A prenda

Recebemos hoje cá em casa a prenda de um livro, a saber:
Um divórcio na Lisboa oitocentista
publicado pela Livros Horizonte
A nossa amiga Manuela Simões investigou e escreveu. Essa é a melhor prenda.
(Man)Dá-lo já é um excesso.
Obrigado, Manuela.

desenho, logo existe



© PONTA ELÉCTRICA

desenho, logo existo.




Dou por mim a desenhar caras partidas em duas metades nada simétricas. Ou são duas caras que tentam falar uma com a outra? Não tenho forças nem vontade para partir a cara de quem quer que seja. Mas dá que pensar. ¿ Que raio de reuniões são estas? Por onde ando, os dedos riscam até tudo ser escuro e as pessoas ou são tristes ou são duplas. Ou são vidas duplas e... é, por isso, que não são parecidas com quem quer que seja. Nem comigo? Não me sinto bem.

o que se perdeu, onde está?

Em tempos, lmbro-me de ter lamentado a perda (por deficiência assumida momentânea do Blogger) de algumas frases escritas mais por aqui que por ali. Essas frases tinham sido escritas para serem ditas por José António Moreira no podcast sons da escrita e ficaram guardadas no blog respectivo - sons da escrita, também - onde podem ser lidas. O esqueleto é "a casa do ferreiro" que pode ser visitada dentro de uma antiga escrivaninha onde guardo poetas e farrapos.
Assim sendo, não vou recuperar para aqui a tal
apagada semana , vil tristeza .
Não cumpro a promessa, mas indico o caminho para o prometido e muito mais. Que pode ser nada, eu sei!

como quem diz bom dia nem mais

quando saio da escuridão da noite e a manhã é uma surpresa gelada
embrulhas-me cuidadosamente na tua teia no mais terno olhar de lã

nada é mais feliz que ver como a madrugada acorda a manhã
como a bafeja à manhã estremunhada que espantada abre os olhos
até que a lua ensimesma na foz da noite e o sol inaugura uma nascente

para o dia que aí vem
dizes tu
como quem diz bom dia nem mais.

perdido como folha de caderno




Há desenhos que ficam perdidos. A folha está lá, mas deixámos de a ver
como uma falha de sentido. Até que um dia ela sustém o vôo até ser vista.

Então, como verso na folha, escrevemos nome e morada. E colamos-lhe um valor
para a viagem. Nervosos, enfiamos a frente e o verso na fenda escura do futuro.

Para que ela vá pelo rio do esquecimento acima e fecunde o longe até ser perto.

desenho, logo existe




aqui, ali, ... até santa joana.

desenho, logo existe




uma, duas reuniões... fim em santa joana.

desenho, logo existe




em santa joana.

o soco no estomago

Marinamos a vida normal na calda dos nossos brandos costumes. A violência extrema faz parte do noticiário estrangeiro, de um filme alheio. O desprezo absoluto pela vida do outro vem como notícia de tempestade ou calamidade ou praga de outro continente que nos faz benzer e dar graças. Admitimos pequenas trovoadas, derrocadas e acidentes de trabalho.

Nós, por cá, todos bem. Ou, no pior dos cenários, assim assim. Andamos confiantes e distraídos até ao dia em que nos informam que um grupo de miúdos de escola, portugueses numa cidade a menos de uma hora de comboio, persegue até assassinar um homem de 45 anos. E perturbamo-nos enquanto explicamos o que se poderá ter passado nas nossas costas, mesmo à nossa frente, em nossas casas, nas nossas escolas. E assobiamos aos melros, quando cercamos o acontecimento com o arame farpado das circunstâncias do lugar, da natureza da escola e da experiência de vida dos miúdos, da vida específica do adulto morto até tudo ser estranho e estrangeiro em casa. Até tudo ser passado de uma cave da nossa casa que mandámos emparedar.

As nossas famílias, igrejas e escolas, os nossos pais, padres e professores não podem prever todos os comportamentos, favorecendo uns e prevenindo outros. Cada vez menos, na medida em que o desenvolvimento da sociedade se faz acompanhar pela inexorável criação de franjas de excluídos da casa e causa comum em valores e bens essenciais. Os sistemas dizem que desejam a inclusão enquanto gritam pela segurança e constroem muros altos para separar.

