(d)escrevo, logo existe; mas a que sabe?

Nunca sei quando devo ficar de rastos. Preciso de quem me ensine a arte de escolher os dias para ficar de rastos. Ou ando eu sempre de rastos e já nem dou por isso?

E tendo aprendido a desistir do que há de sagrado em mim,

- aquilo a chamo desejo volátil, santidade do corpo em si ou da vida vivida por si mesma no acerto ou concerto com as vidas dos outros -

todos os dias me resigno a ouvir os passos dos que se afastam, sem que me levante para os seguir.

Isto não interessa, eu sei. E apesar de saber que nada interessa, escrevo-o para que passe a existir o sem interesse

- porque afinal o sem interesse é a minha vida - única e irrepetível.

Estas frases afirmam e provam a existência. Não quero provar a unicidade. Provar, provar ... só a existência. E continuar sem saber, sem conhecer ... o sabor.

devastado

(...)
I will show you fear in a handful of dust.

Frisch whet der Wind
Der Heimat zu
Mein Irisch Kind,
Wo weilest du?


"You gave me hyacinths first a year ago;
'They call me the hyacints girl.'
- Yet when we came back, late, from the Hyacinth garden,
Your arms full, and your hair wet, I could not
Speak, and my eyes failed, I was neither
Living nor dead, and I knew nothing.
Looking into the heart of light, the silence.
Oed' und leer das Meer.

[T. S. Eliot; The waste Land]

o desejo volátil

Eu achava que queria ser poeta, mas no fundo queria ser poema.

[Vila-Matas; Batleby & Companhia]

estagnardia

Há dias em que espalhamos palavras sobre todas as coisas da nossa vida, como quem estende um pano sobre as nódoas da mesa. Para quem chega de novo, vindo de fora, o que vê é a toalha lavada. Mas para nós? Tentamos parar o movimento perpétuo por um instante melancólico. Mas nós sabemos que há o dia seguinte, que nada parou entretanto porque nada aconteceu a não ser sobrepor as palavras, uma ou outra mentira piedosa sobre nós mesmos para nós mesmos. É certo que deixamos que alguns grãos de poeira se colem à pele do lugar.

Acordo ainda mais cansado ao ter de reconhecer que tudo recomeça uma e outra vez na cabeça que é onde precisamos de travar e é onde não há travões... onde não há travões. Eu posso decidir que não dou mais um passo e deixar-me adormecer paralisado nesse instante mágico em que decido sobre o meu corpo. Mas a imaginação é o filme que passa contando-me tudo o que fui e tudo o que não serei por ser incapaz de ser o dia seguinte de mim.

.... em saco roto

se eu me levantar e pedir a palavra para dizer

Como Novalis disse ...

é porque não sou um saco roto

se acordar

se a manhã vier beijar-me
como só ela sabe
eu hei-de saber calar-me
no colo em que meu sonho cabe.



se acordar?
sonho acordado.

lutas de família

Num blog praxista , feminino, estão publicados textos contra a praxe. Um dos textos escolhidos foi escrito em 97 pelo meu filho mais novo que é também o meu filho mais velho. A este respeito, vale a pena ler um filho afirmar-se, no seu Diário de Bordo , orgulhoso em estar ao lado do Pacheco Pereira, do mesmo lado da barricada.
Nos idos de 70 do século passado, contra a queima e contra a guerra, ao lado de Pacheco Pereira militavam os pais do meu filho.

tisana 17

Nos anos em volta de 1970, lia muita poesia e comprava alguma com o pouco dinheiro que ia tendo (e era muito, pelo menos para a poesia que ninguém que eu conhecesse comprava). Hei-de revisitar uma a uma as mulheres que lia - agora que me lembro, as mulheres da poesia desses anos, deixaram-me mais marcas que os homens. Um dos livros que copiei laboriosamente ainda antes de o comprar era o "39 tisanas" da Ana Hatherly. Quando o procurei há uns dias e o não encontrei como fiel do armazém da memória impressa, decidi comprar as "351 tisanas" para conversar à porta de casa com o porco Rosalina ou com a chave que abria a porta aberta.


Era uma vez uma chave que vivia no bolso de um homem. Durante muito tempo desempenhou com honestidade o seu trabalho de abrir portas. Até que um dia descobriu que todo o seu trabalho tinha consistido sempre em abrir portas que já estavam abertas. Quando descobriu isso lançou-se corajosamente para fora do bolso. Caíu no chão. Ficou ali. Passa uma criança vê a chave e diz que coisa tão engraçada para fazer um carrinho.

cello






Ouço o que quero ouvir.

