Volto sempre a este lugar
à casa habitada pelos fantasmas
que vivem como amigos comigo
e para mim cantam em falsete
sonetos de amor e esperança
humana frágil e ridícula
como voz que mastiga as neblinas
o próprio bocejo dos fantasmas.
Por saber que me usam e deitam
fora como um lenço roto
para o cesto da roupa suja
enquanto alguma vida ainda resta
guardo fiapos de vozes das aves
no sem-fim da tardinha deste lugar.
e se puderes(...)
1.
e se puderes esconde-te numa aldeia onde
ninguém te encontre e em teu nome
manda uma carta de chamada
para onde andas perdido
lembra-te de mandar garantias
um contrato de trabalho sei lá
um grão de terra lavrada ou
uma gota de água das chuvas
e uma acha de cheiros que se desfaça em fumo
2.
para que passes na fronteira onde
os serviços de imigração farão de tudo
até que aceites voltar atrás aonde te perdes
se puderes manda a fotografia da parede
em que estás pintado como uma sombra de ti
3.
ainda melhor será se puderes esconder-te de ti
até que ninguém se lembre do teu nome
e até mesmo tu não saibas virar a cabeça
quando alguém pensar ter-te visto
por engano só pode ser engano
a fronteira é tão longe de tudo
como podias tu ter ido parar tão longe de ti
a limpar as mãos a um avental de ferreiro
cego credo pode lá ser!
e se puderes esconde-te numa aldeia onde
ninguém te encontre e em teu nome
manda uma carta de chamada
para onde andas perdido
lembra-te de mandar garantias
um contrato de trabalho sei lá
um grão de terra lavrada ou
uma gota de água das chuvas
e uma acha de cheiros que se desfaça em fumo
2.
para que passes na fronteira onde
os serviços de imigração farão de tudo
até que aceites voltar atrás aonde te perdes
se puderes manda a fotografia da parede
em que estás pintado como uma sombra de ti
3.
ainda melhor será se puderes esconder-te de ti
até que ninguém se lembre do teu nome
e até mesmo tu não saibas virar a cabeça
quando alguém pensar ter-te visto
por engano só pode ser engano
a fronteira é tão longe de tudo
como podias tu ter ido parar tão longe de ti
a limpar as mãos a um avental de ferreiro
cego credo pode lá ser!
a escola não é tudo
O filme dos acontecimentos de uma aula na Escola Carolina Michaelis do Porto voltou a chamar a atenção para o que se pode passar no interior das escolas, para o que pode passar-se dentro de quaisquer portas onde há papéis e apostas de domínio.
O filme mostra-nos uma jovem descontrolada a tentar recuperar um aparelho de uso comum usado como perturbação numa sessão de trabalho marcada num certo horário. O filme mostra-nos uma pequena turba de jovens a transformar a aula perturbada num espectáculo a ser mostrado. Há um telemóvel a perturbar uma jovem e uma aula para que um outro telemóvel, projéctil lançado por um delinquente, perturbe a sociedade inteira. É um espectáculo de pessoas-coisas tão degradante como muitos outros, como todos aqueles que foram transformando vidinhas rascas em espectáculos rascas para grandes audiências rascas. Todos os dias, as televisões dizem, pelo exemplo, aos jovens daquele pobre espectáculo, que há pessoas que perecem se não aparecem nas margens da ribalta para onde dão os esgotos de um submundo de sordidez .
Para que o filme aconteça, é preciso que um professor (ou um pai, ou uma mãe) se perca no território da sala de aula e lhe sejam vedadas as portas por onde entraria a instituição da escola inteira.
O espectáculo que se segue é o filme do que não se pode ver e é mostrado a todas as horas em todos os canais, fingindo agora que os personagens não têm cara e que o novo espectáculo é discutir formas de não repetir um espectáculo destes.