O soco no estômago dos últimos dias obrigou à discussão das escolas, das escolas especiais de acolhimento, orfanatos e reformatórios, em particular. Ainda que falsamente, desculpabilizar e desresponsabilizar as crianças e os jovens foi palavra de ordem, desde a educação familiar e escolar até ao direito. Face à perda da inocência e, ainda que aceitando que há meninos que nunca o foram, há políticos a favor de tratamento adulto para os criminosos juvenis. Este é o outro soco no estômago. Esperávamos por ele. Mas ainda dói mais. Ele, por si só, é nada quando quer parecer tudo.


[o aveiro; 02/03/2006]

apagada semana, vil tristeza

Pareceu-me que a desaparecida semana passada reaparecia no arquivo.
Por alguns dias assim foi. Mas ontem procurei-a e nada.
Desapareceu também do arquivo. Desapareceu completamente.
Com tempo, hei-de devolver a'o lado esquerdo o que lhe dei e a máquina insiste em tirar-lhe.

desenho, logo existe





desenho, logo existe





desenho, logo existe





Sentado!


- Senta-te! Vá lá, senta-te! Já estás sentado?
- Estou! Vá lá! Diz o que queres dizer!
- Não sei se o quero dizer. Porque para o dizer, vou dizer-te coisas que não queres ouvir. Embora eu ache que é vital para ti e para toda a gente ouvir a verdade. O que tem faltado afinal é uma política de verdade.
- E tu sabes o que é a verdade? E sabes o que é a política de verdade? Aquela que ninguém tem coragem para explicar e aplicar aos portugueses. Mas...
- Não há mas nem meio mas. Tem de ser.


Ha qualquer coisa de estranho nos economistas e especialistas portugueses que falam de política. Eles sabem qualquer coisa que nunca virão a dizer. Aliás, eles sabem duas coisas. Porque quando estão num lugar do poder estão a fazer o bem possível e quando estão noutro lugar do poder dizem que o bem necessário é coisa que os políticos não têm coragem de fazer. E há sempre um especialista que desmente com números insuspeitos as suspeitas intervenções do outro especialista, que não chega a dizer o que ameaça dizer. Pelo menos, assim parece. Porque da próxima vez que aparece virá anunciar qualquer coisa que nunca foi dita... por falta de coragem.

E o dilema que me sobra é sempre entre escolher se serão mais mentirosos que cobardes ou mais cobardes que mentirosos. Quando estou mais lúcido, pergunto-me se haverá aquilo a que chamam política de verdade. Outras, quando é a cabeça que voa, pergunto-me se haverá verdade ou se a verdade pasta neste prado.

Há dias em que acordo a meio do pesadelo. Depois de comer o verde da verdade, uma manada pisoteia o prado da verdade até não sobrar coisa alguma digna de ser lembrada por esse nome. Há manadas a disputar a propriedade da verdade, como gatos disputam os novelos de que puxaríamos o fio da meada até saber.

A coisa fia mais estranha quando em cena entram cavalheiros especialistas de grandes lombadas do combate greco-romano. Nas suas costas, abre-se um anfiteatro. É então que nós sentimos que há um corredor no ar por onde se voa a direito. E por onde voam os direitos. As palavras normais deixam de existir. Somos obrigados a reconhecer as tonalidades da verdade, porque tanto a virtude como o vício mergulham as suas raízes mais fundo que na metafísica dos costumes traduzida e comentada.


- Estou sentado! Podes dizer!
- Já não digo. Li o que escreveste e fiquei a saber que não acreditas no que eu disser.
- Acredito! Podes crer! Diz lá.
- Se eu te disser que o país está falido, acreditas?
- Claro! Porque não havia de acreditar? Não tens andado a gerir isto?


A verdade é que lá fora chove torrencialmente. Cada pingo dói na minha cabeça.


[o aveiro; 23/02/2006]

a semana que passou

Se, por acaso, abrir "o lado esquerdo", pode parecer-lhe que os dias antes deste não existiram. Houve um problema qualquer com o "blogger" que me levou a refazer algumas publicações à medida que me parecia que desapareciam. Isso aconteceu com os escritos para o audioblog sons da escrita. Acabo de reparar que eles se podem ver nos arquivos, como este.

posso nem ter que fazer

posso nem ter mais que fazer
mas hoje não vou fazer o que é costume

e vou antes acender um azedume
que me vingue do dia que acabei de perder

se um dia...

se um dia me encontrasses
ainda que eu não encontrasse mais ninguém

tal dia seria a vida completa e plena

as boas maneiras...