Porque somos felizes?

Em verdade, devia contar-vos o dia de hoje como um dia infeliz. De facto, assim parece. Como professor de matemática, decidi fazer uma viagem lenta com os estudantes que trabalham comigo. Para que as coisas parecessem claras ainda antes de partirmos, escrevi como sumário qualquer coisa como: tentativa de construção de uma nova operação ou conceito... pensando. Deixei que eles tomassem os lugares do espírito e tentei ganhá-los para a viagem que eu queria fazer. A ideia parecia-me simples: depois de lhes ter posto uns dias antes um problema complicado, ia agora colocar tudo o que sabíamos sobre o tampo das nossas mesas de cabeceira e procurar de toda a tralha que carregámos, uma ferramenta que fosse interessante e funcionasse a unir os pedaços do tal problema do dia antes. Fomos andando aos solavancos. Não perdemos tudo, algumas peças se foram montando, mas os estudantes não perceberam o essencial. E o pior é que alguns dos que se aproximaram para me perguntar pelo verdadeiro intento, acabaram dizendo que mais me valera ter dado a definição simplesmente.

Na minha vida de professor, isto acontece. Porque eu explico mal. Ou, mais frequentemente, porque os estudantes não querem saber como é que as coisas se fazem, como é que elas aparecem ou como é que escolhemos uma possibilidade entre várias. Também não querem muitas vezes saber porque é que a escolha convencional funciona. Basta-lhes que funcione para os efeitos que o professor desejar.
Em cada falhanço destas tentativas pedagógicas, apetece desistir. Mas nunca desisto, porque é possível que numa destas tentativas um estudante dê um salto para lado do processo do pensamento científico.

Os políticos todos pensam que o povo não quer saber dos processos, nem está apto a percebê-los. Pensam que o povo quer saber do que funciona ou não. Os políticos dizem ao povo o que pensam que ele quer ouvir, ainda que seja mentira. Desistiram tão radicalmente da verdade que dizem ao povo que os impostos vão descer (ainda que seja mentira) e enervam-se se os investidores e decisores europeus ouvirem o que foi dito ao povo em vez de lerem só a verdade que está escrita nos papéis onde a verdade se esconde da compreensão do povo.

De cada vez que há eleições, quase chegamos a pensar que estes políticos têm razão. De cada vez que falhamos com os estudantes, quase desistimos de explicar para impingir a receita.

Somos felizes, porque não desistimos.

[o aveiro; 11/11/2004]

nada me custa mais do que corrigir provas... de amor

Quando te pergunto e tu respondes,
procuro o certo e o errado ou o que escondes?

Eu não quero saber o que é certo ou o que é errado
nem quero virar o ar dos sons para vibrar por outro lado


Sou eu quem se desfaz em tinta vermelha verdadeira
chorando sangue sobre a tua resposta azul certeira

a não esperada
ou a não desejada
ou o contrário de tudo ... que é nada.

onde os olhos poisam

por onde voam os olhos

onde ponho os pés

o que eu quero ver é o que quero ler.

o homem que não aprendeu a nadar.

- estes anos já cá cantam !
é ele quem o diz, quando olha para o tempo que passou, e diz também:

- só tenho pena de não ter aprendido a nadar. mas não tive iniciativa!
para continuar:

- de resto só tenho pena de ter tido a iniciativa para o resto das coisas da vida, de tal modo que não sei, por exemplo, se há alguém que goste de mim. nunca houve quem tomasse a iniciativa e me dissesse
- eu gosto de ti, desejo-te, amo-te!
ou coisa assim. sei agora, a olhar para trás que fui eu quem andou a insistir que é o mesmo que ter andado a mendigar amor, amizade, etc.
provavelmente ninguém gosta de mim e só conheço quem cedeu às minhas insistências para não ter de me aturar a tristeza e não ser capaz de me desprezar.

- só tenho pena de não ter aprendido a nadar!
é ele quem o diz.

e eu penso que ele o diz porque não precisa realmente de ter vontade para se afogar. basta deixar-se cair.