Todos sabemos que estamos perante um distúrbio excepcional, mas que distúrbios destes se repetem e provavelmente cada vez com mais frequência na sociedade, em geral, e na escola, em particular. De tal modo assim é que o Procurador Geral da República entendeu por bem inscrever nos seus planos de hoje como uma das suas preocupações com vista ao futuro. Queiramos ou não, estes jovens que não reconhecem as diversas instâncias de autoridade, a começar pelos adultos - pais e professores - que lhes são próximos, ameaçam o futuro com o seu presente de perdedores tão mais radicais quanto é certo que gritam vitória a cada exposição pública dos seus distúrbios rascas.
E é preciso ter consciência que há um problema de papéis. As escolas e os professores podem cuidar de dirigir o ensino e a aprendizagem para o bem colectivo e enquadrar parte das acções e incidentes até um certo nível de estranheza. E devem reconhecer os casos para os quais são incompetentes para os acompanhar até à porta de outros sistemas sociais: de apoio, se o problema é de pobreza; penal, se o problema é delinquência; de saúde, se o problema é doença (mental, também!), etc.
A escola não é tudo. Isso não é um problema. Reconhecer isso é uma parte da solução dos problemas da escola.
[o aveiro; 27/03/2008]
O filme mostra-nos uma jovem descontrolada a tentar recuperar um aparelho de uso comum usado como perturbação numa sessão de trabalho marcada num certo horário. O filme mostra-nos uma pequena turba de jovens a transformar a aula perturbada num espectáculo a ser mostrado. Há um telemóvel a perturbar uma jovem e uma aula para que um outro telemóvel, projéctil lançado por um delinquente, perturbe a sociedade inteira. É um espectáculo de pessoas-coisas tão degradante como muitos outros, como todos aqueles que foram transformando vidinhas rascas em espectáculos rascas para grandes audiências rascas. Todos os dias, as televisões dizem, pelo exemplo, aos jovens daquele pobre espectáculo, que há pessoas que perecem se não aparecem nas margens da ribalta para onde dão os esgotos de um submundo de sordidez .
Para que o filme aconteça, é preciso que um professor (ou um pai, ou uma mãe) se perca no território da sala de aula e lhe sejam vedadas as portas por onde entraria a instituição da escola inteira.
O espectáculo que se segue é o filme do que não se pode ver e é mostrado a todas as horas em todos os canais, fingindo agora que os personagens não têm cara e que o novo espectáculo é discutir formas de não repetir um espectáculo destes.
Todos sabemos que estamos perante um distúrbio excepcional, mas que distúrbios destes se repetem e provavelmente cada vez com mais frequência na sociedade, em geral, e na escola, em particular. De tal modo assim é que o Procurador Geral da República entendeu por bem inscrever nos seus planos de hoje como uma das suas preocupações com vista ao futuro. Queiramos ou não, estes jovens que não reconhecem as diversas instâncias de autoridade, a começar pelos adultos - pais e professores - que lhes são próximos, ameaçam o futuro com o seu presente de perdedores tão mais radicais quanto é certo que gritam vitória a cada exposição pública dos seus distúrbios rascas.
E é preciso ter consciência que há um problema de papéis. As escolas e os professores podem cuidar de dirigir o ensino e a aprendizagem para o bem colectivo e enquadrar parte das acções e incidentes até um certo nível de estranheza. E devem reconhecer os casos para os quais são incompetentes para os acompanhar até à porta de outros sistemas sociais: de apoio, se o problema é de pobreza; penal, se o problema é delinquência; de saúde, se o problema é doença (mental, também!), etc.
A escola não é tudo. Isso não é um problema. Reconhecer isso é uma parte da solução dos problemas da escola.
[o aveiro; 27/03/2008]
atractor
Muitos aspectos da actividade lectiva de hoje podem ser melhorados pelo recurso a computadores e telecomunicações. Se é certo que cada vez há mais computadores pessoais nas escolas, resta determinar que indicações se podem dar aos jovens para os usar com vantagem e resolver a questão de saber que recursos podem ser utilizados pelos professores das escolas com pequenos orçamentos. Isso só pode levar os professores a estudar para abordagens mais potentes e a procurar “software” livre de encargos.
