S. D.


Não deixo que mais ninguém dispute estas lágrimas
Sei que morreste mas não reconheço a tua morte
Para mim não caíste nem foste para o hospital
Apenas flutuas a meio das escadas como num sonho

São apenas minhas estas silenciosas lágrimas
Que o meu inglês não traduz nem consegue traduzir
Fico com os discos e fotocopio os teus poemas
Para serem discutidos na aula e é tudo

É uma liturgia muito banal mas é minha
Não tenho outra maneira de te dizer adeus
Agora que enches de música outros territórios
Agora que alimentas uma grande saudade.



[J. Carmo Francisco; Iniciais. 1980]

o milagre de antón fernán

Antón Fernán vem a Portugal duas vezes por ano. O resto dos dias passa-os por cá, mas é como se cá não morasse. Nos celebrados momentos da visita de Antón Fernán ao nosso país, ouvimos uma frase de circunstância que ele prepara antecipadamente para ser comida como entrada. Embora possamos jurar que ouvimos as palavras de Antón Fernán, a verdade é que elas nunca foram ditas. Não por serem impronunciáveis ou indizíveis, mas por serem inaudíveis acima do silêncio sobre a visita de Antón Fernán, infinitamente mais sossegada que a visita de qualquer outro português que dê à costa.
Também é verdade que ninguém sabe muito sobre a nacionalidade de Antón e há mesmo alguma confusão a respeito da atribuição desta ou daquela nacionalidade a um cidadão da Península Ibérica. Se há quem diga que ele é catalão, outros dizem que descende de um vilão fenício dado à costa durante uma viagem marítima efectuada entre os dois pólos que, por culpa dos achatamentos polares, ficou menos celebrada que o extraordinário cruzeiro de Fernán de Magalhães, essa outra celebridade entre os ibero-mundanos.
Há mesmo quem insista que Antón é galego, talvez mesmo português. Quem tal pensa, não sabe explicar porquê. Muitos pormenores de todos os dias aumentam para o dobro a dificuldade em aceitá-lo como português. Numa das suas últimas visitas a Portugal, país de onde raramente saiu, hesitámos em propor-lhe que aceitasse a nacionalidade portuguesa honorária. A hesitação acabou por vencer e salvámo-nos da vergonha de o ver sujeito a responder sobre a linha sucessória dos vice-reis da Índia e dos cognomes atribuídos aos infantes da nossa sétima dinastia constitucional e à vergonha de não conhecer os nomes de família dos heróis que, no regresso das batalhas entre os teutões, muito justamente se batem pela isenção do imposto sobre os prémios, condecorações e lucros da venda de bandeiras.
Para cada trabalho de verificação patriótica, havia um juíz a preparar-se para o pior e para o melhor. Conta-se mesmo à boca pequena que havia quem estivesse a decorar os versos da septuagésima estrofe da Portuguesa para atirar à cara de Antón Fernán, quando ele, reconhecendo humildemente a falta dos saberes requeridos, se dissesse pronto a recitar a tabuada, uma estrofe d'Os Lusíadas ou d'Os 12 de Inglaterra.
E nem um pontapé? Inaceitável! - disseram-lhe. Na gramática? Posso tentar? - perguntou ele.

[o aveiro;13/07/2006]

desenharam, logo existe



os estudantes desenham e eu não me canso de lembrar como desenham bem.
© Escola José Estêvão

desenho, logo existo.


todos os dias

abro a caixa de correio
e dói tanto
não encontrar as tuas linhas

das mãos que ninguém sabe quanto
as quero minhas

mas está bem assim que já receio

encontrar o meu desejo
despedido com um bocejo

ou pior ainda... com um beijo

a pegada

14

O buraco destrói-se             é branco
ou sal

Nos joelhos da rua me aconchego
Esqueço-me e digo: a pele é um vestido
macio manhã cedo


Maria Alberta Menéres; A pegada do yeti

as portas da solidão

se desisto, as emoções saem comigo pela porta
que dá para a noite de um abismo... aberto para o lugar oco

com asas roubadas, as minhas!, tu voas para longe
dentro de mim, por mim adentro

sei que sou eu o que parti sem olhar-te no vidro:
a ausência ao espelho que já nem magoa por não haver volta a dar

um pouco mais de azul

1. Temos o direito de comentar todas as decisões e comportamentos das figuras públicas, mais ainda quando as suas acções influenciam directamente a vida colectiva. Não achei descabidos os comentários sobre actos de Freitas do Amaral enquanto Ministro dos Negócios Estrangeiros. Nem achei desproporcionadas as reprovações feitas em alguns momentos e os pedidos de remodelação ministerial a partir de algumas declarações do Ministro ou deste ou daquele acto.