- estes anos já cá cantam!
é ele quem o diz, como se os dias e os anos tivessem caído do nada para nada.

chamado

disseram-me que muitos são os chamados
e poucos são os escolhidos


a mim chegava ser chamado

desenho, logo existe

existe, logo desenho

desenho, logo existe

Diz a lenda sobre Lîlavatî

Diz a lenda que Lîlavatî era o nome da filha de Bhâskara, a quem, ao nascer, as estrelas, pela boca de um astrólogo, predisseram a condenação (?) de ficar solteira toda a vida.

Um dia Lîlavatî foi pedida em casamento por um jovem de Dravira, honesto, trabalhador e de boa casta. Fixou-se com grande júbilo a data da boda e marcou-se a hora no cilindro que tinha um pequeno orifício na base e estava aberto na sua parte superior. O cilindro introduzia-se num vaso cheio de água e o nível desta, enquanto subia, marcava as horas na sua superfície interior. No dia assinalado para a boda, Bhâskara colocou cuidadosamente o cilindro marcado no vaso cheio de água. Lîlavatî, curiosa, debruçou-se para espreitar a subida do nível de água e nesse momento uma pérola do seu colar caíu dentro sem que alguém desse por isso. Com tal má sorte que a pérola obstruíu o orifício e o dia passou sem que a hora da boda tivesse sido assinalada pelo nível da água. Assim se cumpriu o sortilégio e Lîlavatî ficou solteira para sempre.

Foi então que seu pai se propôs escrever um livro que sobrevivesse à desejada descendência da sua querida filha.




Lîlavatî, de Bhâskara, é o livro que sobreviveu a Lîlavatî.



Esta é a resposta atrasada ao comentário de André Carvalho sobre o problema 55 de Bhâskara que o André Moreira prontamente resolveu, cedendo ao romantismo histórico dos matemáticos.

eu não tenho gato

(...)
Eu não tenho gato, mas se o tivesse
quem lhe abriria a porta quando eu morresse?

[António Gedeão]

Para acreditar

Para acreditar em Deus
é preciso que ao menos Um

exista como ente nenhum.

sob a pele

Porque há-de sob a pele o sangue amotinar-se
quando apenas a pele havemos convocado
mas quanto mais a pele a vemos sem disfarce
mais sob a pele apela o sangue amotinado

Quem nos faz de repente esta rampa temer
da cópula de um dia à cúpula do dia
Porque há-de sob o sangue a alma estremecer
se decretámos nós que ela não existia.


David Moura Ferreira

Porquinho da Índia

Já agora que me lembrei de Manuel Bandeira, aqui fica um dos meus preferidos:


Quando eu tinha seis anos
Ganhei um porquinho-da-Índia.
Que dor de coração eu tinha
Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!
levava ele pra a sala
Pra os lugares mais bonitos mais limpinhos
Ele não se importava:
Queria era estar debaixo do fogão.
Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas...


- O meu porquinho-da-Índia foi a minha primeira namorada.




Manuel Bandeira.

Morro do Encanto

(...)
Falta a morte chegar... Ela me espia
Neste instante talvez, mal suspeitando
Que eu já morri quando o que eu fui morria.


Petrópolis, 21-12-1953
Manuel Bandeira: Nocturno do Morro do Encanto.

O pecado.

A 29 de Outubro, Tiago Barbosa Ribeiro escreveu Feuerbach revisitado

e eu transcrevo


Não sejamos hipócritas. A mais válida das razões para recusarmos a herança judaico-cristã é também a mais simples: a preguiça é um dos seus pecados mortais.

hoje.

Os dias depois do dia antes.

[1. Voos Intercontinentais.]

Ainda não sabemos. No momento em que escrevemos não sabemos. O Jorge ou o João? Qual deles será o próximo presidente dos Estados Unidos? Podemos tratá-los familiarmente assim em português e tudo. Afinal, as eleições para presidente dos EU são travadas em todos os cantos do mundo. Travadas é o termo certo, porque é de mais ou menos guerras que tratamos quando falamos das eleições do João e do Jorge.

Quando esta crónica sair impressa no jornal é possível que já se saiba. Ou que nada se saiba e se ande a contar e a recontar os votos para apurar o vencedor. Já foi assim quando o Jorge chegou a presidente pela primeira vez. E então também já se perderam e se encontraram votos onde menos eram esperados. Tal como está a acontecer agora.