Para o ensino de Matemática, há ferramentas gratuitas para apoiar todos e cada um dos temas de ensino, a partir dos quais podemos preparar actividades que não só permitem introduzir os conceitos e técnicas, como permitem que os jovens aprendam a utilizar computadores com vantagem para as suas necessidades de estudantes. Se é claro que os computadores não podem substituir o estudo e o trabalho necessários, de papel e lápis, o seu uso pode multiplicar as experiências matemáticas significativas dos jovens, criando novas oportunidades para conjecturar com segurança e, pelo recurso à mesma escrita (de papel e lápis) obter um imenso manancial de experiências que o cálculo automático pode propiciar. Usado de forma inteligente, o computador permite ao estudante confirmar com uma grande variedade de exemplos a matemática que lhe é dada e pedida em novas aplicações. Muitas das aprendizagens antes feitas por imitação e mergulhadas em subentendidos, são agora ampliadas por exigências de compreensão real e crítica, já que a tecnologia exige sempre a explicitação de cada relação e uma escrita sem ambiguidades.
A comunidade académica e científica tem produzido uma multiplicidade de modelos informáticos muito dinâmicos para divulgar e tornar acessíveis muitos temas que até agora eram de difícil aproximação Os estudantes podem manipular parâmetros ou posições de elementos de figuras que esclarecem rapidamente resultados, confirmando ou infirmando informações que se transmitem.
De resto, prontos a usar podemos encontrar muitos materiais que podem suportar actividades complexas em ambiente de sala de aula ou em plataformas a que os estudantes podem aceder a partir dos computadores pessoais. Entre todas as realizações, destacamos o Atractor, da Associação Atractor dirigida por Manuel Arala Chaves, e em que participam, como associadas, departamentos, faculdades ou universidades, a Associação de Professores de Matemática e a Sociedade Portuguesa de Matemática. O trabalho realizado está patente em módulos expostos no Pavilhão do Conhecimento Ciência Viva e outros locais, que podem ser revisitados no “site” do projecto.
Qualquer discussão sobre o uso de computadores no ensino ou sobre o recurso a experimentação para ampliar a compreensão de conceitos matemáticos tem de passar pela referência portuguesa que o Atractor é. Não é legítimo esperar que as escolas possam (ou sequer devam) construir materiais do nível dos produzidos para os grandes espaços, mas é legítimo esperar que os professores nas escolas reconheçam nessas exposições a possibilidade de enriquecimento do ensino e das aprendizagens. Do mesmo modo, é óbvio que ninguém espera que os professores produzam módulos, com recurso a ferramentas computacionais, ao nível dos que são produzidos e disponiblizados na rede pela Associação Atractor.
Sabemos que, para serem utilizados em sala de aula ou como materiais de apoio, os materiais produzidos pelo Atractor precisam de ser estudados e trabalhados pelos professores do ensino não superior e precisam de ser objecto de escolhas criteriosas, de modo a serem usados de forma adequada e não servirem, todos e cada um deles, como motivo para não abordar, por falta de tempo, os temas dos programas oficiais. À semelhança da gestão que tem de ser feita do programa e dos manuais adoptados pelas escolas, é preciso escolher e adaptar os materiais do Atractor. O Atractor funciona como uma ferramenta potente para o trabalho do professor, alerta para os assuntos e apoio no seu estudo, pode e deve ser aconselhado para os estudantes e público em geral, sendo certo que cada professor tem de escolher e tornar claro qual a utilização possível em sala de aula para a generalidade dos estudantes.
A Associação Atractor é um projecto generoso. Muitos materiais podem ser descarregados facilmente para os computadores dos professores e podem ser incorporados em módulos definidos e decididos por cada professor de forma adaptada às suas aulas e ao trabalhos dos estudantes de cada turma.