Mas não posso concordar com a exploração que foi feita sobre a figura de Freitas do Amaral quando foi consumada a sua substituição objectivamente por razões de saúde. Acrescentar desnecessariamente cansaços políticos ao cansaço físico ao momento da exoneração, para além de rumores, é baixa política a roçar a baixa vingança sobre a diferença de opinião. Temos de reconhecer que, a partir do momento em que é clara a doença e se consuma a substituição, as fotografias da debilidade e os comentários oportunistas servem para diminuir os jornais que aceitam brincar sobre a glória dos vencidos... pela doença. Para mostrar força e estabilidade do governo e apesar da doença de Freitas do Amaral, Sócrates insistiu em mantê-lo como Ministro? Se isso tiver acontecido, Sócrates merece as mais duras críticas, como merecem as mais duras críticas todos aqueles que insistem em aproveitar estes acontecimentos para vender papel e alma.


2. Descalcei os sapatos do inverno para olhar e escutar o vaivém das ondas uma a uma, uma depois de outra depois de outra. O verão aparece-me como uma borda que separa a luz da sombra, o calor do frio, a areia da água,... Muitas vezes dou por mim a pensar que o verão me aparece de noite. Imagino-me a descalçar os sapatos do inverno numa noite escura e estrelada, Ainda sinto por dentro dos pés a água gelada, mas sinto que passei para o meu verão. Nada disto me acontece. Nada disto me acontece, mas falo disto como se pudesse ter acontecido.

Posso fazer a passagem de uma estação para outra em S. Jacinto, onde a bandeira azul se agita. Damos a cara à brisa salgada e, à queda da estrela cadente, acrescentamos um desejo à boa sorte que a bandeira azul é. Que a bandeira azul não apague as estrelas que precisam da escuridão para se acenderem lá no alto. Se perdermos a visão dos luzeiros no céu, o que nos resta?

[o aveiro; 6/7/2006]

inveja da crítica

Quando comecei a escrever aquele conto que podia ser uma novela e acabou romance entre mim e a dactilógrafa que batia na sua velha máquina, letra a letra, as letras das palavras que eu ditava, disse para mim que mais valia ler antes a crítica que do meu livro fariam. E assim fiz. Peguei em dois maços de jornais que estavam para sair daí a alguns meses e pus-me a ler as críticas. Fiquei mais ou menos assarapantado ao constatar que nenhuma das dezenas de recensões críticas, publicadas na época, se referia ao meu livro. Telefonei a um amigo que andava pelos corredores das redacções a perguntar-lhe o que se passava, se ele não tinha ouvido falar do livro que eu estava prestes a concluir muito a tempo de merecer um comentário crítico antecipado. Ele disse-me que sim, que tinha sabido, mas que não lhe viera à memória e tinha escrito sobre o anunciado livro do conselheiro. Disse-lhe que ia esperar mais uns meses para ler alguma coisa que ele quisesse escrever a respeito do que pensa que eu estou a escrever. Ele disse-me que podia fazer a referência de favor, até porque me tinha em grande consideração e a tudo o que eu nem pensava. Agradeci-lhe e desliguei. Despedi a dactilógrafa a quem me tinha afeiçoado e comprei uma máquina eléctrica que podia ajudar nas lides da casa. E adormeci. Tinha uns meses para descansar sobre as ideias que pululavam entre a minha cabeça e a chocadeira eléctrica.

Lembro-me de ter ouvido, no sonho, a voz de um antigo primeiro ministro, em lugar mais elevado agora, a tecer considerações sobre acções do seu antigo governo, do que devia ter sido feito e ainda estávamos a tempo de não fazer, para o bem de todos nós. Mas o melhor de tudo, foi quando ao falar de uma cimeira ainda fresca, o comissário disse que, mais voo menos guantanamo, tinha aprofundado alguns problemas com o seu colega de cimeiras passadas, presentes e futuras. Esquecidas as babas do jornalista, assessor não tarda, dei comigo pasmado! O comissário reconhecera finalmente a verdade: ele aprofunda problemas.

Com a realidade a portar-se assim, nem me cansei a ver o que os jornais escreveram sobre o meu romance quando chegou a hora de não escrever. Ouvi o grito do povo: Golo! E da minha mãe: Menos um pinto!