A única verdadeira novidade é que estas eleições são tão globais que até Bin Laden, o inimigo mais chegado de Jorge (Bush), veio mostrar interesse e empenho nas eleições americanas. Só faltou dizer ao povo americano: votem no Jorge que é ele quem mais quer jogar comigo ao terror e ao jogo do mais - mais ricos de um lado, mais pobres cada vez mais pobres de outro.

Esta foi a semana antes.

[2. Voos domésticos.]

A meio do seu mandato para que tinha sido eleito, Durão virou as costas e foi para comissário a bordo do Europa. Para lá anda, com seu beicinho ?tem-te que não caias?. Depois de nos ter deixado, como presente envenenado, um projecto de primeiro ministro com um palmarés brilhante na passerelle dos presidentes modelos de câmara. De facto, ele, o Santana, passou ou passeou por duas câmaras de cidades cosmopolitas antes dele e ?altamente? depois dele. Ainda houve quem protestasse e tentasse convencer o nosso Jorge a não aceitar o presidente-modelo. Mas o nosso Jorge foi insensível aos protestos e nomeou Santana Lopes para que este formasse governo. Assim, sem passar por eleições, Santana chegou a primeiro ministro contra todas as previsões mas tendo a seu favor muitas pressões e muita vontade de entrar em qualquer jogo da glória. Até à semana passada, ainda era uma vergonha nossa, um problema domestico, quase privado,

Mas tudo mudou. Santana Lopes foi a Roma assinar a Constituição Europeia aparentemente em nome do governo e do povo português. Para a história, ficará a assinatura a ouro de Santana Lopes nas actas romanas. O Santana está nas alturas. E eu vou, de olhos no chão, assobiando pelas ruas da amargura a disfarçar, para que não me misturem com os farsantes vendilhões do templo de onde não são varridos pela história mal contada.

Resta-me escolher Não quando vier o referendo sobre a dita Constituição. Digo já. Não há qualquer conspiração nisto.

Esta foi a semana depois.


[o aveiro; 4/11/2004]

a garça que caminha

a garça tem olhos inquietos e um corpo suspenso
desajeitadamente reequilibrado com o bater das asas.

o boi tem olhos conformados ao corpo pachorrento.
uma tremura por dentro da pele macia avisa as asas da garça:

podemos caminhar juntos, voar é que não!





desenho, logo existe ...

...preso em seu papel pardo e triste.

as ideias.

eu sou o meu único tormento
e as tormentas por que passo.

eu sou o navegador
que inventa o cabo e o dobra.

da tirania e da cobardia

Ainda sobre as praxes, GRAÇA FRANCO escreve no Espaço Público - Geração Doente . Vale a pena ler, até porque acrescenta algum debate (contraditório?) com uma jovem... cobarde.

Não resisto a transcrever, com a devida vénia:


"Grande Reportagem" de há duas semanas denunciava uma história de terror, dessas que se lêem e não se acredita. Ou melhor, não se quer acreditar. Um jovem - de nome Diogo - quartanista de Arquitectura fora praxado até à morte pelos colegas da Tuna Universitária a que pertencia. O caso a que João Cândido da Silva já se referiu, na sua última crónica, com o sugestivo subtítulo de "Javardos", passou-se em Portugal vai para três anos. Só agora, ultrapassado o doloroso luto, saltou para os jornais, denunciado pela família num justificado alerta contra essa coisa sinistra dos rituais praxistas que continuamos a fingir não ver. Rituais que já começam a invadir o próprio ensino secundário, onde exibem a mesma ou pior violência. Fica assim minada toda a formação da personalidade de gerações inteiras dos nossos miúdos.

A reportagem justificava o editorial de Joaquim Vieira "Cultura rasca". Contra ele escreve violentamente, na edição desta semana, uma jovem socióloga de 26 anos a frequentar o mestrado. Lemos e voltamos a não querer acreditar.

Em sua defesa, e dos da sua geração, a leitora começa por alertar para o seguinte: "os nossos valores são incutidos pela sociedade que foi por vós constituída". Embora o argumento seja lapalissiano só posso concordar e partilhar a culpa na parte que me toca. OK. Posso até concordar com o argumento seguinte: o que se passou não foi "praxe", foi sobretudo um "crime" que a Justiça com a inoperância habitual, exercida por várias gerações (e não por uma única geração como sustenta a jovem), foi incapaz de castigar. E isso é grave. Gravíssimo. Mas, logo a seguir, a mestranda tenta exibir a sua superioridade moral afirmando o seguinte: "Ao invés do Diogo, optei por me impor (sublinhado meu) e recusei participar nas praxes, sem nunca ser posta de parte. Limitei-me a aparecer nas aulas após o fecho das praxes, alegadamente por estar doente. No harm done diriam os ingleses".