... são como as luvas que calça o ladrão.

quanto pau a mais que ferro?

Quanto pau tem uma faca a mais que ferro? Ou a roda de um carro ou a gadanha da morte? Ou a foicinha ou a enxada que abre a regueira?
No lagoaceiro, guias a água até onde ela se some no leve areal que é onde o milho não sobrevive e a abóbora raquítica e bêbeda da tua água boleca te serve de desculpa para veres pessoas e pernas de cachopas que passem com seus carregos de feijão arrancado pelo pé.
Mal se endireitam as cachopas na voz e é para murmurar coitado do rapaz! Tão mordido está pelas folhas do milho e sem leituras que nem sabe que fazer do entrepernas! Elas conhecem o ferreiro que moldou a pá da enxada, o martelo, as orelhas. Pelo olho da enxada passa a identidade do cavador, o pau do peregrino, o cabo encerado pelo suor e com rugas e calos de gente, um cabo dos trabalhos rasgado pela cunha temperada na celha do lameiro. Elas não conhecem a marca do cavador, o cabo da enxada espetado na cova do ombro, na espreita dormente da presa, os nervos despertos para a vibração da toupeira cega quando cava o seu último túnel.

Escritos para os  sons da escrita   (audio blog e podcast) da voz e da música de  José António Moreira

a mulher sentada




de perna traçada
a mulher sentada
e cabeça na lua
não vê sol nem solidão
ali mesmo à mão
ao cimo da rua

a liberdade passa por aqui perto

Nos últimos tempos tenho sido assaltado por vários assuntos. Tento fugir dos assaltantes. Sem êxito.

O primeiro foi um alarido de fogueiras. Ameaçou disparar à queima roupa contra a minha mão que desenha. O assunto era a indignação de alguns crentes e agentes contra os desenhos do profeta, quando os desenhos do profeta tinham partido a embrulhar coisas menos dignas. Houve quem compreendesse a indignação e até justificasse o fanatismo violento, por razões religiosas que a razão reconhece. E houve até quem achasse merecida a vingança fanática contra os loiros, de direita e xenófobos, que desenharam e publicaram. E, de joelho em terra e em nome de governos que nada publicaram, houve quem pedisse desculpa ao profeta pelos desenhos do profeta. Este assunto atirou à queima roupa. Com a roupa queimada de medo, apesar de não gostar dos desenhos, de os achar execráveis e irresponsáveis, venho aqui defender que, quem assim o decidir, tem o direito de os publicar. E dar-me, a mim e a toda a gente, o direito de criticar, de processar e de desenhar esses artistas em indecorosas posições de rabo para o ar. A liberdade é também a liberdade de reinventar os profetas todos. E de escrevermos que, neste assunto como noutros, ?quanto mais nos baixamos, mais o sangue nos sobe à cabeça?.

Na segunda cena vê-se, em primeiro plano, uma manifestação de calções e apitos entredentes de ouro. Um major reformado de barba branca reaparecia reluzente nos seus calções de amador profissional à cabeça da manifestação de calções. Para os calções e para a televisão, vociferava contra um presidente em retirada estratégica por terras de senhorim e outras nunca dantes visitadas. Que rouquejava ele? Firme? Sentido? Direita volvereeee? Nah! Em sua reserva, o nosso major salivava contra o presidente retirante que não se pronunciara sobre as violações do segredo da injustiça. Aquele é o major árbitro do estado de direito. A norte da cena, a televisão segue um bruxo que, a pé e carregando o fardo da sua cruz, vai até ao sameiro para lançar um mau olhado aos árbitros contra a descida do vitória. E, de norte para o centro da cena, Felgueiras, disfarçada de peregrina vai a Fátima. Fatinha monta uma feira em Fátima: depois de uma missinha, distribui comes e bebes, lencinhos brancos bordados com seu nome e outras miudezas.

O que é que estes assuntos têm em comum? A animação! A animação! Roguei a Deus que tudo isto se passasse com bonecos animados e nós, finalmente acordados, nos pudéssemos rir porque tinha sido tudo fruto da imaginação.

Já não adianta rezar! Os assaltos são reais! O sobressalto é grande. Lá terá de ser! Aceitamos o exorcismo.