[o aveiro; 29/06/2006]

entrelinhas



umas vezes escrevo notas fabricando as linhas e
mais tarde se passo outra vez pelo mesmo tempo
escrevo entrelinhas

e se ainda tiver as folhas perto de mim
e elas forem tristes e descoradas como eu
penduro-as para que se bronzeiem ao sol

os santos da casa

a missa por alma da tia mais viva e mais robusta
foi prevista há muitos anos para ser rezada

ao sétimo dia da sua morte ou em dia de finados
caso ela não morresse a tempo de ser lembrada

hoje é muito difícil garantir a missa em exclusivo
pela alma de alguém que parte sem avisar com antecedência
que é o que acontece com mais frequência

pesadelo

uma tia afastada
à medida que de mim
se ia afastando
deixava uma ladaínha vaga como rasto

já a vaca sagrada
sem medida, objectivo ou outro fim
que não fosse ir pastando
o meu caminho fazia desaparecer por ser o seu pasto

quando acordei
alagado em suor
descobri que a vaca com que sonhei
me limpava com mais língua que amor

ponho-me a pensar

Alternam nos governos e demais poderes - públicos e privados - os dois partidos ps com e sem d. Quando vejo nascer um ministro, nunca tendo visto, ouvido ou lido qualquer intervenção do dito sobre os assuntos que vai governar, ponho-me a pensar que é o partido que vai governar. E fico à espera de um fio condutor qualquer que dê consistência e seriedade à política. Quando isso não acontece, ponho-me a pensar que o partido recusou a política anteriormente seguida e procuro o balanço e a crítica para encontrar as razões e compreender a mudança. Mas algumas vezes fico perplexo quando não encontro nem o antes nem o depois do ministro. Como se não houvesse responsáveis e não houvesse partidos de governo. Menos ainda se compreende se pensarmos que os partidos que disputam o governo usam a disciplina de voto contra o voto em consciência em questões de governo.... Ponho-me a pensar.

o exame




lugares comuns

Repito alguns lugares comuns. Quem diria que o que eu escrevo hoje é um lugar comum?
Escrevo sobre lugares comuns impróprios para consumo de quem tem uma pátria no goto e por ela deita lágrimas como qualquer crocodilo em ânsias de a comer.

Eles dizem que quem não vai em futebóis não é bom pai de família e nem é patriótico, porque a afirmação da cidade é a afirmação do clube de futebol, a afirmação do país é a vitória europeia de um clube de profissionais de futebol ou as vitórias das nossas selecções de futebolistas profissionais que já são tudo menos selecções nacionais, qualquer que seja o ângulo por que as veja. Dizem-me que sou o lugar comum das frases feitas que recusam o espectáculo da actualidade da pátria que se cumpre a pontapé.
Já escrevi as mesmas tolices quando a pátria decidiu que as grandes obras do regime eram estádios de futebol onde coubessem todos. Quantos? Então? Vamos lá cambada, todos à molhada.

Eles dizem que não é patriota quem não dá o devido valor ao dinheiro que entra na pátria e entra em bolsos dos filhos da pátria. Para muita gente, o que é preciso é haver dinheiro a circular. Até pode ser que pingue algum para lado de cada um. Com o novo quadro comunitário de apoio, Portugal prepara-se para receber, nos próximos seis anos, cerca de 20 mil milhões de euros em fundos comunitários. Há quem saia à rua de arquinho e balão a cantar louvores aos negociadores. Recebemos muito dinheiro. Viva. Só que isso significa o reconhecimento pelos restantes países da união do nosso subdesenvolvimento relativo e significa que os milhões que entraram no país não foram utilizados para o desenvolvimento. Dizia o poeta que Portugal é a face com que a Europa olha para ocidente e para o longe, mas todos reconhecem que a incompetência na gestão dos fundos pelos políticos e gestores portugueses fez de Portugal a cauda da Europa. E onde estão os grandes responsáveis pelas políticas seguidas?

Sabemos que eles estão onde sempre estiveram, que não assumiram os desastres nem fizeram propósito firme de emenda. Por isso, tememos que seja uma euforia de patos bravos e afins a tomar conta do dinheiro. Já conseguiram conduzir-nos até à cauda do tal "pelotão da frente". Em 2013, quantos à nossa frente? (Menos no futebol, dirão, com a glória pela mão.)

Eu quero estar enganado. Mas eles habituaram-se a ganhar nas negociações e nos negócios. E vão desenganar-me, não é? E eu não saio dos meus lugares comuns.