É tão necessário apoiar o desenvolvimento do Atractor, como apoiar os professores no trabalho de adaptação que é preciso fazer para dar aulas com o Atractor.
[a página de educação; Abril 2008]
Para o ensino de Matemática, há ferramentas gratuitas para apoiar todos e cada um dos temas de ensino, a partir dos quais podemos preparar actividades que não só permitem introduzir os conceitos e técnicas, como permitem que os jovens aprendam a utilizar computadores com vantagem para as suas necessidades de estudantes. Se é claro que os computadores não podem substituir o estudo e o trabalho necessários, de papel e lápis, o seu uso pode multiplicar as experiências matemáticas significativas dos jovens, criando novas oportunidades para conjecturar com segurança e, pelo recurso à mesma escrita (de papel e lápis) obter um imenso manancial de experiências que o cálculo automático pode propiciar. Usado de forma inteligente, o computador permite ao estudante confirmar com uma grande variedade de exemplos a matemática que lhe é dada e pedida em novas aplicações. Muitas das aprendizagens antes feitas por imitação e mergulhadas em subentendidos, são agora ampliadas por exigências de compreensão real e crítica, já que a tecnologia exige sempre a explicitação de cada relação e uma escrita sem ambiguidades.
A comunidade académica e científica tem produzido uma multiplicidade de modelos informáticos muito dinâmicos para divulgar e tornar acessíveis muitos temas que até agora eram de difícil aproximação Os estudantes podem manipular parâmetros ou posições de elementos de figuras que esclarecem rapidamente resultados, confirmando ou infirmando informações que se transmitem.
De resto, prontos a usar podemos encontrar muitos materiais que podem suportar actividades complexas em ambiente de sala de aula ou em plataformas a que os estudantes podem aceder a partir dos computadores pessoais. Entre todas as realizações, destacamos o Atractor, da Associação Atractor dirigida por Manuel Arala Chaves, e em que participam, como associadas, departamentos, faculdades ou universidades, a Associação de Professores de Matemática e a Sociedade Portuguesa de Matemática. O trabalho realizado está patente em módulos expostos no Pavilhão do Conhecimento Ciência Viva e outros locais, que podem ser revisitados no “site” do projecto.
Qualquer discussão sobre o uso de computadores no ensino ou sobre o recurso a experimentação para ampliar a compreensão de conceitos matemáticos tem de passar pela referência portuguesa que o Atractor é. Não é legítimo esperar que as escolas possam (ou sequer devam) construir materiais do nível dos produzidos para os grandes espaços, mas é legítimo esperar que os professores nas escolas reconheçam nessas exposições a possibilidade de enriquecimento do ensino e das aprendizagens. Do mesmo modo, é óbvio que ninguém espera que os professores produzam módulos, com recurso a ferramentas computacionais, ao nível dos que são produzidos e disponiblizados na rede pela Associação Atractor.
Sabemos que, para serem utilizados em sala de aula ou como materiais de apoio, os materiais produzidos pelo Atractor precisam de ser estudados e trabalhados pelos professores do ensino não superior e precisam de ser objecto de escolhas criteriosas, de modo a serem usados de forma adequada e não servirem, todos e cada um deles, como motivo para não abordar, por falta de tempo, os temas dos programas oficiais. À semelhança da gestão que tem de ser feita do programa e dos manuais adoptados pelas escolas, é preciso escolher e adaptar os materiais do Atractor. O Atractor funciona como uma ferramenta potente para o trabalho do professor, alerta para os assuntos e apoio no seu estudo, pode e deve ser aconselhado para os estudantes e público em geral, sendo certo que cada professor tem de escolher e tornar claro qual a utilização possível em sala de aula para a generalidade dos estudantes.
