entre caminhos, a casa




a luz mais intensa do candeeiro de rua esconde um banco
quebra na face de cal da casa e o avô sentado na noite fresca
e o jornal aberto na necrologia e o espanto da própria morte

desenho, logo existe



diário

ao longe, a torre. não ouço, mas podia ouvir. se não fosse surdo, ouviria o sino da torre. não o vejo, mas sei que aquela torre não engana e alberga um ou mais sinos. não o vejo, nem o ouço, mas sei que aquela é uma torre sineira. e isso é tudo o que preciso de saber. o resto é consequência. a existência, a prova de vida, o passeio do cego, o passeio do surdo, o passeio da rua. em tempos, vi a minha rua pela primavera, pelo verão, pelo outono e pelo inverno. conheço a minha rua de olhos fechados, como a palma da minha mão. gosto muito da minha rua. já posso gostar sem sentido. sem sentidos.

oriente, algures



diário

amanhece! escrevo todos os dias, enquanto calço as meias e aproveito a vénia a que me obrigo para calçar as meias, para a minha oração diária. já roguei pragas contra as dores nas costas ou o desequilíbrio matinal como quem reza. já rezei. amanhece! reze ou não reze.

diário

Uns dias melhor, outros pior. ao contrário de outros que as vendem, a minha mãe dava ordens. sempre a admirei por isso. e o que era melhor é que dava ordens simples. se não executássemos o que ela mandava fazer não podia ser por não termos entendido as ordens. não tínhamos desculpa. ultimamente tenho andado a pensar que não sei dar ordens. desisto? ou penso melhor no que seja uma ordem antes de a dar. ou pago para aprender a dar ordens. ou faço um esforço para me lembrar da técnica de comunicação da minha mãe para dar ordens com vista a acções particulares. ou passo a vender ou distribuir ordens como fazem os reis das monarquias e os presidentes das repúblicas, sem esperar que possam ser compreendidas já que a acção requerida está só em receber pondo o peito a jeito.

o diário

quando te sentes velho, podes caminhar pelas ruas como caminhas pelos corredores da tua casa. e podes rir-te do que foste como se te risses de qualquer outro dos que em vão conheceste. ou desconheceste, afinal. nada do que possas ter feito é para ti entusiasmante, porque o que está feito está feito e não tem futuro. o teu futuro pode ser ou ter uma forma perturbadora porque sabes que te foste transformando noutro esse outro que tu já não controlas. por isso, lutas contigo mesmo à medida que vais desaparecendo da tua vista. a voz que de ti ouves já não é a mesma e tens vergonha de ter convencido alguém com essa voz pedagógica de trazer por casa, sendo que em casa todos sabem que nenhuma pedagogia há feita das tuas qualidades, antes tudo ficou feito pelas tuas escolhas. quando te sentes velho, não tens outro desejo para além dessa vontade de desaparecer ou mudar de pele. é por isso que entre as tuas escolhas importantes, está a transformação nos gestos: cada vez menos cuidadosos e cada vez mais cuidados. à tua volta giras como se cuidasses de ti em vigília permanente em busca de sinais que ainda não podes ver mas estão lá em algum lugar onde poisas as coisas, as pequenas coisas que escondes ou mostras para esconder as outras pequenas coisas. os sinais estão nas ocultações para ti mesmo que é a forma como queres desaparecer. não tarda estás a fazer um testamento de nadas, talvez da forma de morte e de não funeral que escolhes sem o dizeres aos outros. na forma como desvendas o tédio que a tua vida foi: tanta alegria para nada, tanta alegria sendo tudo e nada, cada escolha como separação do que te foi estranho depois de o teres sido. quando te sentes velho, podes imaginar que podias ter sido outro nas escolhas e podias afinal ter encontrado maior sossego em alguma comunidade estranha mas acolhedora de alguma forma acolhedora que só precisava que não a negasses. mas tu aprendeste a negar sorrindo e quase fizeste isso de forma perfeita, mais recentemente fazendo isso nos momentos certos, sem ser desagradável para os outros, sem seres qualquer acontecimento fora de ti desculpado por te sentires velho. às vezes, pensas mesmo que escolher o momento favorável a certas mudanças fez de ti uma forma de vida adaptada a fazer as grandes mudanças como se de pequenas mudanças se tratasse, como se te fosses desvanecendo sem sobressaltos para ti e para os outros, como se preparasses algum esquecimento de ti. quando te sentes velho, dói-te o joelho e só isso te importa afinal embora não o digas. cada dia te afastas um pouco da vida, esqueces um pouco uma parte da memória e crias uma lembrança do que não existe em ti e nunca existiu. pensas como a tua mãe que o que interessa é a imaginação da vida que não foste, uma vida imaginada, construída fora da realidade das coisas que viveste, uma forma de sorrir sem culpa, uma bengalada que nunca existiu.

