estreita a passagem

estreita a passagem entre penhascos um rio

deixa que me lembre em contraluz os teus dedos
apontando mais adiante uma agitação um desvario
o silêncio das ausências que há em todos os segredos

deixa que me lembre de algum sermão que seja rouco
na tua voz ditado para a nave nua onde ninguém pára a ouvir
como não se ouve um murmúrio que ainda está para vir
ou o sussurro de quem perdeu os dons e ficou mudo e louco

por um ai tu te esgueiras para não seres mais que lenda
aquela que até da vida se escapa por um fio
uma mão não mais que uma mão de través uma fenda

estreita a passagem entre penhascos um rio

um dia depois e...

Um dia depois e não somos quem éramos
que importa termos sido tão intensamente

se ontem ou hoje ou amanhã o nosso lugar
é uma onda de vento que quase não se sente.

Se fizemos do nosso corpo uma embalagem
e nela cabem as fotografias que fomos rasgando

o corpo pode ficar ou levar-se a si em viagem
que quem não souber onde somos saberá quando.

uma noite,...

Uma noite, ao dobrar uma esquina do corredor da casa, vi o gato de botas na mão a sair do quarto da minha namorada. Por momentos, ele olhou-me e pareceu-me que se ria enquanto me desafiava, levando a mão direita a uma espécie de florete que lhe pendia do cinto largo. Não pensei duas vezes e foi o meu pontapé certeiro que o levou dali para fora pela janela aberta. Muito depois, já eu me deitara quando dei por mim a descansar a consciência com o que se ouve sobre as sete vidas dos gatos.
Pela manhã acordei de um sono pesado com um grito horrível.
Antes de me levantar já tinha percebido que o rabo de fora da minha namorada já tinha gasto as sete vidas antes de voar pela janela da noite passada.

mais os mesmos

Todos sabemos que a maior parte dos programas de ensino são nacionais. Todos sabemos que os professores têm todos a mesma formação superior, mais coisa menos coisa. Todos sabemos que as escolas fazem planificações do trabalho lectivo de modos muito semelhantes. Todos sabemos que os professores ensinam as mesmas coisas e que os alunos que aprendem alguma coisa aprendem a mesma coisa. Todos sabemos que os jovens portugueses são, na generalidade, muito parecidos, com acesso a produtos culturais massificados e transmitidos pelas centrais mundiais que uniformizam gostos, atitudes e valores. Todos sabemos que as formas de vida da generalidade das famílias são parecidas no que toca ao tempo disponível para os filhos. Todos sabemos quais são os hábitos gerais de leitura juvenil e sabemos os números a esse respeito recentemente publicados. Todos sabemos que as notícias garantem que o país está a equilibrar as finanças públicas e que o défice está controlado. Todos sabemos que não sabemos o que isso quer dizer a não ser que os nossos consumos se reduzem por medo e por pouco tempo. Todos sabemos que a taxa do desemprego não parou de subir, mesmo quando nos dizem que desceu. Todos sabemos que não sabemos como é que as famílias tocadas pelo desemprego de longa duração sobrevivem e todos sabemos qual é o cheiro da pobreza. Todos sabemos que os jovens dormem pouco e chegam estafados à escola diurna para confirmarem que não rendem. E todos sabemos que quem frequenta a escola nocturna lá chega estafado pelo trabalho que não rende e é natural que a escola não renda. Todos sabemos que, no nosso mundo, para a escola vai quem não trabalha e para o trabalho vai quem não estuda. Todos sabemos que fazemos parte da europa e que dela pinga a ajuda que nós precisamos mesmo quando não sabemos de que ajuda precisamos. Todos sabemos, porque nos disseram, que nós precisamos de estar actualizados e que a nossa capacidade de competir vem de termos tecnologia, mesmo que a não saibamos usar de forma inteligente e a favor da nossa humanidade. Todos sabemos que é muito importante sermos presidência europeia e termos conseguido o tratado porreiro mesmo sem sabermos ler nem escrever o que quer que seja sobre o tratado. Todos sabemos que não sabemos o que fazer de nós mesmos para não sermos mais os mesmos e sermos... os outros portugueses que prometemos aprender a ser.

[o aveiro, 25/10/2007]

as duas pastas

Trago sempre duas pastas dentífricas dentro da pasta onde guardo também alguma roupa interior e lenços de assoar. Nunca me foram úteis a...