[o aveiro; 16/02/2006]

o beijo do ferreiro, a marca

Por onde quer que passes, verás o beijo do ferreiro. Nas esquinas das casas, a argola a que te amarram como se fosses a besta e, na praça, o cano da fonte onde te dão de beber, tudo são marcas da oficina do ferreiro.

Quando a filha do ferreiro desinfectava a agulha da seringa no álcool ardente e te distraíam até que, em teu delírio, perdesses a vergonha antes que te perdesses na dor, sobrava de ti um afogado em suor, no mar da vergonha e da raiva de te lembrares do pesadelo do delírio.

Na ideia absurda, mas verdadeira, que atazanava os teus cornos de aço, a razão era a tua. A tua razão não tinha que ser razão para toda a gente.



Escritos para os  sons da escrita   (audio blog e podcast) da voz e da música de  José António Moreira

quem te diz...

quem te diz que te amo por seres bela
não sabe de quantas tempestades é feito o amor

a estrada nacional 109

O meu avô sentava-se na berma da 109. Lia o jornal do dia e dormitava livros americanos acenando a quem passava. Pouco falava. Se me lembro de coisas que ele fez?
Uma guitarra e piões em madeira. Bustos de mulher em pedra de ançã de antigas lápides do cemitério,
Melhor me lembro como a minha avó as desfez a golpes certeiros do machado afiado para o outono da lenha do inverno e de todo o ano.
Antes fosse bêbedo meu avô sem arte, sem literatura e sem mistério. Assim ninguém o via quando ele vagueava no seu modo translúcido de uma garrafa para outra de aniz escarchado depois de já ter bebido toda a genebra que havia na aldeia, todo gin e todo o whisky.
Por via dele tinham entrado no comércio local. Por via da minha avó tinham saído, que as proibia à medida que se esgotavam os stocks.

Escritos para os  sons da escrita   (audio blog e podcast) da voz e da música de  José António Moreira

a casa do ferreiro.

Não há ventos nem montes para ver se olhares de frente para a aldeia passada pelas brasas da forja do ferreiro.
Escondido entre pinheiros e incêndios, masturbaste a tua aldeia. Ou foi outra aldeia qualquer? Ou foi mulher que o desejasse e não te desejasse em mais que à tua mão decepada na guerra colonial e logo substituída por um toco de madeira verde para depois ser puída pela tua vida. És uma carícia de pau envernizada. Honesta caricatura de carícia, mas não mais que isso.
Antes assim que peso morto em contentor de chumbo! - dizias tu para quem te queria ouvir. Não sei se acreditavas nisso que dizias. Eu acreditava.




De que me hei-de lembrar? Se a aldeia tal como a conheci nem existe já e as pessoas fugiram a sete pés de lá para fugir dos seus mortos que não páram de as atazanar com as promessas por cumprir e a inveja da vida que levam antes da morte que as leve. A aldeia é a cobrança coerciva de uma dívida que nunca existiu senão como sentimento de culpa pelos gatos que se afogaram cumprindo ordens ou outras maldições menores tais como pecados mortais que não matavam, da cobiça da mulher alheia, da inveja e da preguiça. Os outros nomes dos pecados nem sabíamos o que queriam dizer. Como podíamos cometê-los? Devo dizer que ninguém cobiçava a mulher alheia que para ali estava como se não estivesse neste mundo. Nós só pensávamos que era maldade da parte de Deus não a ter levado quando era um anjo leve e não aquele peso que a aldeia inteira não conseguiu carregar aos ombros nem ninguém consegue contar o que a aldeia fez para a levar até à cova. Estavam lá todos e ninguém se lembra. Não é estranho?



Escritos para os  sons da escrita  (audioblog e podcast) da voz e da música de  José António Moreira

desenho, logo existe.





missa romana




Ossessi
alla porta
nel profumo di peste
mimano e vendono con lazzi
agli enfermi e deformi
della probatica
vasca
la sua soave maschera di suppliziato.

