traseiras da fé

entrementes

a frente de abril

Não foi para isto que fizemos o 25 de Abril. Isto é o quê? O 25 de Abril foi feito para quê exactamente? Não pode ter sido para mais que restaurar as liberdades e a democracia representativa que foi feito o 25 de Abril. Do 25 de Abril sobrou mais do que isso? Errado ou certo, tudo o que veio depois é obra de portugueses livres, livres para a acção colectiva, livres para a eleição, livres para participar, livres para responsabilizar e fazer pagar os maus governantes pelos seus erros. Cada um de nós não se revê nos resultados, no que sobrou?

Atribuir a uma acção sublime de alguns e a um instante magnífico da história colectiva o mal feito por outros ao longo de gerações é tão disparatado e maldoso como pedir aos desempregados de hoje que aceitem a sua miséria em nome de um futuro radioso para os seus filhos. Eu posso adiar parte da minha felicidade de hoje em nome do futuro dos meus filhos. Mas há quem queria roubar-nos o presente em nome do futuro e esse futuro é sempre um presente envenenado pela nossa demissão. Há quem nos aponte o futuro, apontando a entrada do beco onde montaram um assalto.

Há quem fale repetidamente das conquistas de Abril. Alguém se lembrou de dizer que lutamos pelas conquistas de Abril e isso significa recusar cada mudança sem discutir se ela é alguma coisa para além de inevitável. Para logo na etapa seguinte, passar a gritar em defesa do que então existe sem lembrar que isso não é mais do que dissemos ontem que não aceitávamos por ser ser intolerável. De certo modo, a luta contra a mudança é a luta pela situação existente que é o que não queríamos anteriormente. De certo modo, é aceitar que a vida popular é uma sucessão de derrotas e um certo tipo de luta em democracia não é mais do que a animação montada por profissionais. Um novo fado português?

A liberdade e a democracia são conquistas de Abril. Se não for participada em todos os campos de actividade, que podemos esperar da democracia? Votamos para nos fazer representar. Não votamos para entregar a outros o poder nosso de cada dia. A democracia constrói-se. Do mesmo modo, precisamos de reconhecer as liberdades nos seus exercícios. O espírito do Abril português não faz contas à idade e desde de 1974 que nos pede que o honremos nas palavras e nos actos e em nenhum frete.

De frente para o nosso passado, olhemos para a frente.

[o aveiro; 26/04/2007]

a escola

Onde estás depois do 25 de Abril?

Ainda antes da revolução de Abril, já eu era um improvável professor de liceu.
O meu irmão mais novo já tinha morrido em Angola e o meu irmão mais velho já tinha emigrado para França, a salto. Um irmão do meio tinha partido para pé do pai, no Brasil, de onde nem irmão nem pai voltaram. Fui criado pela ti Francelina, minha mãe camponesa, e pela Armanda, minha irmã mais velha e, coisa rara nesse tempo da minha terra!, com estudos superiores.
Quis ser padre em menino e depois quis ser marinheiro, para seguir o exemplo do meu cunhado, mas acabei na Faculdade de Ciências a estudar Matemática. Comecei em Lisboa a dedicar-me a actividades associativas dos estudantes e vagamente políticas. Quando a família se mudou para o Porto, continuei estudante e militante, contra a guerra e a ditadura, no movimento estudantil até acabar o curso, casar e receber uma guia de marcha para professor do liceu de Vila Real, em Trás-os-Montes.

Ainda antes da revolução de Abril, já eu era um improvável militar de um exército em guerra.
Não podia entrar na escola da marinha mercante porque tinha falta de peso e de altura. Mas fui, na mesma altura, apurado para todo o serviço militar obrigatório. Cheguei a esquecer-me dele, mas o serviço militar obrigatório nunca me esqueceu e é, já com uma filha nascida, que sou incorporado para começar uma recruta, em Mafra, seguida de uma especialidade em topografia e cartografia num quartel em Cascais, onde sou surpreendido pela revolução antes dela chegar.