o diário

hoje caí na asneira de olhar para o lado. ao meu lado, ia uma senhora com uma bengala que golpeava o ar compassadamente. o ar que nos rodeava bem tentava desviar-se das bengaladas. sem conseguir. o ar atrapalhado do ar deu-me vontade de rir e quando uma gargalhada se preparava para sair a bengalada no ar atingiu-me a gargalhada que saltitava à minha frente. assustado, perdi a vontade de rir. comecei a procurar a vontade de rir pelo chão. quando a vi, baixei-me para a apanhar. e apanhei com uma bengalada mesmo em cheio na mão que acabava de pegar a vontade de rir. o ar que até aí andava a fintar as bengaladas pôs-se de cócoras para ver melhor o meu ar. senti uma lufada de ar, uma gargalhada de ar. com pena vi que tinha perdido toda a vontade de rir e toda a vontade de a procurar. o pior é que não estranhei a falta de vontade. à minha volta, o ar andava às voltas tentando ter graça. eu não lhe achei graça nenhuma. para além do riso, deixei de achar graça. se calhar nunca mais vou achar.

bater do coração

entram na sala e a sala enche-se deles de sons de palavras soltas umas pelas outras palavra puxa palavra pairam palavras por toda a sala de palavras. só uns momentos... até que dêem pela falta das minhas palavras e os olhares comecem a substituir as palavras que se vão sumindo sem que outras tomem o seu lugar. até à sala vazia de sons até que o silêncio seja cal: e eles ouçam o bater compassado do meu coração: e eu possa enfim abrir os olhos para falar.

de certo modo, velho em santiago

o homem cumprimenta-me na rua como se casualmente
me reconhecesse a cara de cabisbaixo cheio de mágoa
hesita por momentos e acaba por falar em ira calmamente
sobre o caso da vizinha idosa a quem cortaram a água

o homem fala como se desdobrasse uma ruga da fala
e pergunta como tornámos as pessoas abertas em fechadas
cada uma como um apartamento de si presa ao sofá da sala
lábios secos presos a torneiras de dor secas e caladas

e pergunta repetidamente quem secou as fontes as nascentes
dos caminhos e dos bairros onde só bebe dos contadores
quem tem moedas para metros cúbicos de banhos quentes
a cantar nas canalizações lá fora por alheios corredores

e pergunta se não posso pedir uma fonte para santiago
que a fonte dos amores não é longe mas feita monumento
às portas da cidade sem água à vista diabo que carago
de cidade onde ainda lavar-se a sede pode ser tormento

eu não sei que diga mas vou adiantando que a junta pode
resolver o problema pode lá ser que possa não saber
da freguesa sem pão e água com essa é que me fode
diz o homem enquanto retoma o caminho sem me ver

desagradável

não sou nem quero ser perfeito ou cópia de modelo
com medidas ou virtudes escolhidas por alguém que pense ser
modelo perfeito, belo e virtuoso

sou velho demais para seguir caminhos direitos
sou cabeçudo demais para corredores estreitos
e sou gasto demais para não ser intratável e rugoso
e feio à vista e ao ouvido e ao tacto e ao paladar

