma cerimónia ritual da alta finança em que os acólitos são os banqueiros por ele libertados das ameaças de crise que aflige tudo o que não é capital financeiro.

Escolho Francisco Louçã.

[o aveiro; 15/12/2005]