Cristina Campo. Passo d'addio quadernetto

Anjos de orelhas quentes

Segunda-feira. Sentada na esplanada virada ao sol da avenida da manhã, a Mariana ri-se ao ver-me passar. Aumentar a luz dos olhos e o sorriso da Mariana é fácil e natural. As palavras da circunstância do encontro soam embrulhadas em gargalhadas saborosas como o pão nosso de cada dia, naquele lugar soalheiro e ainda frio. Ela fecha a agenda. A capa está carregada de anjos sorridentes. Brinco: "O que sabes de anjos? Sabes ao menos as patentes, a hierarquia?" Ela olha para a agenda e, piscando o olho a um dos anjos da capa, responde-me que nada sabe da legião dos anjos. A hierarquia angélica dá-nos para rir. Continuo a rir-me quando retomo o inevitável caminho .
A agenda política é marcada por pessoas que não são anjos. De acordo com os seus interesses, ouço as pessoas concordar e discordar dos assuntos postos na ordem do dia pelos jornalistas ou pelos políticos. Cada um lamenta à sua maneira que a fruta da época não seja a sua fruta preferida, que é o mesmo que dizer que lamenta que a época não seja a sua época, para todo o sempre.
Há assuntos, como os casamentos de homossexuais, sem época propícia à discussão dada a quantidade, a qualidade e a gravidade dos outros problemas de sempre. O que é o mesmo que dizer que as pessoas que o protagonizam não existem ou que, existindo, são um problema artificial a desviar a atenção dos políticos do fundamental para o acessório. O fundamental é coisa que ninguém conhece mas pronto a aparecer, sempre que preciso for.
E lamentamos todos que as agendas sejam contaminadas pela excessiva divulgação dos casos capazes de mobilizar espectadores, ouvintes ou leitores. Lamentamos,... enquanto tratamos os problemas por tu, os classificamos e, com a maior serenidade e urgência que a vida exige, os resolvemos. Não é boa política, na base de uma qualquer lista de prioridades, esconder problemas e pessoas sob o tapete que amortece o sapateado dos especialistas em passos perdidos.
Como não é razoável que se amplifique, em importância política, a denúncia de um jornal diário, sobre "escutas". Tanto mais que, passado algum tempo, a montanha de audiências e declarações dos políticos pariu um rato digno desse nome e perseguido por supostas secretas socráticas pouco secretas ou controle governamental sobre a "ordenação" dos processos-crime a conduzir. Escuta quem tem as orelhas a arder das escutas.
Da agenda dos anjos alados não consta qualquer debate sobre o sexo dos anjos ou sobre a hierarquia dos assuntos. Com suas plumas caprichosas, os anjos da época desenham uma forma de lei onde cabem todos, livres e iguais. Porque os anjos não emprenham pelos ouvidos. E eu também não.

[o aveiro; 09/02/2006]

pesa-espiritos

UM.

para que te levantas? a tua mãe sussura
na sua voz velada de almas penadas que bocejam
nas noites mais doentias como nascentes
de rios do pânico em que dás por ela penando

dás por ela? não te perguntava a tua mãe
outra coisa enquanto a casa ruía sob a chuva
e tu vestias uma cara de fazer caso, uma cara
de meter medo, de meter o medo no buraco da noite
onde dás por ela ao dar pelo bafo da besta adormecida
aos teus pés

se reparares bem são os teus pés fincados na lama
quem te segura enquanto vigias a fala da tua mãe
o funil da loucura mais divertida dás por ela espelhada
nos seus olhos marotos quase cerrados.

para que te levantas? há tanto tempo não sais de casa,
do buraco onde vives amarrado ao bloco de notas
raptado pelas almas que voam em volta das palavras
que já disseste e ninguém ouviu.

DOIS.

há sempre quem jure que me viu na rua
ou que sabe que passo o dia numa escola pública
onde supostamente dou aulas

não sou capaz de desmentir quem está pronto a jurar
citando mesmo o que eu disse em tal dia e a condizer
com a roupa que trazia vestida para a ocasião

nem eu mesmo sei porque é que as pessoas dão por mim
se é certo que não vou a lugar algum fora daqui
vai para muitos anos de falsas partidas.

TRÊS.

para que te levantas tu? se nem os olhos consegues abrir,
se as tuas noites foram pisadas por toneladas de dias sem lua,
se os teus dias dão abrigo a almas sem abrigo e torturadas,
se nem sabes sequer das tuas pernas ou como pesar-te

porque te esqueceste dos protocolos de alquimista
que foste num passado em que usavas pesa-espíritos
com a desenvoltura da tua imprudência.