Chegámos ao ponto. Posso até admitir que não tinha outra solução senão fugir para não enfrentar o gang acéfalo e maioritário. Nem sempre a fuga é pura cobardia, mas a fuga travestida de colaboracionismo, para gozar dos privilégios inerentes, só pode ter esse nome.

Para esta jovem, que se faz porta-voz de uma geração, "impor-se" resume-se à adopção do comportamento desprezível mas corriqueiro de apresentar atestado médico falso. Estamos entendidos! Fica explicada a tendência compulsiva para a doença falsa e fica-se a perceber melhor por que raio a nova geração de professores, em busca de colocação, pode subitamente surgir tão achacada.

Enfrentar o "sistema", mesmo o mais injusto, dá, no mínimo, muita chatice. Além disso, corre-se o risco de poder ficar à margem do rebanho, sem direito à festa, à borga, aos copos (lá se ia a companhia para as ponchas da Madeira que a jovem académica diz tanto apreciar). E claro, lá se iria também o traje.

Dizer "não", como a minha geração era useira e vezeira, pode sempre trazer problemas ao enfrentar a turba, recusar a humilhação, denunciar, não pactuar com o sistema de abuso abjecto dos mais fracos imposto por uma ordem absurda onde a "antiguidade" é um posto e a burrice assumida premiada na dupla categoria idiota dos "veteranos".

Na minha geração os que "optavam" assim tinham um nome: cobardes, como diriam os portugueses. "Cowards" na versão anglo-saxónica...



nota póstuma

Não o lia há uns tempos. Mas ele escreve recados pela madrugada. De ontem para hoje mudou a hora, mas mesmo assim podemos cheirar a madrugada numa conversa lenta com os amigos. Ouvimo-nos uns aos outros, como se a manhã pingasse.

Rui Bebiano escreveu em sous les pavés, la plage

{duas da manhã e uma r.e.m.-cantiga}


You're on your ear, the ocean's near
The light has started to fade
Your high is timed, you found the climb
It's hard to focus on more than what's in front of you
Electron Blue
Adventure rings with a page and
When it dawns on you,
It sings blue
Your buzz beginning to wane.



Não tem coisa alguma a ver com as canções do r.e.m. que o rui nos lembra; só tem a ver com a minha madrugada e não é mais do que uma prova de vida a nota póstuma que escrevi como comentário.


muda a hora. às duas de qual manhã?

às duas por três, numa catedral aberta,
visito mortalhas em fila de espera
e só ouço o silêncio frio
de um amigo que ressona

sem saber que morreu uma hora mais cedo.




Já agora também gostei muito de ler por lá, citado de cor, Robin Williams: O bom rebelde . No filme - O bom rebelde -, há uma cena magnífica sobre os matemáticos... e eu também costumo citar de cor, mas aqui tenho vergonha. Penso que se trata de perguntar num bar se alguém conhece Theodore Kaczynski. Ninguém conhece o matemático. Depois pergunta-se se alguém conhece o Unabomber. E ....

amalgamar.

Gosto mesmo da entrada caligráfica de amalgamar. E gosto da filosofia de família dos blogs em volta. Obrigado ao Moacyr, que me dá a honra de uma ou outra visita, e que escreve no babel. Este é o primeiro laço deste lado esquerdo com o Brasil, pela mão de Moacyr - o não escritor.

Os meus outros laços com o Brasil estão todos feitos e dados nos arames em que trefilámos o aço da família inemigrada.

Javardos.

João Cândido Silva escreve na sua crónica do Espaço Público um texto que aqui se transcreve e que devia ser motivo de reflexão para todos os responsáveis das universidades públicas e privadas portuguesas.

Javardos
"Diogo está esquecido no WC, junto aos lavatórios. As palavras saíam-lhe dos lábios, sem cor, em sussurros. Quando os olhos dele se enevoaram, como os de um afogado, alguém decidiu chamar a ambulância. No trajecto para o hospital, "Arrepio" ouve as versões dos outros sobre o que se teria passado: "Disseram-me que ele tinha sido praxado, que fizera umas 70 flexões. Pensei: 'Ele se calhar fez alguma e foi castigado.' Mas não liguei as coisas. Os mais velhos falavam de indigestão." Certo e seguro, porque há registos indesmentíveis, é a hora a que Diogo deu entrada no Hospital de Famalicão, a uns metros da universidade, em coma profundo. Eram exactamente 22h51."

