há   50 anos

Há 50 anos estava a frequentar a 4ª classe da escola primária e ainda estava longe de imaginar que passados uns meses iria entrar num liceu de uma cidade onde iria pela primeira vez. .

Depois de ler alguma coisa que eu escrevera, a minha primeira professora de português avisou-me que não podia ser tratada da mesma forma que uma mulher a dias era tratada por ela e por isso devia regressar para o meu tempo e para o meu lugar que lhe parecia que eu não era de cidade nem de vila e talvez nem de aldeia. O meu primeiro professor de desenho disse que eu devia cavar batatas nas terras de minha mãe e que não podia desenhar bem, talvez porque as almas de artista não se davam bem com os ares do campo ou porque os desenhos dos camponeses não sobreviviam aos ares da cidade. De que me lembro mais? Não lembro outros gestos de professores, nem caras de professores desse tempo. Lembro corridas num pátio interior cercado de paredes altas com quatro portões fechados, ocupado por rapazes pequenos a correr enquanto fugiam uns dos outros. Lembro uma marcha qualquer a meio de uma semana e de uma farda a que faltava sempre qualquer coisa. Diziam-me que eu fazia parte da mocidade portuguesa e eu achava que, aos dez anos, era pequeno demais e era novo demais... para ser moço. Havia outra escola para as raparigas. Lembro a miha irmã mais velha que estava a acabar o liceu e me protegia de todo o mal nesse primeiro ano de cidade e que ao segundo ano já não estava por perto e eu tinha de esconder o medo que sentia em tudo quanto era esquina.

Não lembro qualquer associação de estudantes. Não lembro o jornal dos estudanes. Soube mais tarde que não podia lembrar, porque me perguntavam pelo que não existia. Nem havia liberdade de expressão, nem havia liberdade de associação. Nem liberdade.

Onde estava há 50 anos? Talvez a chegar a esta escola.


[o estêvão; 01/2007,
da associação de estudantes
da escola josé estêvão]

fiama

nunca aprendi a desenhar embora tenha tentado desenhar
como os meus heróis desenhavam.
nunca me passou pela cabeça culpar durher, leonardo, picasso ou dali
por não os ter imitado bem nos desenhos das cabeças
da santa, do homem e do touro.

nunca aprendi o poema que ainda me falta escrever embora tenha copiado laboriosamente os poetas porque pensava que além de os ouvir ao ler precisava de conviver com eles, precisava de os acariciar,
de te acariciar.

sei desde então e até agora na hora da tua morte que não é culpa tua
eu não ter conseguido ou ter esquecido as duas linhas que eu sei que já li no ar lavado e ainda brincam às escondidas

porque eu não sei se as palavras estão perdidas ou ainda esperam som a som ou letra a letra a fala da minha mão.

Santo do dia

Como qualquer outra coisa do dia, há também o santo do dia. Não aconselho vivamente, mas não queero que lhe falte o santo quando dele precisar.
Por exemplo, o santo do dia diz-me que hoje é dia do mártir S. Sebastião- o mártir, que aparece nas igrejas atado a um tronco de oliveira (?) e crivado de setas.

São Sebastião, segundo Santo Ambrósio, nasceu em Milão. Era um valoroso capitão do exército romano, pertencente à primeira corte da guarda pretoriana. Sofreu o martírio sob o reinado de Diocleciano. Cristão convicto e ativo, tudo fazia para ajudar os irmãos na fé e trazer, ao Deus verdadeiro, soldados e prisioneiros. O próprio governador de Roma, Cromácio, e seu filho, Tibúrcio, foram por ele convertidos e confessaram a fé mediante o martírio. Denunciado como cristão, São Sebastião foi levado perante o imperador para justificar tal procedimento. E confessou publicamente a sua fé. Acusado de traição à pátria, foi condenado à morte. Amarrado a um tronco, foi varado por flechas, na presença de guarda pretoriana. São Sebastião conseguiu sobreviver, e corajosamente se apresenta perante o imperador, censurando-o pelas injustiças cometidas contra os cristãos, acusando-os de inimigos do Estado. Incitou o imperador para que os deixasse em paz. Diocleciano, entretanto, permaneceu surdo a seus apelos, mandou açoitá-lo até a morte e lançou o seu corpo em uma cloaca. Era por volta do ano 284.