Ainda antes da revolução de Abril, já eu era tudo o que sou hoje?
Só na ignorância do medo e, mais tarde, no instantâneo esquecimento do medo podia ser feliz e isso era como viver hora a hora. Não era preciso mais que um momento para ver a miséria e a tristeza espalhadas por dentro das fronteiras de um país irrespirável, sem liberdade, de onde se fugia a salto. Não sei o que seria se não tivesse havido a revolução. Talvez fosse professor de Matemática, mas não era o mesmo. E todos os portugueses eram outros ou os mesmos em suas celas. Sem darmos por ela, como no ar que respiramos, vivemos em liberdade. Só que a liberdade está sempre em construção e, se não podemos tropeçar nos invisíveis andaimes da obra, temos de reparar a casa todos os dias até que todos possam viver realmente e em liberdade.

A revolução de Abril paira em tudo quanto nos parece natural estar por aí, ao alcance da nossa mão. Sem nos pedir em troca um dever maior do que ser livre na liberdade dos outros todos.


[Escola José Estêvão,   Abril de 2007]

a primeira fila

Depois da primeira aula da manhã desta terça, alguém me disse que passasse pela secretaria da escola a levantar uma cópia do meu registo biográfico. Para verificar e confirmar os dados da minha biografia de docente, provável candidato a titular. Assim fiz.
Aproveitei o momento para fazer pequenas perguntas e observações de circunstância sobre a vida passada e sobre o futuro. O debate de segunda sobre as universidades tinha aguçado a minha curiosidade sobre a idade da reforma e, particularmente, sobre a idade que convencionaram ser a mais própria para que um professor como eu se reforme. E lá consegui saber que o mais normal é que me reforme depois dos 64 anos quando o dedo mindinho da minha mão direita atingir a perfeição como obra de artrose em mão de artista.
Fiquei preocupado comigo. Dei por mim a pensar que posso, sem dar por isso, vir a dizer os disparates que aqueles velhotes falam quando perguntam coisas à primeira fila dos debates televisivos.

As universidades privadas podem ser novas (e sabemos agora que podem ser muito inovadoras) mas os reitores são velhos, alguns muito velhos. Do alto da sua magnífica experiência de 40 anos de universidade pública, acusam esta de ser a mãe da desgraça nacional (e ao vê-los falar, tenho de acreditar nisso). Uma parte daqueles velhos a fazer de reitores recebem, com certeza, uma reforma honrada, mas pobre a precisar de ser acrescentada dos trocados da sorte que os cansa. Alguém lhes disse que o país precisava dos seus serviços e, corajosos como só eles, abrem a boca para esclarecer, em cada uma das suas tiradas, que a situação a que chegaram as instituições é essa de terem de recrutar reitores em concorrência aberta e desleal com os lares de idosos e reformados.
Alguns daqueles nomes também me cheiram a velhos ou novos exercícios de poder. Fico cansado só de ver a agilidade de que alguns deles dão prova e maravilhado com o desequilíbrio que usam para o passeio na corda bamba dos seus exercícios de reformadores reformados.

Sinto-me cansado e sinto pontadas de saudade da reforma que tarda em chegar para eu poder viver a velhice do meu trabalho, descansado para renunciar se for capaz de dar pela toleima quando ela chegar.

[o aveiro; 19/04/2007]

onde podes encontrar o que falta?

se procuras o que te falta
pergunta-te onde podes encontrar o que te falta
ou deixa que quem te falta
te encontre

ou foge das perguntas
e de quem quer encontrar-te.

porque versejas?

- porque versejas?
- só para que me vejas!

- achas que assim te vejo?
- qu'importa? é assim que te beijo!

- e darei eu por ela?
- se passares por esta janela!

- e se não passar?
- passas! ainda que seja eu a imaginar!

nestes tempos, até a rima

não não não é o mesmo que ser idoso
decidir-me pelo papel de velho senhor

é não querer vestir o monograma de pijama de velho vaidoso
comprado para o corredor da morte ou a dignidade clínica

é vender importância às marcas, à castidade, à ruga indolor
e a todos os factos consumados como uma piscadela cínica


nestes tempos, até a rima tem que se lhe diga
já só conta para quem é velho e vai na cantiga

se passasse pela casa

se passasse pela janela do diabo
não deixava de espreitar

não tanto para lhe ver o rabo
mais por pensar em como lho cortar

canção

se não tivesse nariz
por onde espirraria?

nunca o saberia

e quereria?
nunca o quis

mas já que o tenho
quero mantê-lo

não vá perdê-lo
junto com o ranho

romance de cordel

1.
quando aluguei a garrafa para dormiir
não tinha pensado em ficar nela
toda a vida espreitando pelo gargalo
de um velho tinteiro