Este é um dos detalhes da história trágica e repugnante de um homicídio impune levado a cabo na Universidade Lusíada de Famalicão e relatado pela revista "Grande Reportagem" numa das suas edições mais recentes. A história merece ser lida, sobretudo pelo retrato que dá de um mundo sinistro e mafioso que se esconde por detrás das tradições académicas e da instituição das tunas. Em poucas palavras, os factos indiciam que um jovem aluno de Arquitectura foi espancado até à morte, por razões tão ferozmente frívolas como a circunstância de aparentemente pretender abandonar a sua ligação à tuna daquele estabelecimento de ensino, vontade mal aceite, como se verificou, pelos sicários que integravam a hierarquia da organização.

A violência gratuita provocou uma morte absurda para a qual as autoridades policiais não conseguiram encontrar responsáveis que fossem levados perante os tribunais. E o principal obstáculo para o apuramento da verdade foi precisamente o facto de ninguém, entre os que presenciaram a arrepiante cena, se ter disposto a revelar aquilo que sabe, numa teia de cumplicidades destinada a encobrir um crime grave. Uma universidade é suposta ser um local em que os alunos completam a sua formação literária e humana e de onde sairão preparados para assumir plenamente os deveres, obrigações e direitos decorrentes da sua integração numa sociedade necessitada de quem ajude a zelar pelos valores essenciais que a enquadram. Mas há algo que parece falhar redondamente neste campo.

As tunas, com os seus rituais de praxe, são escolas adequadas para o desenvolvimento de um autoritarismo cobarde, onde vence a mentalidade sórdida dos medíocres, perante a passividade generalizada de quem tem sobre os ombros a tarefa de assegurar a boa qualidade do ambiente em que os estudantes vivem o seu quotidiano. O caso de Diogo será o mais trágico mas não é o único que testemunha os mais diversos géneros de humilhações impostos aos seus pares por tribos que, embora floresçam um pouco por tudo o que são instituições do ensino superior, parecem viver ainda orgulhosamente nos tempos dos homens das cavernas. Pergunta-se: será que ninguém, das reitorias ao Governo, será capaz de colocar um ponto final na livre actuação desta gente que pouco mais merece do que o epíteto de javardos.


Na minha mais que humilde opinião, e, com a sensação de impotência que me assalta no que a isto diz respeito (uma luta aparentemente ganha antes do 25 de Abril e depois perdida em pequenas derrotas todos os anos), proponho que se sentem nos bancos dos réus todos os reitores, professores e outros responsáveis (incluindo os administradores das cervejeiras) cúmplices do crime nas universidades e sejam acusados dos homicídios cometidos pelos javardos que muitas vezes chegam a patrocinar.

E faça-se justiça:
Sejam presos, de preferência em celas onde possam conviver intimamente com alguns desses javardos.

o engano do jorge

não votei em durão barroso, nem no psd e muito menos no cds,
mas reconhecia o db como primeiro ministro do meu país.
não sendo eleito sequer para governar portugal, santana lopes pode assinar uma constituição europeia?

pode. por s.jorge!

em nome do pai

a história:
em nome de portugal e da europa, santana lopes assinou a constituição europeia.

liberdade

sinto que nunca estive nesse lugar onde me dizem que estou.

Quad quartet

Saímos pela noite para o outro lado dos espelhos do navio dos espelhos e, enquanto ainda estamos desse lado, podemos dizer que nos sentimos felizes (bem e mal) quando vemos e ouvimos os quatro saxofones que nos habituámos a querer ouvir em conversas familiares ora calmas como para embalar, ora ideias repetidas por todas as vozes até ser inquietação, ora verdes anos ou tempos de verão ou tango gingão e safado com navalhas faíscando.

Assim, a sempre diferente eterna formação que ouvimos hoje - Soprano João Figueiredo, Alto Fernando Ramos, Tenor Henrique Portovedo e Barítono Romeu Costa - sob o nome Quad Quartet
atacou-nos com os clássicos Bozza e Desenclos (se é que há clássicos para saxofones) e com Carlos Paredes e Astor Piazzola.