No mesmo lugar, também lhe dão a oração apropriada para pedir graças e agradecer ao santo do dia. Não hesite em recorrer ao seu santo. Hoje leia e reflicta sobre uma tal prece da libertaçãos dos ídolos . Quem diria!

Pode obter a lista de santos, procurar pelo nome e até por tipologia. Não se pode pedir mais.

Há mesmo alguns santos que pensávamos nunca terem obtido tal favor de qualquer papado - Santa Joana, filha de Afonso V, a quem pode pode dirigir a oração do amor incondicional

a arte da bicha

Muitas pessoas da minha geração acreditam piamente que aprenderam tudo o que era realmente importante e lamentam profundamente que os jovens desprezem a possibilidade de aprender esse essencial. Chegam a desprezar os novos saberes e competências que se tornaram necessárias por via do desenvolvimento científico e tecnológico, literário ou artístico. O estado moderno, em contra-corrente, não pode deixar de, apesar disso, introduzir os temas que são vitais ao futuro da comunidade embora a ignorância popular tenda a recusá-los. O estado paga este serviço e obriga até as escolas privadas a ensinar esses temas. A minha geração ensina e promove a leitura, a audição e a visualização de filmes e peças teatrais ou obras literárias, musicais, pictóricas e escultóricas que não tinham sentido há 50 anos.

Verdade seja dita que a minha geração está na idade do poder, político, económico e cultural, nos governos regionais e locais, nos jornais, nas instituições todas. E só muito contrariada tem de acalmar o seu desfavor contra o que não conhece e nem pode adivinhar. Alguém esqueceu que teve de lutar pela música eléctrica, pela poesia que não rimava ou pela literatura de Almada a negar Dantas, pela arte de Amadeo, pela liberdade de ir ou não ir para as bichas.

O acontecimento cultural das bichas para a exposição de Amadeo Souza-Cardoso serviu a um editorialista para reclamar contra apoios e subsídios aos agentes culturais que não conseguem merecer a companhia de uma bicha de povo. Diz ele que estas bichas são a prova de que não é preciso criar públicos e que o "nosso problema é responder a solicitações dos públicos que existem e que só não aparecem porque muito do que lhes é oferecido pura e simplesmente não tem qualidade"(?).

Eu não sei adivinhar o futuro de uma coisa ou de outra, mas acho que o ensino e a criação artística são bons usos para os impostos. E sei que uma bicha ou uma procissão de consagração do que está estabelecido não é a estrada real para o futuro. Amadeo não se faz fundamental para a cultura por ser motivo desta bicha gulbenkiana. Amadeo é fundamental por ter continuado persistente a fazer caminho depois de ter sobrevivido às agressões dos ofendidos visitantes da sua primeira exposição de há 90 anos. E é fácil imaginar, ameaçador e de bengala em riste contra o Amadeo de então, um editorialista capaz de louvar as bichas culturais do seu tempo.

[o aveiro; 18/01/2007]

ainda os muros

Ainda há muros altos protegidos dos salt(e)adores por uma mão de cacos dos vidros dos óculos partidos a quem abriu as asas e voou para entrar e ver.
Os que entraram, não conseguiram ver porque lhes partiram os óculos. Os outros foram abatidos pela barragem da aritlharia anti-aérea que sopra metralha às ordens da desconfiança dos sensores apontados a todo o comprimento e para o alto das muralhas.
Os sábados juntaram-se todos para falar disso e da necessidade de uma conferência do desarmamento de ambos os lados do muro, bem como da proibição de levantar voo e violar o espaço aéreo do muro que se transformou num país registado.
Não vimos qualquer interesse na cartografia dos países. E nos mapas só as fronteiras contam: 1, 2, 3, 4, 5, ...

missa cantada

Hoje levantei-me cedo como em todos os outros dias.

Gosto de ver aparecer a aurora quando ela quer aparecer e não só quando a minha imaginação a convoca por precisar dela. A claridade rósea que antecede e anuncia o nascer do sol dá-me a luz que me levanta e anuncia-me a luz que me guia os passos até ao dia claro.