2.
mas quando saía só um fio de sangue
saía gotejando e era palavras sem sentido
o que formava e em pânico pressentia

que talvez tudo fizesse sentido
se saísse inteiro
e em folhas de papel
fosse romance de cordel

3.
a rolha apertada
como porta fechada
sem chave
faz a vida mais sossegada

no beco de vidro
sou o sangue e a tinta
e uma pena.

nim

A semana que passou foi rica de acontecimentos. O Ministro do Ensino Superior veio dar por conveniente o encerramento daquilo a que chamaram universidade independente. Ainda considerou um prazo para reclamações. A vida tem destas coisas: ainda se dá um prazo a uma espécie de universidade em que aparece um reitor que é vereador de uma câmara e a tempo inteiro funcionário da nossa caixa geral. Há gente com capacidades espantosas. Sobredotados estes verdadeiros artistas! E eu sou um artolas, embasbacado perante tanta competência!

Aproveitou e bem o Ministro para falar de tudo o que não é independente da independente. Precisamos agora de saber onde começa a degenerescência. Num país atrasado como o nosso, com tantas faltas em cidadãos com formação secundária e superior, não podemos dar-nos ao luxo de amputar o sistema de uma universidade acreditada pelo estado por ser notório o descrédito da empresa privada e sem sabermos quando e quem deixou abandalhar o sistema de acompanhamento pelos governos da nação.

E confessemos que isto passa das marcas. Neste confuso país de doutores e engenheiros, cada dia se descobre mais uma tolice. Afinal, antes de ser o nosso primeiro, o nosso primeiro foi deputado e alguns três anos antes de ser engenheiro já era engenheiro deputado. Coisa mais tola e desinteressante! Que raio de ideia leva uma pessoa, aparentemente inteligente, a deixar-se enredar numa teia destas! E para quê? Por norma, vou perdendo de vista os meus amigos à medida que a sua importância vai crescendo, seja na vida política, seja na vida académica, seja na riqueza... Mas, ao contrário do que faço acontecer-me, ao longo da minha passagem por este mundo, dou por mim a ver muitos amigos entre os importantes a encontrarem-se em todos os lugares. Na política e no futebol, na política e na vida académica, na política e nas finanças, ... Somos levados a pensar que talvez não sejam encontros casuais. E se trate antes de magníficos encontrões num jogo a que assistimos de olhos vendados.

O nosso primeiro atou os seus sapatos de verniz aos títulos provincianos e tanto tropeça que o país tropeça até se gastar num mal estar de estúpido. O sítio certo para explicar o que se passa é a televisão ou é o parlamento?

O major pode recusar os tribunais comuns e ser julgado na praça pública da televisão? Nim.



[o aveiro; 12/04/2007]

universo

Col mare
mi sono fatto
una bara
di freschezza

Ungaretti (em carta de J.C. Soares)

x3+bx=d <-> (x= r1/3 - s1/3 sendo r-s=d)

Quando che'l cubo conm le cose appreso

Se aggnaglia a qualche numero discreto
Trovanni due altri differenti in esso

Dapoi terrai questo per consueto
Che'l lor prodotto, sempre sia eguale

Al terzo cubo delle cose netto

El residuo poi tuo generale
Delli lor lati cubi ben sottrati

Varra la tua cosa principale

(Tartaglia)

longa caminhada

Caminhamos e, passo a passo, damos o abraço que nos nos empurra na descida e nos puxa na subida. Vestidos de violeta e roxo os andarilhos inauguram uma paixão, carregam aos ombros no andor um amigo que se despede do pai, e contam as mesmas histórias de sempre.



No planalto beirão deixo os meus olhos presos a uma rua estreita (que não é minha por não ser de todos) ladeada de limoeiros e a um campo de flores silvestres brancas. Uma infância perdida corre e rebola-se naquele campo de flores. A imaginação é que sabe.

frente do progresso da critica em linha

Nuno Casimiro, o dactilógrafo, começa uma disscussão crítica ou deambulação entre o que um texto de Conrad é e o que dele foi vertido para teatro pelo grupo Visões Úteis, para ser levado à cena no Auditório Carlos Aberto (Porto). Essa deambulação crítica é continuada por Catarina Martins, argola a argola e ...
Vale a pena seguir a troca de palavras tanto do ponto de vista da crítica em linha como do ponto de vista da escrita, por si só, ou da dramaturgia. A ponta do fio da meada nos "blogs" é o que é e convém não esquecer qual é.

mudar para melhor, mudar para mulher!