A Associação Atractor é um projecto generoso. Muitos materiais podem ser descarregados facilmente para os computadores dos professores e podem ser incorporados em módulos definidos e decididos por cada professor de forma adaptada às suas aulas e ao trabalhos dos estudantes de cada turma.
É tão necessário apoiar o desenvolvimento do Atractor, como apoiar os professores no trabalho de adaptação que é preciso fazer para dar aulas com o Atractor.
[a página de educação; Abril 2008]
a velha que dança
Há alturas em que parece impossível não termos assunto. E sobre os assuntos do dia, há mesmo quem espere que todos falem, mesmo que não saibam do que falam ou digam o mesmo que já foi dito. Ler e reler opiniões que não adiantam coisa alguma ao já dito, torna-se tão cansativo! O assunto do dia sai da ordem do dia para passar a ser da ordem do horrível Quando um dos nossos assuntos se torna assunto do dia e da moda, sobre o qual todos temos de falar, tornamo-nos mudos para a nossa vida. Mudos de espanto, diminuídos e tristes!
Perdidos do nosso assunto, e incapazes para qualquer outro assunto. Sem assunto, pois.
Tentando não ceder à avalanche das mensagens dos que cavalgam a onda dos professores e da educação(?) numa euforia sem limites, começamos a dar atenção às coisas e pessoas em que não reparamos habitualmente.
À minha frente, uma jovem de negro segue calmamente. Penso em acelerar, mas desisto porque a jovem de negro vai de um lado ao outro do passeio e eu não acerto com os melhores momentos para a ultrapassagem. Ou é ela que é imprevisível na sua forma de andar em frente? Pelo sim, pelo não, deixo-me ir atrás dela que não tenho pressa. Depois da passadeira, parece-me que ela se integra num grupo que já circulava por aquele passeio.
E eu continuo o meu caminho sem assunto. Até que olho para o telefone e relógio que começara a vibrar como um alarme a avisar-me para não me atrasar e a mandar-me acelerar para, sem pressas, chegar a tempo ao lugar do trabalho.
Ao alargar a passada, volto a olhar para as costas que seguem à minha frente. Para escolher a melhor abordagem ao passeio estreito, para a ultrapassagem perfeita. E vejo que a jovem de negro, de novo isolada no passeio, dança ao som de uma música só dela. Eu não ouço, mas é como se ouvisse o som da brisa que a faz oscilar como um junco, em pé e arrancado das suas raízes.
Contrariado, decido mesmo ultrapassá-la. Um pé no passeio, outro na estrada, faço uma magnífica manobra de ultrapassagem. Magnífica, mas ridícula. Ao ouvir a gargalhada, olho para trás. E vejo as linhas e rugas das mãos dançando na jovem de negro. E vejo os olhos brilhantes e alegres de um belo rosto, rasgado por rugas.
A velha que dança vai ficando para trás, feliz por ver-me pelas costas.
[o aveiro; 20/03/2008]
Perdidos do nosso assunto, e incapazes para qualquer outro assunto. Sem assunto, pois.
Tentando não ceder à avalanche das mensagens dos que cavalgam a onda dos professores e da educação(?) numa euforia sem limites, começamos a dar atenção às coisas e pessoas em que não reparamos habitualmente.
À minha frente, uma jovem de negro segue calmamente. Penso em acelerar, mas desisto porque a jovem de negro vai de um lado ao outro do passeio e eu não acerto com os melhores momentos para a ultrapassagem. Ou é ela que é imprevisível na sua forma de andar em frente? Pelo sim, pelo não, deixo-me ir atrás dela que não tenho pressa. Depois da passadeira, parece-me que ela se integra num grupo que já circulava por aquele passeio.
E eu continuo o meu caminho sem assunto. Até que olho para o telefone e relógio que começara a vibrar como um alarme a avisar-me para não me atrasar e a mandar-me acelerar para, sem pressas, chegar a tempo ao lugar do trabalho.