[o aveiro; 22/06/2006]

escalada

há quem não te leve a sério: ao avental sujo
limpaste as mãos e o farelo agora seco colado
como reboco ou casca grossa descasca-se
ainda uma pevide se vê, sobressai entre os fios de cor
de rosa da abóbora menina da lavagem aos porcos

não sabem eles que o teu jeito vem do convívio
com os porcos que te deram a conhecer as vantagens
evidentes que os humanos e os porcos têm
sobre todos os outros animais por serem porcos
e omnívoros mesmo em tempo de paz e de fartura

eles não podem compreender que tenhas chegado
aonde chegaste e perguntam-se que raio de linha
tomaste para lá chegar e não vais ser tu a dizer-lhes
que mandaste fechar o ramal mal passaste para o lado
de cá onde refocilam ministros como tu

caras de cu.

nem podes dizer

nem podes dizer que a tua vitória
é a minha derrota
porque hás-de ser tu a limpar-me o pó
e a chorar comigo a minha dor ao perder-


-te.

a minha mãe lia as cartas

a minha mãe lia as cartas do meu pai
e gostava de nos ler uma passagem:
para o ano que vem a família inteira vai
a fátima a pé mal eu chegue de viagem



quando se zangava a minha mãe dizia
até a nossa senhora o desgraçado mente!
mas tu vais olá se vais até de rastos vais à cova d'iria,
em nome do pai, do filho e de toda a gente

nem posso dizer

nem posso dizer que a minha vitória
é a tua derrota
porque hei-de ser eu a limpar-te o pó
e a chorar contigo a tua dor ao perder-


-me.

salve-se quem puder!



o meio docente

exactamente
ao meio,
aproximadamente
a meio

As paredes lavadas

A chuva veio e lavou o ar. Gosto de dar a face ao ar lavado da manhã enquanto caminho entre alas de notícias armadas até aos dentes.

Procuro o lado da paz em Timor Leste e procuro distinguir algum lado da disputa que dispense as tribulações da gente. Procuro desesperadamente um lugar onde uma verdade mesmo que desinteressante paire. Sei bem que a paz não se encontra seguindo as pegadas dos interesses dos deuses, porque o seu descanso é o desassossego dos homens de fé. Sei bem como é difícil esperar por sinais, porque os sinais estão todos misturados e há quem agite os seus fantasmas e os misture aos sinais do outro mundo. Chegam-nos de novo imagens de homens que afiam catanas ociosas em campos de batalha adiada. Se me fosse dado ver as catanas que desbravam caminhos nas matas para semear, plantar e colher as novidades estaria a ver os campos da paz.

Procuro o lado da paz na Palestina e procuro distinguir algum lugar na disputa que dispense as tribulações da gente. Que dispense as humilhações, as aflições, a morte, o desamparo que é a eternidade feita em pó por conflitos sem fim. Sei bem que a paz não se encontra seguindo as pegadas dos interesses dos deuses, porque o seu descanso é o desassossego dos homens de fé. Onde a falta de tudo se respira no pó que se vê em vez do ar, vimos as metralhadoras a tricotar os dias e as noites e a destruição de edifícios a sangrar o tempo. De onde vem o cimento que nos arranha a garganta? De que nadas se fazem milhares de balas?

Procuro o lado da paz. Vasculho os caixotes de lixo atómico em Israel, Irão, Paquistão, .... Vasculho os lugares das pilhagens no Iraque ou no Afeganistão, para levantar, até à altura dos olhos da humanidade, fantasmas da nossa comum civilização que se soltem do seu passado e amaldiçoem a estupidez humana. E, em vez disso, há professores engravatados a explicar-me a inevitabilidade de um jogo de guerra em que a estupidez vence como mal menor. Está na moda, como gravata. o nó corredio da forca.

Procuro afincadamente um lugar livre. Chegam-me pequenos farrapos da guerra e da paz, como se nem existissem num dilema de hoje. Porque o dia inteiro é dedicado ao outro mundo, ... e à nossa pátria de olhos perdidos em outra pátria... expatriada para a Alemanha.

As notícias ganham pernas. Há quem diga que um pontapé certeiro pode parar o mundo. Em volta da terra parada, o abismo engole-nos a todos.