Onde o que parece é  

Concentro-me no meu papel. Preparo cuidadosamente uma aula sobre cálculo de limites. Sem papel, escrevo no ar um exemplo construído para abrir um debate com solução à vista. Sei que, amanhã, mesmo sem pensar nisso, cada estudante vai procurar, na sua arrumação de utensílios recentes, os que sabe usar. vai testar cada um deles até encontrar a chave que abre a porta do problema que dá para a solução. Embora se trate de um cálculo, o limite exige mais que uma operação vulgar, mobiliza conhecimentos que sempre andaram por aí e convergem para este novo cálculo de síntese.Calcular limites é lidar com o infinito, com o infinitamente grande e com o infinitamente pequeno e é, por isso, arranhar a linha do horizonte.

Olho para os estudantes a manejar com naturalidade, aparente negligência ou à vontade, ferramentas que eu reconheço como fim de linha de uma produção humana de milhares de anos. Olhar para eles, olhando para mim. E ver, sem ver, uma aula em toda a sua pequenez cercada por quatro paredes de dúvidas e em toda a infinita grandeza do espírito humano sem fronteiras.

Vivem-se momentos de puro espanto quando tomamos consciência da infinita potência destes infinitamente pequenos acontecimentos. E deixo então que me assalte uma arrogância irracional, um desprezo irracional pelas pequenas coisas, pelo que está fora desta deambulação espiritual de funâmbulo na corda da matemática humana, exclusivamente humana.

E quase esqueço os discursos que são para as ocasiões, para serem soletrados em cada um dos nadas que é preciso sublinhar para sublimar o vazio que aflige as maiorias, para mascarar de decência a falta de pudor.

Nesta paragem do tempo no infinito da sala de aula, nada nem ninguém me pode negar o momento da paz, da harmonia com um pequeno mundo de olhares humanos em harmonia completa e comprometida, mesmo que inconsciente, com este presente do mundo passado. E em harmonia com o futuro que vive da fé infinitamente grande nos homens e nas mulheres em busca, em mudança, em metamorfose.

Nada vale a pena se isto não valer a pena! Uma aula de limites, de infinitamente pequenos pormenores, pode ser o acontecimento mais importante de que vale a pena deixar testemunho, como prova de vida, numa semana como esta.


[o aveiro; 2/2/2006]

Senhores do seu nariz




São gémeos? Não sei. Só sei que usam o mesmo nariz.

41 assaltos



Um dia,
no Parlamento,
um professor de Finanças de duas Universidades
que ganha como primeiro ministro,
declarou,
a propósito de um aumento de salários dos professores,
que tinha vergonha de ser professor.

De todas as declarações do primeiro ministro
considero ser aquela
a mais séria e verdadeira.



Escrito ao tempo dos meus quarenta e um ou dois anos. Não sei que escrever agora em homenagem ao multireformado de banco de portugal, universidade, primeiro, etc e presidente. Nem isso interessa.

elegância da pequenez

Há crianças tão leves que ao tropeçar nas borboletas
ficam a pairar no ar e, por longos momentos, antes de cair
sentem que a realidade se imobiliza e sustém a respiração.

E há mulheres tão finas que passam entre os pingos de chuva.
Como juncos, abrem asas aos braços do vento e voam. Entristecem
ao perder de vista as fitas dos chapéus que pesam para o chão.

Pela Constituição, ... votar! Votar!

A tendência para o aumento das desigualdades entre ricos e pobres está a aumentar em todo o mundo. Portugal é de todos os países da comunidade europeia aquele em que são maiores as desigualdades de rendimentos entre os ricos e os pobres e não cessam de aumentar. Não é só o abismo entre ricos e pobres que cresce e nos diz que estamos a andar para trás relativamente à Europa em que nos integramos: temos a pior (a maior!) taxa de abandono escolar e o maior índice europeu de pobreza persistente. Cerca de dois milhões de portugueses vivem com menos de 350 euros por mês.

Estamos a chegar aos 500 mil desempregados. Há empresas a perder a face humana e a não olhar a meios para maximizar o lucro. Sem pingo de vergonha, empresas descaradas recebem subsídios do Estado em troca da promessa de criar empregos e, logo que cheiram melhores condições de exploração noutro lugar do mundo, abandonam a uma sorte madrasta os que acrescentaram riqueza à riqueza das empresas. Falências fraudulentas, faltas de pagamento das prestações devidas à segurança social, etc.

Quem não se sente mal?