Gosto do clássico dos clássicos Piazzola. O que haverá de mais clássico que uns tangos ao meu gosto?

Podem dizer-lhes que venham tocar tangos para a .... minha rua.

sobre o lado esquerdo

Encontrei a citação exacta:

(...) o homem que não dorme pensa: «o melhor é voltar-me para o lado esquerdo e assim, deslocando todo o peso do sangue sobre a metade mais gasta do meu corpo, esmagar o coração».



Foi isto que escreveu o Carlos de Oliveira em sobre o lado esquerdo sob o título sobre o lado esquerdo. Tanto tempo a ler e a reler e sempre com a ideia de não ter encontrado. Deixei passar a noite e passeei de novo os olhos vigilantes pelo trabalho poético, já sem esperança. E li o que sempre li, mas... encontrando. Aqui deixo a exacta (ex)citação.

Lightenings

Já várias vezes disse que 'o lado esquerdo' é nome sugerido por um texto do Carlos de Oliveira, eu creio, em que ele escreve o desejo de "deitar-se sobre o lado esquerdo na esperança (vã?) de poder esmagar o coração". Ontem e hoje, folheei os trabalhos poéticos de Carlos de Oliveira e não encontro a minha citação exacta. Também procurei uns outros textos de Jorge de Sena em busca disso (memórias vagas...).

Não encontrei o que procurava, mas encontrei muitas outras coisas, a começar pelo Carlos de Oliveira.

Mas aqui deixo um reencontro com Seamus Heaney (na reescrita de Vasco Graça Moura) no que eu dele mais gosto (hoje):

VIII.
Dizem os anais: quando os monges de Clonmacnoise
estavam todos em prece no oratório
surgiu um barco no ar por cima deles.

A âncora desceu tão fundo que ficou presa
ao parapeito do altar e então, quando
o baloiçar do grande casco se imobilizou,

um dos tripulantes desceu agarrado à corda
e tentou libertá-la. Mas em vão. "Este homem não pode
aguentar a nossa vida aqui e vai afogar-se".

disse o abade, "a não ser que o ajudemos". Assim
fizeram, o barco solto partiu, e o homem lá trepou
para fora do maravilhoso mundo como o tinha conhecido.

o frio céu

antes neve e gelo em teu banho de espuma
que o frio no céu


da minha boca ...

asa delta

a fita que se soltou do teu chapéu
chamou-me pelo nome pronta para voar

e eu hesitei no teu decote o meu olhar
antes de ir com ela para o mais alto céu.


de tão longe ver-te como um ponto final,
quando tanto te desejei em cada pormenor,
não vejo pior
mal.

Perturbação de sentidos

1. Nada me perturba mais na vida das cidades e dos cidadãos, do que a falta de encontro entre a decisão de poder humano (politica, empresarial,...) e a vizinhança no que ela tem de humano. O que há de humano nas cidades é cada indivíduo e outro e outro..., antes de ser soma e amálgama e efeito ou fermento na soma. Nem quero saber em pormenor quem tem a culpa no processo de extinção da Filarmonia das Beiras. Sei que ninguém tem desculpa, porque tudo me sabe a metal (deve haver) e não me sobram cheiros humanos, da sorte deste e daquele, da compreensolução para o problema real deste ou daquele. Muda-se a natureza da soma da música para que uma parcela possa ser eliminada; dá lucro, não dá lucro, o maior pagador que é o maior devedor falta com opinião na hora da decisão, etc. O silêncio sobre a situação crítica de cada um dos cidadãos músicos é cada vez mais pesado. Porque começou o falatório em volta dos outros ? dos cidadãos que exerceram ou não o poder de não pensar nos músicos como pessoas individuais e na música, dia após dia após dia após dia.

2. Nada me perturba mais, hoje em dia, que a falta de encontro entre o ensino e a vizinhança no que ela tem de humano. Sou professor de Matemática, agora do ensino básico de jovens à volta dos 13 anos e é perturbador ver que eles procedem comigo como se eu não falasse do que é comum. Se eu lhes der um problema em palavras faladas para resolver, raramente procuram uma real solução (mesmo quando conseguem pensar sobre ele). Não tiram medidas quando é preciso, usam uns símbolos e umas figuras que ilustram a situação sem a representar seriamente, etc. Não sabem o que é um marco num terreno (vértice de um polígono), não olham a fracção da matemática como a da língua ordinária. As palavras da matemática básica são termos constituintes do português básico ? uma ou outra excepção não contrariam a regra. E as respostas que procuramos, usando matemática, são escritas em português básico com o apoio de figuras e operações adequadas, cujos resultados são precisos para argumentar a favor desta ou daquela solução. Difícil é convencê-los que a resolução de um problema básico e a resposta que derem, em português corrente, deve ser compreendida por toda a gente ou quase.