[o aveiro; 15/06/2006]

quanto mais olho

de olho em ti

olho para ti
olho por ti
olho em redor

olho por olho

quanto mais olho menos vejo.


escolhos
trambolhos
repolhos
aos molhos

quanto mais olhos menos

azul




em roma, somos romanos?

o cálice de calma

Dos últimos dias recordo sucessivas bebedeiras de chá. Para esquecer os dias demasiado claros. Para sobreviver à molenguice dos jovens que se encostam mais às paredes que à vida e ao trabalho. Contra as dores nas costas, nas cruzes.

Quando saio de casa, fico mergulhado numa amargura quente. Posso andar de um lado para o outro, saindo de uma rua para entrar noutra, com a sensação de passear por corredores de um forno onde estou a arder lenta, mas seguramente. Só os corredores da escola me refrescam a alma. Se me sentar? Não me sento pelo sim e pelo não.

Para esquecer os dias demasiado claros, fecho-me descendo todas as persianas da casa e fingindo, sempre que possível, que cá dentro o dia não é vida e que a noite não tardará a substituir a tarde. Tento trabalhar de pé, tento escrever de pé com o computador elevado sobre um cavalete.

O pior disto tudo é que as folhas rabiscadas por dezenas de estudantes esperam dedos ágeis e laboriosos que cumpram as ordens de uma cabeça que veja as dores pelas costas. Parece que acontece o menos provável ou que não acontece e é a cabeça doente quem inventa tudo. Logo agora que nem tempo há, dores nas costas?

O mais entusiasmante ainda foi o fisioterapeuta que, na manhã de segunda, soltou expressões de júbilo quando eu obedeci, sem saber como, a alguma das suas ordens com um movimento de um milímetro que existiu sem que dele eu tomasse conhecimento. Ali se fazem perguntas sem resposta à vista, porque não sabemos bem se é dor ou outra coisa o que sentimos Naquele mundo, cada movimento infinitesimal é saudado com expressões combativas como "bravo!". O que é verdade é que mal saí desse combate, ainda antes de chegar à escola procurava um novo analgésico pelo caminho, antes de voltar a assumir o meu ar mais empertigado e feliz.

Na terça de manhã, saudei cada pequeno esforço dos jovens estudantes espapaçados com expressões de entusiasmo típicas de um fisioterapeuta treinador e aceitei uma soma irritante de pequenas falhas de disciplina individual com uma surpreendente calma. Sem compreender tanta canseira que, pouco depois das oito da manhã, abranda os movimentos juvenis à entrada para a sala de aula. Terão dores nas costas? Nâo.

Sou eu que tenho as costas largas!



[o aveiro; 8/06/2006]

sábado, domingo e segunda...

... sem poder sentar-me por mais que uns momentos e, por obrigação, ficar sentado algumas horas de sábado e uma hora e meia na segunda
mergulham-me na maior vergonha:

por andar de pé e ninguém dar por isso;
por me ter vergado até ficar sentado, sem poder.


sem poder?
como sempre, sem poder.

são os doidos de aveiro que

Quem terá marcado para as
16 horas do próximo domingo
no AVEIRENSE
o espectáculo MAL VISTOS do FITEI
que é para maiores de 16 anos...

FITEI? AVEIRENSE?
O que é que acontece para que isto tenha acontecido?


são os doidos de aveiro
que nos fazem sentir mal

MAL VISTOS em Aveiro




Visões Úteis
XXIX FITEI - Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica
Mal vistos de Gemma Rodríguez -
Prémio Maria Teresa Léon 2002

Aveiro - 4 de Junho - 16 horas -Teatro Aveirense



"A globalização é claustrofóbica. A deslocalização não sai do mesmo sítio. O mundo é uma exclusão. A democracia é apertada. As empresas são sorvedouros. A vida é uma tristeza. Quem ler a peça de Gemma Rodriguez arrisca-se a isto mesmo: a encontrar personagens medíocres porque banais, situações absurdas porque verdadeiras, acontecimentos parados que são como são. É a vida, dizia um personagem de uma outra peça."
Francisco Louçã
in Prefácio à edição de Mal Vistos