Ao alargar a passada, volto a olhar para as costas que seguem à minha frente. Para escolher a melhor abordagem ao passeio estreito, para a ultrapassagem perfeita. E vejo que a jovem de negro, de novo isolada no passeio, dança ao som de uma música só dela. Eu não ouço, mas é como se ouvisse o som da brisa que a faz oscilar como um junco, em pé e arrancado das suas raízes.
Contrariado, decido mesmo ultrapassá-la. Um pé no passeio, outro na estrada, faço uma magnífica manobra de ultrapassagem. Magnífica, mas ridícula. Ao ouvir a gargalhada, olho para trás. E vejo as linhas e rugas das mãos dançando na jovem de negro. E vejo os olhos brilhantes e alegres de um belo rosto, rasgado por rugas.
A velha que dança vai ficando para trás, feliz por ver-me pelas costas.
[o aveiro; 20/03/2008]
eu virei as costas
sem poder levantar-me, acordado, deixei que a manhã acordasse
a tomar um café da esquina como o de todos os outros dias
enquanto
um vento ligeiro ao lado de uma neblina parda ou uma aragem prenha
com as águas a rebentar foi arrefecendo e ganhando a forma
do tambor
que marca a marcha fúnebre e a despedida.
a tomar um café da esquina como o de todos os outros dias
enquanto
um vento ligeiro ao lado de uma neblina parda ou uma aragem prenha
com as águas a rebentar foi arrefecendo e ganhando a forma
do tambor
que marca a marcha fúnebre e a despedida.
a vida dos outros
Recebo todos os dias anúncios nas diversas caixas de correio. Cada anúncio contém uma oferta irrecusável disto ou daquilo, seguramente de alguma coisa que eu não pedi. Atafulho os meus caixotes de lixo com as ofertas. De vez em quando, dou-me ao cuidado de responder recusando as ofertas, na tentativa vã de ser riscado da lista, arriscando-me a perder os laços a quem me quer tanto bem.
Recentemente comecei a receber conselhos, recomendações morais e políticas, reprovações de opções passadas e indicações para opções futuras. Espantoso mesmo é que a maior parte das reprovações e recomendações morais vêm assinadas por um senhor de nome “anónimo” que me conhece e a quem eu não posso conhecer. Não sei quem seja, nem sei se é alguma empresa ou partido,... Algumas vezes, o senhor anónimo tem o cuidado de dizer que já concordou com as minhas opções, sem dizer quais, ou de dizer que nunca concordou mas que é preciso que eu me dê ao respeito e faça isto ou aquilo tal qual ele acha que é bom que seja feito. O senhor anónimo chega mesmo a chamar-me nomes mais feios que o meu nome próprio, levando-me a pensar que foi engano e o recado é para filho da família adoptiva do senhor anónimo.
Outras vezes, toma como referência para as suas tiradas a coerência de posições de algum partido (ou sindicato ou dirigente sindical) que é público nunca me ter servido de referência. O melhor disto tudo é quando o senhor anónimo me recomenda que eu tome cuidado com esta ou aquela posição, por ela ser contestada por muitos dos eleitores de um partido importante no qual eu nunca votaria. Porque será que o senhor anónimo acha que pode influenciar-me com o desgosto de eleitores com mau gosto militante?
Uma característica do senhor anónimo (deve ser só um, penso eu) é ser só orelhas. Cada vez me parece mais que o senhor anónimo não lê um só dos papéis que está a rejeitar quando me escreve. Provavelmente, o senhor anónimo nem sabe ler e decora tudo o que querem que ele transcreva para a letra de forma das suas recomendações.
Volta e meia, também recebo cartas de amor. Detesto ter de admitir que a maior parte das declarações de amor que recebo vêm infectadas com vírus que só não me prejudicam porque elas não me procuram a mim e procuram um sistema operativo que não é o meu. E agrada-me confessar que gosto de receber cartas de amor. Sejam elas quais forem, são as que eu recebo e eu não posso dar-me ao luxo de lhes resistir.