A respeito destes problemas e da preservação do património ou dos serviços essenciais, os governos de Portugal têm vindo a abrandar as políticas sociais correctoras e a acelerar as privatizações e as medidas liberais, fazendo do Estado uma empresa medrosa de fretes ao grande capital financeiro, com o argumento de ser preciso criar condições favoráveis ao capital ?empreendedor?. E tudo isto é feito por governos do PS, do PSD e PP. E ao arrepio da Constituição da República Portuguesa.

De que Presidente precisa Portugal? Basta-nos ter como Presidente um homem sério, solidário e competente. Afinal, o que esperamos é pouco e é tudo: queremos um Presidente que defenda a Constituição da República, à luz da qual é eleito e a qual vai jurar defender. Olhamos para os candidatos e seus apoiantes e sabemos quais jurarão falso se chegarem a jurar defender a Constituição.

Cavaco é um daqueles que faz juras de amor á Constituição enquanto sonha apoiar todas as cirurgias plásticas que lhe mudem a face. Ele é um daqueles economistas que entende que as pessoas de hoje não existem e que o desemprego de hoje, os baixos salários ou a flexibilização dos horáríos são condições necessárias ao desenvolvimento a prometer empregos ao futuro na reparação das ruínas do presente.

O que é preciso é votar pela Constituição contra Cavaco! O que é preciso é votar Louçã pela Constituição, suas garantias e tudo o que de bom lá vive em palavras. Para nos sentirmos bem.

[o aveiro; 19/01/2006]


Nota: Este texto não foi publicado. Em sua substituição, a (direcção ou a) redacção de O AVEIRO publicou um texto de Daniel Oliveira (também do Bloco de Esquerda e que escreve para o Expresso), que não versa as presidenciais, mas a cultura e o seu ministério... Fico à espera. De quê?
Quem não se sente mal?

o dia seguinte

1
se eu pudesse passar-me para amanhã
e já não chegasse lá nem eu nem a dor
de existir hoje nem de noite nem o dia

ai francamente! porque não me passaria?

2
tá! não posso passar-me para amanhã
e estou aqui pensando o mesmo ontem
que foi igual ao que é hoje e para onde

olho vendo o tapete que ontem esconde

3
tá bem! sempre confesso que uma boa parte
passa para o dia seguinte com manha e arte
nessa esperança de ver cortado o que quero

como dúvida e não sei fazer a ser sincero!

4
eu queria era voltar a queimar as horas como
quem queima as pestanas assim me diziam
as velhas que justificavam as horas de cordel:

romance meio lido com olhos de pisa-papel

4
e sai daí que o teu tempo acabou dá o livro
a outro a quem não deste o litro que bebeste
como se fosse verdade que o que fazes e dizes

te elege presidente do portugal dos infelizes.

contra-reforma! conta-reforma?

Um dia destes, vi uma mulher a caminhar pelo meio do rio. Espantado, dei por mim a chamar por ela, da minha margem esquerda. Ela acenava-me e continuava o seu caminho como se o rio fosse uma rua segura.

Um dia destes, o ministro das finanças disse que a segurança social está falida. Uma ameaça atómica - dizem - esta da falência do estado social para que todos nós aceitemos novas restrições, novos apertos. Disseram-me para viver sem dormir ou vivendo um pesadelo futuro. Um dia destes, os candidatos a presidente da república que apoiam as posições dos governos ps/psd/pp face à segurança social fizeram-se ouvir a dizer que não há problema e se houver vai ser resolvido. Cavaco Silva, para nos sossegar, até nos diz que já é reformado e não teme pelo futuro da sua reforma. Soares não falou da sua reforma, mas parece-me sossegado. Manuel Alegre também me parece sossegado e alegre. Mandam-me dormir descansado e garantem-me um bom sonho.

Perguntei à mulher que toma o rio pela rua se esta bomba atómica da segurança social tem alguma coisa a ver com as novidades atómicas do médio oriente dos últimos dias: pacíficas armas nucleares israelitas e aterradoras garantias do governo iraniano de que retoma os programas nucleares para fins pacíficos. Ela encolheu os ombros de funâmbula enfadada.

Cansado destas coisas atómicas que são sonhos e são pesadelos, preparo-me para acordar. A mulher que pesca espíritos no meio do rio explica-me pacientemente que as bombas atómicas já não são o que foram e muito menos o são em tempo de campanha presidencial. Perguntei à mulher o que vão fazer os velhos presidentes reformados depois de serem eleitos sobre estas preocupações atómicas de que hoje se fala. Ela disse-me:

Amanhã esqueceram-se de hoje. O que eles sabem é que a indústria nuclear, ainda que com bomba, é boa se for a nossa. E que não há problemas com as reformas ... dos políticos reformados que nem das reformas precisam. Falarão das reformas ... da segurança social, com as intenções do costume.