O ministro ministra

Um cordão humano erguia-se como uma só voz para gritar contra a extrema-unção. Alguém tinha levantado a lebre acima da própria cabeça e todos, sem excepção, acreditaram que tinham visto uma lebre. Mais tarde, soube-se que o animal a que tinham chamado lebre não era mais que um boato posto a correr numa pista de corridas de galgas. O homem do boato falava para quem o queria ouvir que a visita do ministro às instalações do sistema educativo, há muito votadas ao abandono, se destinava a ouvir a confissão dos trabalhadores culpados e a ministrar-lhes uma extrema-unção como passaporte para o futuro sombrio. Soube-se muito mais tarde que não se tratava de um boato, mas de uma fuga de informação e que o homem usava a fuga a tiracolo, de uma maneira tal que não podia ser boato. A fuga, mais rápida que se fosse boato, estava a dar, aos apostadores, muito cacau para os dias frios que aí vinham. Os trabalhadores culpados, quais são? Um professor idoso, desmemoriado, garantia que não era culpado e queria saber se constava de alguma lista de culpados. O homem da fuga que em tempos tinha sido boato afiançou que de listas não sabia, mas que tinha ouvido falar de um rol de culposos. O velho virou-se para o homem da fuga na ponta da língua para lhe perguntar o que é isso de culposo. Ao que o língua de fuga, que sabe tudo e nunca sabe muito bem se assim é, respondeu que culposo e culpado são bem diferentes. Diferentes como? - insistia agora um auxiliar da acção educativa. Culpado é aquele que pratica uma falta e tem culpa no cartório. Já culposo é o que cometeu culpa ou revela culpa no cartório. Esta informação caiu como um pano encharcado na varanda do vizinho de baixo. Um pano encharcado nas trombas de um gerânio ofende qualquer vizinho e a um tal nível que, mesmo sendo de baixo, se irrita até subir pelas paredes. Já no andar de cima, onde estão os de nível mais elevado, eleva o tom de voz até os vidros partirem como partem os culpados e os culposos sem que lhes ministrem a extrema-unção que é para todos, tenham confessado ou não.

Uma mulher foi lendo. Chegou aqui de testa franzida por não perceber. E o que escreve sentiu-se na obrigação de escrever como último gesto de fuzilado: Bem se vê que não é professora ou não é portuguesa.

O presente? - ouviu-se a pergunta sumida. Ministro, ministras, ministra - respondeu um aluno surdo a todos os apelos à calma.


[o aveiro; 1/06/2006]

formas de olhar


deus passou por mim agarrado a uma bengala e eu
não saí do meu sofá para o ajudar a atravessar a rua

porque
se deus anda por aí a fazer de velho pelintra
é porque gosta de ser velho e pelintra
como eu sou mesmo que não goste

que ele pode ser tudo o que quiser e até o que não quiser
pode ser

formas de olhar




olhos. olhos do coração. olhos da mente. mais olhos que barriga.

desenharam, logo existem.




© Estudantes da Escola José Estêvão (11º D e E).

maio findo

um rio passava por mim

se me lembro de águas revoltas que corriam
é porque já não correm ou sou eu que as não vejo

e em vez da água corrente nas mãos
ouço um estampido uma chicotada no ar
à passagem do comboio fantasma

na alta ponte sobre a fenda do corgo.