Ninguém passará a número ou a unidade estatística por minhas mãos de professor. Uma escola básica que fale de cada individuo e da sua (e nossa) realidade talvez forme e controle os políticos para que procurem soluções sociais sem deixarem de ter em conta as pessoas autênticas, individuais.

[o aveiro; 28/10/2004]

onde a blusa abre

onde a blusa transparece

os olhos matam a sede das mãos ansiosas
do alpinista trepando pelas encostas dos seios,

e, na planta riscada sobre a terra lavrada,

esse vale do ventre em que se levanta o desejo da arquitectura
para a possuída casa ancorada em estacas de vento e de ternura,

eu desenhei a vida inteira por viver e por mais nada

deixei cair pelo fio do prumo o olhar a pique
e, ecoando grave, em queda livre, a voz calei

ali onde a blusa começa e se entreabre
uma porta escancarada.

o dia mais que perfeito

atravessam cedinho
a vila, deste lado ao de lá do monte onde a manhã dá à luz o sol,

os passos ligeiros da mulher mais bela do dia
escolhem maçãs bravas colhidas à árvore da madrugada.

ah! e eu for com ela de mãos dadas cedinho.

quem sou

por entre o lixo do hospício, vagueio como doido
varrido
por uma vassoura de penas.

a demora

espera mais um pouco.
por ti.
se fores devagar, talvez possas
fazer-te companhia mais um pouco.

afinal vão ambos para o mesmo lado!

desde ontem, a viagem é assim mais lenta.

desenho, logo existe

O pó sobre a cómoda

Um membro do governo é ouvido pela alta autoridade para a comunicação social. No caso presente, não podemos dizer que seja de uma pessoa que estamos a falar. Falamos daquilo a que é hábito chamar braço direito. A história de vida de Gomes da Silva, esmiuçada em pormenor por algumas revistas e jornais, é mesmo uma história de braço direito. Há quem admita que o braço direito tem boca. Outros pensam que não. Ouvi mesmo quem asseverasse que o braço direito fala pela boca assessorada pela lux. Este braço direito a falar como porta voz do governo, boca de bocas, pode dizer-nos que foi como politico que respondeu ao politico Marcelo. E que o que ele diz não pode, por isso, ser posto em causa e como causa para efeito silenciador. O braço direito do governo pode mesmo invocar uma conspiração dos diversos semanários, diários e telejornais contra o primeiro ministro. O braço direito tem uma boca sadia, mas vê e ouve mal. Se pudesse olhar (com olhos de ver) para os seus actos governativos e ouvir o que dizem da boca para fora, perceberia que a haver conspiração ela é a sucessão de toleimas contraditórias e meio surrealistas produzidas pelo próprio governo. O ?delirium tremens? é chocante em coisas como a colocação de professores e é indisfarçável em muitos outros assuntos. Há as bolas de ?ping? assim para um ministro e ?pong? assado para outro a saltitar entre os lados da mesa do poder e que nos fazem saltitar os olhos das órbitas.

É um problema para o pais ficar desequilibrado assim cheio de braços direitos. O longo braço do poder é uma ameaça. O braço direito é uma desgraça. O braço direito delgado (que primou pela falta de pudor em defesa irracional do governo da guerra) passou a braço direito do governo na lusa e agora passa a braço direito executivo na Lusomundo (sem pré-aviso aos administradores que lá estavam). A palavra delgado que nomeia a pessoa é adjectivo que qualifica tanto a inteligência dos seus argumentos como a sua vergonha. Só não deve ser delgado o soldo de quem espera a defenestração mal mudem os ventos ou haja restauração da independência. Se há conspiração visível para o controle das coisas da comunicação social, ela é a dos braços direitos.


Esperam que nos habituemos aos seus braços direitos como nos habituamos a ácaros e ao pó da casa em obras. Aaaaaaaatchim! - é a inteligência a resistir.


[o aveiro; 21/10/2004]

32KB