O sindicalismo docente tem épocas. Passávamos de uma época a outra com quem faz uma viagem sem retorno. Umas vezes assim pensávamos. Outras vezes, ouvíamos acima de tudo os que gritavam que nada muda e nos congelavam na época do sempre foi assim e nunca há-de mudar, nem a situação nem a luta contra a situação. Como se a luta contra a situação fosse uma das bases da situação. A luta continua a mesma? Há quem diga isso e assim mesmo. Sem mais. Coisa nenhuma é a alternativa de que fala quem convoca a mesma luta de sempre para as novas situações e para as mudanças.
É bom e clarificador para a Federação Nacional de Professores que Mário Nogueira seja candidato a Secretário-Geral, ainda que fora de época. Mau será que Mário Nogueira chegue a Secretário-Geral já que isso significaria o domínio do movimento por uma corrente minoritária, conservadora, reaccionária.

Que tenha chegado a vez e a voz das mulheres para a liderança para a Fenprof é muito bom e bom é que seja a Manuela Mendonça a candidatar-se para ser Secretária Geral. E que seja Secretária Geral!

Nunca foi tão fácil ter opinião.

arca d'água

paisagem de regresso

passagem

levanta-te e anda!

Todos os dias recebo vários folhetos e desdobráveis. Alguns deles mais parecem as obras completas de um especialista em carne de porco e em vinhos de marca de região bem demarcada; outros são pequeníssimos votos piedosos ou pedidos de socorro de uma alma que precisa de ser salva e só conhece um processo: apontar o caminho da salvação das almas de clientes dispostos a pagar dez mil reis de mel coado por uma vaga esperança. Há especialistas no aquém e no além que oferecem soluções para o mau olhado, as dores nas cruzes, o azar no jogo, a má sorte com a amante.
Dou por mim a ter cuidado na rua. Pela quantidade de papéis que recebo, tenho de admitir que há muitas pessoas envolvidas em negócios de inveja e raivas surdas capazes de todas as vinganças e crentes certas nos efeitos de uma cerimónia em que um pequeno e roliço boneco parecido comigo é espetado por nervosos alfinetes antes de ser atirado de um quarto andar para ser pisado por um pintor que se desequilibra e cai do andaime quando estou a passar. Começo a ter cautelas que antes não tinha e desconfio das minhas naturais dores nas cruzes ou dos ataques de espirros.
A caixa de correio manda-me para algum hipermercado ou pede-me que telefone a quem me quer salvar do mal que me deseja por eu não telefonar. Carne e osso batem-me à porta e perguntam-me se lhes posso dar um minuto da minha vida por uma oração. Se tiver sorte, tocará o telefone e, se aproveitar para me livrar do bem bom da porta, acabo a atender uma má leitura do anúncio sobre o que já ganhei e posso ir buscar a um hotel daí a uma hora. Contra tanta bondade, só silêncio. E vejo o correio electrónico que enche a casa digital de muito mais do mesmo.
Dou por mim a ter cuidado na rua e em casa. Começo a ter medo de ir à porta e atendo o telefone com um arrepio. O computador tem o aspecto de um caixote de lixo. Estou cercado por ofertas e por ameaças, pelo mal que me farão se eu não aceitar o bem que me prometem.
Desligo e desligo-me de tudo. Deixo-me afundar numa cadeira, enquanto ligo a televisão. Da televisão alguém disparou uma ameaça certeira. Não dá mais para aguentar, o coração desiste e eu perco os sentidos. Quando acordo, apanho os sentidos um por um.

[o aveiro; 05/04/2007]

a esquina

Antes de dobrar a esquina olhei para trás a tempo de ver como as mulheres encolhem os ombros antes de virar as costas. No instante que está imediatamente antes de me fazer desaparecer, como é meu costume, caminhando de olhos baixos na sombra dos muros altos, vi como crescem asas nas mulheres que, cegas, sobrevoam o vale das sombras. Sem saber como, ouvimos o bater de asas e ecos guturais vindo do outro mundo - o das mulheres. Os homens choram quando não fazem parte e quando não fazem a sua parte.

ouro sobre ouro sobre azul

Vivemos um tempo de comemorações. Para exemplo, tomemos as bodas de prata da Comunidade europeia e as bodas de ouro da RTP.