os anos de chumbo em exame

1. Professor de uma escola secundária pública, da casa onde durmo até à escola onde vivo, quaisquer que sejam as ruas que tome para caminho, sinto-me acompanhado pelas persianas corridas das janelas das escolas concorrentes que se foram instalando nos apartamentos em volta das três escolas secundárias públicas. Escrevo concorrentes, porque cada uma delas tem em comum com alguma das escolas públicas (e comigo, claro!), os alunos, os programas de ensino e, finalmente, os resultados.
Nada me move contra a iniciativa privada em geral e, muito menos, contra a iniciativa que emprega jovens licenciados em ensino disto ou daquilo que não arranjam trabalho nas escolas públicas e privadas. E não tenho qualquer dúvida em afirmar que cada pai ou cada mãe (ou ambos) tem o direito de decidir que ajudas dar aos seus, quando e como. (E deve ou não haver restrições sobre a liberdade de ensino?)
Constatando que os alunos são os mesmos, tenho de reconhecer que os nossos resultados conjuntos são muito fracos. E isso é muito preocupante para mim. A ajuda que os pais e os encarregados de educação estão a dar às escolas públicas é um investimento com fraco retorno em geral, tanto quanto à matemática diz respeito.
2. De um modo geral, temos aceitado como verdadeiros os argumentos sobre o poder regulador dos exames. De facto, há dados que nos garantem que sem exame nacional não seriam abordados todos os temas dos programas nacionais na generalidade do território. Se é importante garantir o acesso de todos os jovens aos grandes temas, o exame é importante.
E é sobre as disciplinas sujeitas a exame nacional e de cujo aproveitamento depende o acesso a cursos muito procurados que se concentram os esforços dos jovens e das suas famílias. O esforço dos jovens aparece concentrado sobre estas disciplinas, mas ninguém parece ter razões para celebrar grandes êxitos sobre tanto trabalho. O poder dos exames é afinal pequeno e não se traduz em resultados muito relevantes, apesar de terem levado à mobilização real de muitos recursos e esforços, dentro e fora das escolas.
3. Nas escolas privadas, em que os pais atribuem à instituição um mandato exigente, aceite pelos jovens com elevadas expectativas de sucesso escolar, os resultados dos grupos de trabalho também não entusiasmam. Para grupos reduzidos de alunos com grande investimento em tempo de leccionação, apoio e acompanhamento do estudo, uma média de catorze é mau resultado. Pior ainda se atentarmos no que ouvimos aos responsáveis, pais, alunos e professores, que põem a tónica mais na preparação dos exames que no desenvolvimento de competências, em conhecimento e em cultura.
4. Em Portugal, a natureza das provas é de conhecimento público. Os programas dos exames são os programas nacionais das disciplinas, mas o tipo de questionamento é patente em provas de exame de anos passados e em momentos de transição é mesmo publicitado especificamente com exemplos de perguntas, aos quais se acrescentam respostas esperadas e até critérios a ser seguidos por professores correctores. Está claro que é reconhecido não haver qualquer surpresa no programa de exame face à floresta de indicações que não há quem denuncie como floresta de enganos.
5. Parece que surpresa só há uma: a dos maus resultados nos exames e mais nenhuma. E é falsa esta surpresa já que nos acompanha desde há muitos anos. Li textos das décadas de 40 e 50 do século passado, relativos ao ensino da elite durante o regime fascista, que podiam ser escritos sobre o presente no que aos erros e à má fortuna dos resultados se referem.
6. O que é que está a acontecer? Sendo uma falsa surpresa, tantas vezes repetida, já devia ter merecido uma atenção que, trocada por miúdos, se tivesse transformado em medidas de política que atendessem a uma multiplicidade de necessidades e se desenvolvessem por largos períodos, com uma perseverança tal que as adaptações, sempre necessárias, aparecessem como consistentes partes da política a seguir e não como acidentais marcas das mudanças de directores gerais, ministros ou governos.
7. Falta o exame das políticas? Não resolve. Chumbar governos da alternância também não resolve, como se tem visto. Então?

[a página da educação;Junho de 2006]

a lágrima que corre

A nascente do rio não é mais que um fio de água, uma lágrima.

[Se os dias passam por mim, eu fico para trás. Esforço-me por ser eu a passar pelos dias até que sejam eles a perseguir-me, domésticos dias de enfado. Ouço os meus dias, olhando para o passado. Complacente com o passado, responsável por ele e sem os "ai, se eu soubesse o que sei hoje...". Habituei-me a ser tudo o que fui e a não ser ex-isto, ex-benquisto, ex-malquisto,... Sou tudo o que fui, somado ao que sou. O futuro é a nascente de perguntas a que vou respondendo.]

Se posso não ter razão, que mal há em perdê-la? Só que os dias recentes não falaram da razão que há em fazer prevalecer a preservação do ambiente, tal como ele existe, sobre as estradas desbravadas pelo desenvolvimento. Achincalhar os "ambientalistas" todos pode retirar chão à minha razão, mas não belisca a razão. Dizem que quem tem sensibilidade apurada para as questões do ambiente se coloca fora do círculo virtuoso dos que querem o desenvolvimento necessário ao futuro de todos. É por ouvir o passado do futuro presente que nos asfixia que eu os vejo mais presos em círculo vicioso dos que entram na rotunda com saída para o abismo. Os dados disponíveis e as previsões científicas não servem para cautelas e caldos de galinha. A ciência que interessa ou a ciência dos interesses desenvolvimentistas é aquela que há-de fazer o milagre de resolver mais adiante os problemas que criamos ontem e hoje, desafiando limites. A sustentabilidade que defendem tem por base um desafio que já não é sustentável. Contra tanta sede de beber a água quase toda e misturar a que sobra ao pó de cimento, só nos resta defender o absurdo do marasmo.
Todos os desenvolvimentistas esperam uma aberta, uma pausa na defesa da fragilidade da nossa terra povoada por bichos, para nela fazer lugares de estacionamento e pequenos desfiles de automóveis entre estacionamentos humanos.