E lembra-me alvoradas estremunhadas, o pé adolescente a explorar a nesga fria aberta entre a enxerga e a coberta pelo clarim da minha mãe, a hesitação da cara a aproximar-se do espelho do tanque de água para onde as enérgicas camponesas da minha vida lançavam em golfadas a água puxada do mais íntimo do poço.

Em cada dia, repito o arrepio estremunhado de quem acorda como quem nasce para sobreviver. Em cada dia da semana, domingo incluído, ouço os mesmos ruídos para me refazer até ao dia em que vivo. Como se eu fosse uma memória que se refaz infatigavelmente, um novo dia que é novo porque é feito de todos os dias que o antecederam. Se não ouvia a requinta da boca da minha mãe ou de alguém por ela, já ouvia o sino quebrado sobrepondo-se à neblina espessada na tentação do silêncio. Chamando o povo para a missa da alva, chamando-me para os braços da aurora, reclamando o furor da gente da terra até tudo se desfazer no falsete da alegria que é prova de vida da aldeia e vingança do tempo sobre o dia de ontem.

Algumas raparigas apressavam-se e, ainda antes da missa, já se confessavam das noites mal dormidas. Logo depois, mal refeitas da penitência e das juras de não repetir pecados confessados, mas agradecidas pela absolvição dada a todo o bem que lhes soubera, langorosas piscavam os olhos ao dia claro, aos namorados, aos amantes, ao desejo. Para que a vida se repetisse e dela sobrasse sinal de vida. Desta corrida dos dias, destas alvas estremunhadas, muitas memórias são esbatidas fotografias antigas, adivinhações, o que não se fala e o que se cala, o que se desmancha, o que é sem ser, o que foi confessado e absolvido para não mais ser visto nem achado e até o que foi morto e enterrado como uma pena ou um anjo antes de ser a alma. Se nos distraíssemos, ecoava na nave desses dias passados o sermão que contava a história inteira na voz do padre a encenar cobrança do perdão.

Fui mais poupado aos sermões da aldeia que aos sermões da televisão de hoje. Ainda ontem nem sabia que existiam e hoje há claustros de igreja que são notícia e alerta geral ao que dizem pelo que dizem sobre o aborto. E nem uma palavra sobre a absolvição, a misericórdia divina ou a misericórdia do estado!

Hoje levantei-me para mudar de país ou foi sempre assim?

[o aveiro; 11/01/2007]

a história

para eu não me preocupar com o que a história vai dizer sobre os nossos tempos,
sussuraram-me que
a história vai ser escrita sobre o que for publicado nos jornais
e que cada jornalista escreve sempre a quatro mãos
e piscaram-me o olho enquanto me perguntavam se eu sabia
de quem eram as outras mãos do jornalista

e eu não sabia

a coisa estranha

Não dei pela passagem dos dias. Amanhã, que é quarta feira, recomeçam as aulas e eu estive bem desperto para isso. Para todos os efeitos da escola, hoje foi claramente a terça feira. Para tudo o resto não foi terça feira. Só me resta pedir desculpa a quem esperava que fosse terça feira para mim. Nem sempre sei os ordinais dos dias que passam. Que coisa estranha esta! Há muitas maneiras de nos perdermos.

para começar, a bátega

durante o dia, copiei laboriosamente os poemas que o josé carlos soares reuniu e publicou sob o título Bátega. Para publicar na escrivaninha

de um ano... para o outro

um instante e nada mais



uma brisa a fazer soar os sinos de sincelo
e uma fogueira longínqua nos campos
que aquece o restolho em descanso
até ser a podre cama do pão e da vida:

como fermento ou larva de nervos
assim soamos hoje como o estalar de dedos
ou a senha que nos leva para o futuro dos outros.

de soslaio

diz-se que,
de longa data, são os amigos que
partiram para nunca mais os veres

diz-se que,
ainda antes de os veres, são amigos os que
te sulcaram até teres dado por eles

diz-se que,
o tempo todo, são amigos os que
ficaram parados onde tu sabes sem saberes

diz-se que,
até amanhã, são amigos os que
estão emboscados no cheiro do teu medo de os perderes.

as duas pastas

Trago sempre duas pastas dentífricas dentro da pasta onde guardo também alguma roupa interior e lenços de assoar. Nunca me foram úteis a...