Do mesmo modo, gosto de receber cartas do senhor anónimo. Já não tenho pai nem mãe. Para além do senhor anónimo, quem mais me pode dar conselhos e puxões de orelhas? O senhor anónimo faz de mim a criança que eu nunca fui.
[o aveiro; 13/03/2008]
Recentemente comecei a receber conselhos, recomendações morais e políticas, reprovações de opções passadas e indicações para opções futuras. Espantoso mesmo é que a maior parte das reprovações e recomendações morais vêm assinadas por um senhor de nome “anónimo” que me conhece e a quem eu não posso conhecer. Não sei quem seja, nem sei se é alguma empresa ou partido,... Algumas vezes, o senhor anónimo tem o cuidado de dizer que já concordou com as minhas opções, sem dizer quais, ou de dizer que nunca concordou mas que é preciso que eu me dê ao respeito e faça isto ou aquilo tal qual ele acha que é bom que seja feito. O senhor anónimo chega mesmo a chamar-me nomes mais feios que o meu nome próprio, levando-me a pensar que foi engano e o recado é para filho da família adoptiva do senhor anónimo.
Outras vezes, toma como referência para as suas tiradas a coerência de posições de algum partido (ou sindicato ou dirigente sindical) que é público nunca me ter servido de referência. O melhor disto tudo é quando o senhor anónimo me recomenda que eu tome cuidado com esta ou aquela posição, por ela ser contestada por muitos dos eleitores de um partido importante no qual eu nunca votaria. Porque será que o senhor anónimo acha que pode influenciar-me com o desgosto de eleitores com mau gosto militante?
Uma característica do senhor anónimo (deve ser só um, penso eu) é ser só orelhas. Cada vez me parece mais que o senhor anónimo não lê um só dos papéis que está a rejeitar quando me escreve. Provavelmente, o senhor anónimo nem sabe ler e decora tudo o que querem que ele transcreva para a letra de forma das suas recomendações.
Volta e meia, também recebo cartas de amor. Detesto ter de admitir que a maior parte das declarações de amor que recebo vêm infectadas com vírus que só não me prejudicam porque elas não me procuram a mim e procuram um sistema operativo que não é o meu. E agrada-me confessar que gosto de receber cartas de amor. Sejam elas quais forem, são as que eu recebo e eu não posso dar-me ao luxo de lhes resistir.
Do mesmo modo, gosto de receber cartas do senhor anónimo. Já não tenho pai nem mãe. Para além do senhor anónimo, quem mais me pode dar conselhos e puxões de orelhas? O senhor anónimo faz de mim a criança que eu nunca fui.
[o aveiro; 13/03/2008]
semana da leitura
Na tarde de quinta, fui a S. João de Loure, aqui tão perto, ler Tonino Guerra.
Contente mesmo contente
estive muitas vezes durante a vida
mas nunca tanto como me senti na Alemanha
quando ao ser libertado
dei por mim a olhar uma borboleta
sem vontade de a comer.
E também falei para a rádio da Escola Básica Integrada. Um bom dia, pois!
o relatório do medo
Antigamente e agora (como o provam os concursos de televisão) a grande prova de sabedoria passava e passa por dar respostas a muitas perguntas que ou não têm qualquer sentido ou têm sentido em mundos muito reduzidos em tempo e em espaço. As respostas escolhidas como certas podem nem ser as certas para toda a gente que saiba procurar respostas certas e quem as dá pode nem saber do que está a falar. Valorizamos para efeitos de validação de conhecimentos as perguntas e as respectivas respostas certas sem cuidarmos de que alguém as compreenda. Deste modo, fazemos passar por conhecimento o resultado de treinos intensivos em memorizações de detalhes. É importante ter decorado grandes poemas ou canções para os recitar e cantar em família. Sem compreender o sentido do que decorava, treinei competências próprias que, até hoje, me têm ajudado a memorizar, quando quero, textos que compreendo. Mas sei que as incríveis orações decoradas não fazem prova de qualquer sabedoria ou inteligência a merecer louvor pelo seu conteúdo. Talvez mereça louvor a aplicação e a persistência postas nesse treino.