Sabemos que eles sabem que os problemas do ambiente não se vão resolver se abrirmos a estrada e edificarmos a casa que sobra contra a ria e... construirmos a central nuclear que sobra e sorve a água toda do rio que corre e... seca até que a foz seja um fio de água, uma lágrima.

[o aveiro; 25/05/2006]

AMSTERDAM

Eu sabia que os telejornais acompanhavam o assutno,
a par e passo, a cores ou a preto e branco mas não
tnha tempo para ver televisão nem para comprar jornais.

Corria de museu para museu, ingenuamente procurava
apanhar um retrato vivo da cidade, comprava batatas
fritas na rua para não perder tempo em restaurantes
e nunca me cansava.

À noite tinha jazz, com muito sumo de laranja, quase
sempre no ''Mistery Club'' até à meia noite e cinco,
pontualmente, para apanhar o último eléctrico com
destino a Amstel Station.

Quando cheguei e me perguntaram se tinha tido medo
dos terroristas fui obrigado a responder que não -
dos polícias, sim, tenho medo: São espantosamente
novos, louros, corpulentos e passeiam-se na rua
com a arrogância de quem se sabe impune.


Universário; José do Carmo Francisco

desenharam, logo existem.




© Estudantes da Escola José Estêvão (11º D e E).

hoje, de longe

hoje,
de longe
chegam cartas curiosas:
alguém pergunta se eu adormeci dentro da casca
ou se me escondi zangado.

[ninguém me escreve, confesso.]

e eu, como sempre sem saber o que responder,
viro-me para o lado contrário de mim
e adormeço de novo sem querer lembrar as tempestades
que inventei quando desafiava instante a instante
uma felicidade que nem era minha
para ser de ninguém
para não ser


e secar a pontada desta dor de não saber
se algum dia

desenharam, logo existem.




© Estudantes da Escola José Estêvão (11º D e E).

caracol




© AM

a corda que puxa os cordelinhos.

Olho para a corda receoso. Cada uma das minhas mãos prende uma ponta da corda. A corda prepara-se para me fazer saltar. Sei que vou saltar. Ainda que contrariado, sei que vou saltar. Ainda pensei em iludir a necessidade de saltar o desafio da corda caminhando sobre ela como um palhaço funâmbulo que se equilibra sobre uma corda pousada no chão. Mas desisti de mim assim e procurei coordenar o movimento dos braços com os pequenos saltos dos pés. Animo a corda para me animar. Sei que se me distrair, a corda interrompe o seu voo e eu transpareço na sombra das paredes como o saltimbanco desengonçado que perde as linhas com que se cose.

Olha para as sombras na parede. Podia ter previsto aquele movimento das pedras vivas em seu tabuleiro vital. Um peão que avança para proteger uma raínha e um cavalo que tropeça em seu trote e morre à passagem de um bispo com os olhos marejados de lágrimas minerais. Os países dividem-se em pequenos quadrados e nós quedamo-nos a ver os movimentos das peças de uns quadrados para outros. Podemos prever as escaladas da violência e nada podemos fazer porque vimos o jogo tal qual se nos apresenta instante a instante, sem sermos capazes de ver a mão que mexe os cordelinhos e movimenta as peças de xadrez. Se olhássemos para fora do tabuleiro, víamos como as mãos dos manipuladores abrem e fecham frentes de combate. Umas vezes, o mundo é um tabuleiro e há um jogo para ser jogado. Outras, é o teatro da guerra a ser representado por actores de segunda, às ordens de um encenador histérico como um macaco preso no seu próprio circo de feras.

A guerra que se trava pode parecer um ajuste de contas entre quadrilhas. E é sempre isso, mesmo quando ela quer parecer uma guerra da civilização contra a barbárie ou da barbárie contra a civilização. Nas guerras não há maneiras. Há as boas maneiras da guerra; terroristas, bandidos e senhores da guerra usam luvas, são bons pais de família e amigos dos seus amigos. Não sei se é o medo que nos distrai dos sinais. E decidimos ignorar um gesto e outro até que eles somam os nossos medos e bombardeiam os nossos sonhos de paz.

Distraídos, acabamos por saltar a corda. Distraídos, ignoramos os sinais. Somos apanhados distraídos. Pelas guerras iraquianas, pelas guerras brasileiras, pelas guerras da selva, pelas guerras... Muito tarde reconheceremos uma só guerra em todas as guerras.

[o aveiro; 18/05/2006]

desenharam, logo existem.




© Estudantes da Escola José Estêvão (11º D e E).

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