Por ter dito a verdade, a mulher afundou-se na fantasia. Eu acordei afogado em suor.

[o aveiro; 12/01/2006]

água na água

um dia poderás falar com exaltação
do amor sem sombra e sem mágoa

e dirás para quem ouvir o teu coração
que te sentiste a água que cai na água

a meia rasa

Só não fui para padre, porque era muito pequeno e seria motivo de risota em qualquer paróquia quando tivesse de pegar na minha meia rasa para chegar ao altar. A meia rasa era uma caixa rectangular que servia para medir cereais e, no meu caso, podia servir-me de degrau para o trabalho no altar ou para que, a ser pregador, fosse visto por cima da balaustrada do púlpito.

Uma meia rasa supriria a minha dificuldade de baixote. Ninguém punha em causa que a criança tímida pudesse aprender a essência da doutrina da igreja para a recitar ao povo dos fiéis ou até argumentar para alumiar alguma comunidade cristã com a chama da fé que me sobrava, ao que me lembro.

Embora os rapazes da minha aldeia (que me lembro de ver partir para estudar as segundas letras) tivessem ido para o seminário, eu não saí da aldeia por essa rua estreita. Nem pela outra que era vir para o sal finda a terceira classe ou, passados uns anos no sol a sol do campo, para a distância das Amercas ou dos Brasis para onde perdêramos de vista o meu pai e outros homens com valia para vingar longe da nossa miséria.

Alguém me empurrou para fora do berço e da aldeia, caí em escolas várias em busca da verdade. Nunca me fez falta a meia rasa para erguer a voz quando comecei a cantar. E aprendendo a ver, ouvir e ler dei por mim a vacilar. Mudei as vezes necessárias para continuar no essencial o mesmo. Gritei e argumentei uma boa parte da minha vida. Fracas armas as palavras nuas de quem não pode oferecer mais que a esperança da justiça e a luta pela liberdade. A democracia vale a pena como o mais rico regime em diversidade de ideias, como construção complexa. Chegámos a pensar que as nossas ideias não valiam. Mas, gloriosamente, renascíamos sempre que nos ouvíamos a falar por cima do silêncio opressivo de quem nos calava e se calava. Mais gloriosamente ainda renascemos quando resistimos à tentação da censura, à tentação da pressa.

A maioria absoluta na Câmara e na Assembleia explica pouco, torna-se rápida e obtém, por via dos votos, a aprovação das suas propostas. Com decoro, a maioria ouve os mínimos da oposição. Feito de regras, formalidades e pouco mais, o debate torna-se pobre e insuficiente. A maioria fez-se surda depois de se ter mostrado pouco menos que muda. Falta-lhe mais que meia rasa para oficiar no altar da democracia.

[o aveiro; 5/01/2005]

a ternura



o fim do ano aproximava-se e os quatro idosos davam
uma volta ao estádio municipal; na praça deserta
a passada, a conversa e as sombras lentas vão à frente

há melhor festa? quatro amigos
tanto tropeçam em pedras,
nas próprias sombras,
como na ternura.

puxam de uma gargalhada
e disparam contra a noite
até fazer dela a alvorada
do ano, manhã de amanhã.

a pele que se despe

1
tantos dias uma mágoa, uma vaga dor sempre presente
clama por ti de quem a memória lembra um bater de asas
de tantos dias numa mágoa, um oco guardado e tu ausente
em viagem feita adeus de ave migrante

quando voltas nem vens sozinha nem vestes túnica de fogo
que aqueça a noite e a lua espelhadas na gelada água
da talha que é meu corpo tolhido em tantos dias desta mágoa
de frio deserto de falha entre tu e eu de mim

2
morreremos separados sem que saibas o nome
desta mágoa, da falta de ar que é a tua ausência sufocante
e ainda menos lembres as marcas nas cartas do nosso jogo

3
desisto de um momento teu e em vez do instante que consome
animo as tuas asas de vidro e, sem olhar a memórias, chamo o fim,
esse fiel animal de sombra sempre pronto a disparar
e a ir comigo de qualquer um para outro lugar.

32KB