Sobrevive a ideia de que repetindo ensinamos e que quem (se) repete acaba por saber. É verdade que quem repete muitas vezes uma mesma coisa acaba por decorar, e pode lembrar-se dos nomes de certas famílias de rios, de personagens mais ou menos reais, de anos de batalhas, ... sem que isso signifique compreensão inteligente sobre o que decorou. Quando as coisas parecem muito mal, repetimos para nós mesmos que levar a decorar é melhor que nada. E é. De vez em quando, em desespero de causa, tendemos a querer uma escola de repetidores.
Ora, neste tempo em que as informações estão em toda a parte e disponíveis em suportes diversos, decorar não tem a mesma importância que tinha quando a transmissão oral de nomes e factos era a via privilegiada.
Basear todo o ensino na transmissão de conhecimentos e esta, na repetição do mesmo, até tudo ficar decorado, criou um sistema. A gestão deste sistema tarda em ser acusada de distribuir tarefas socialmente inúteis a muitas pessoas. Para além de inúteis, nocivas; já que tendem a reproduzir-se que é repetir-se de outra forma. O pior de um sistema de repetidores por obrigação de estado está na criação de um sistema de registos e relatórios inúteis sobre os maus resultados do trabalho inútil. Podemos mesmo estar a assistir à substituição, por relatórios palavrosos e inúteis, dos restos de trabalho útil. Há quem diga ainda que já nem sabemos escrever e que só fazemos cópias. Além de inúteis, os relatórios podem ser todos iguais: um só relatório, afinal.
[o aveiro; 6/03/2008]
Sobrevive a ideia de que repetindo ensinamos e que quem (se) repete acaba por saber. É verdade que quem repete muitas vezes uma mesma coisa acaba por decorar, e pode lembrar-se dos nomes de certas famílias de rios, de personagens mais ou menos reais, de anos de batalhas, ... sem que isso signifique compreensão inteligente sobre o que decorou. Quando as coisas parecem muito mal, repetimos para nós mesmos que levar a decorar é melhor que nada. E é. De vez em quando, em desespero de causa, tendemos a querer uma escola de repetidores.
Ora, neste tempo em que as informações estão em toda a parte e disponíveis em suportes diversos, decorar não tem a mesma importância que tinha quando a transmissão oral de nomes e factos era a via privilegiada.
Basear todo o ensino na transmissão de conhecimentos e esta, na repetição do mesmo, até tudo ficar decorado, criou um sistema. A gestão deste sistema tarda em ser acusada de distribuir tarefas socialmente inúteis a muitas pessoas. Para além de inúteis, nocivas; já que tendem a reproduzir-se que é repetir-se de outra forma. O pior de um sistema de repetidores por obrigação de estado está na criação de um sistema de registos e relatórios inúteis sobre os maus resultados do trabalho inútil. Podemos mesmo estar a assistir à substituição, por relatórios palavrosos e inúteis, dos restos de trabalho útil. Há quem diga ainda que já nem sabemos escrever e que só fazemos cópias. Além de inúteis, os relatórios podem ser todos iguais: um só relatório, afinal.
[o aveiro; 6/03/2008]
olhando mais para cima
ao sábado, quando voltamos ao lugar do dia antes damos por nós a olhar para o alto dos edifícios como olhamos para o alto das prisões onde um guarda vigia. o que nos move é ver se é possível escapar depois de lá entrarmos. e mesmo sabendo que não há guarda algum levantamos o olhar para ameias inexistentes onde sentinelas fumam às escondidas para nos esconder dos seus olhares.
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eu bem me disse que estava a ser parvo por pensar que só com os meus dentes chegavam para morder até o futuro e n...