sou velho demais para saber que sou eterno
não aqui não no céu e não no inferno
mas só porque não sou biodegradável
ou por ser, para tudo e todos, bem desagradável

sou velho demais para saber que um dia de vida
pode ser uma eternidade bem viva
e o eterno pode ser um só instante à deriva
uma partícula de tempo em tempos perdida

amiúde vagueio sem virtude mas sem receio
também sem conta e sem medida
como a vida
ou como a morte ou a falta dela




foi tudo o que ele disse olhando-me como se fosse eu na outra margem

onde nos sentamos a ver o mar

para sentirmos o céu imenso deitamo-nos de olhos abertos
vasculhando a terra
para saborearmos a pequenez da terra fincamos os pés no chão
abrindo os olhos à poeira luminosa do céu

para vermos quem amamos fechamos os olhos
e as mágicas pontas dos dedos
a medo
se abrem em corolas das mãos
e se

por momentos
o universo inteiro
sossega nas conchas das nossas mãos

por momentos
pulsa uma vida inteira

Faz bem à Madeira, ...

... não a mim que me habituei a viver sem guelras. Asfixio, pois.
Mas não é como estão pensar. Nem porquê.


... É só humidade excessiva. O que mais poderia ser?

a quanto?

valemos quanto? quanto valemos.
a quanto se vendem quantos? uns quantos se vendem a quanto.
um vale quanto? quanto vale um.
quanto vale cada um? em média, a média.

insulto seguido de provocação

Quem sabe, faz. Quem não sabe, ensina.
                                                                        Bernard Shaw
Que não sabe ensinar, forma os professores. Quem não sabe formar professores, faz investigação educacional.
                                                                         acrescentado por António Nóvoa
citado de António Nóvoa. Professores - Imagens do futuro presente.Educa. Lisboa:2009.

o instante da eternidade

Que farás tu se eu arranhar a tua porta?
- Estou pronto. Podes entrar. Vens ficar comigo? Vens buscar-me?
E se eu te der uma chave para a vida eterna?
- Posso usá-la mais tarde?
Porque não aproveitas logo?
- Não queres gozar comigo a inquietação da vida instantânea?
Posso?
- Comigo podes sempre contar ...

uma manhã

rezo as matinas.

a quem levanto a voz? é a pergunta breve
que me ocorre tão sussurrada como o são as matinas
no seu silêncio vazio que as faz tão leves

até, sem ganhar asas, voarem livres de peso
atraídas por um farrapo de azul

ou por uma mão cheia de nada, a eterna
realidade que, sem o ser, persiste
sem ser alegre e sem ser triste

novo ano de lições

nestas horas matinais, a aragem fresca fala
a quem quer ouvir a fala da aragem
e, mesmo sabendo da iminente viagem,
sai para o futuro sem antes arrumar a mala

féretro

quando as portas de Agramonte se abrem para a paisagem,
última e cega dos que, ao nosso lado, fizeram a sua viagem
guiando passos incertos dos incertos caminheiros que somos

abrem-se também para um abismo onde somos o que já fomos
de par em par por um ventinho bom, uma memória da passagem


até lá, ao fundo do imaginário mira douro

... quase, quase a acordar

Descansei em ti o meu olhar, como só uma ave cansada de voar pode olhar. Digo-te adeus hoje e sei que não posso deixar de te dizer amanhã adeus de novo. De asas cansadas, poisarei no teu beiral, só por um instante te olharei, alisando maquinalmente as minhas penas sem ânsias de voar, mas certo de partir. Parto para longe, onde não possas ouvir-me gritar, depois da volta larga em frente da tua janela. Parto sem partir definitivamente. Digo-te um adeus sumido. Porque não sei mais que dizer ou fazer e os meus gestos têm a economia própria de quem voa. Quem voa assim tão desajeitadamente? ouço o espanto de uma ave verdadeira, enquanto eu caio a pique ... quase, quase a acordar.