Recentemente, dei por mim fascinado com um passeio marcial de poderosos numa daquelas praças desertas que se abre para um arco de triunfo berlinense. Ouvi os tacões picando o chão até que um eco ficou a pairar no ar enquanto os poderosos se perfilavam em duas filas para a fotografia oficial das bodas de prata. Como se a Comunidade fosse uma “passerelle” onde desfilam modelos de poderes públicos, em vez de uma casa habitada pelas pessoas dos defeitos vulgares.

Na Rádio Televisão Pública, tal como em qualquer outra Rádio Televisão Privada, falaram das bodas de prata da Comunidade e mostraram os passeios marciais e as fotografias oficiais. Alguns entrevistadores perguntaram sobre a Europa para que entrevíssemos algum ar europeu. Pouca coisa, pouca prata. A RTP foi um portador sovina em mensagens sobre a prata comemorativa da comunidade. Daí resulta um empobrecimento na importância do acontecimento da prata europeia.

Inversamente ao desdestaque atribuído à realidade europeia pela RTP, esta andou mergulhada na criação de múltiplos eventos e programas comemorativos das suas próprias bodas de ouro. A RTP destacou todo o esplendor dos seus 50 anos de vida. Tratou de coleccionar as fotografias de toda a sua vida para as mostrar. Desde o preto e branco até às cores todas de hoje. Sem distinguir a realidade da televisão de antes e depois do 25 de Abril, mostrando as notícias e imagens consentidas pelo regime fascista como se não tivesse havido censura, mostrando a grande família da RTP como se a RTP de hoje fosse a RTP de ontem, modelos culturais sucedendo-se como se o molde fosse o tempo que passa e o regime salazarento não tivesse sido molde para coisa alguma.Vimos sucederem-se os diversos tempos louvando-se e beijocando-se mutuamente.

Chegámos ao espectáculo deprimente do festival rtp da canção deste ano que podia ter sido, a menos do detalhe da cor e da coreografia, o primeiro festival da rtp em que rezámos de tal modo mal que fomos abandonados por Deus desde então. Os dentes de ouro da RTP brilharam em todo o seu esplendor.

E, finalmente, este ambiente podre desembocou no último acto designado como “o diz que é uma espécie de benção ou de eleição” do benzido por um cardeal e eleito de deus.

O ouro que brilha esconde e cega as falhas, as rupturas - por exemplo, a democracia portuguesa e a comunidade europeia.

[o aveiro; 29/03/2007]

A RTP teve as suas bodas de ouro ao mesmo tempo que a Comunidade Europeia? O Portugal salazarento não queria ser uma democracia europeia e é por isso que escrevo sobre as bodas de ouro da rtp e as bodas de prata (ianda futuras) aproximadas e já diminuídas da Europa com Portugal dentro. O ano de ouro é só o da rtp.

a pontaria dos cegos

Não dei pela passagem do tempo? Ou não dei pelo tempo que passou? Ou foram os acontecimentos que se repetiram em tempos diferentes para parecerem um só num só tempo? Já não são as pessoas que se acotovelam. Não podemos deixar de ver que são os acontecimentos que se acotovelam uns aos outros. É estranho ver os acontecimentos a ser as pessoas em vez delas e a ocupar o lugar do tempo.

Há pessoas que aceitaram existir como personagens ou figurantes de acontecimentos previstos para ser a sua existência. Fora desses acontecimentos filmados para serem reais, tais pessoas não existem. Podemos imaginar que há um tempo de vida fora das câmaras, mas todo dedicado à preparação das cenas, aos costureiros, ao cabeleireiro ou peruqueiro, à maquilhagem e ao aquecimento dos músculos ou das próteses e das cordas vocais. Não há pessoas arrebatadoras, há acontecimentos arrebatadores.

Ainda não estava recuperado do arrebatador recomeço independente com uma cerimónia presidida por um reitor quando o vi a ser interditado por um tribunal do comércio cuja sentença foi executada por um ex-vice-verde-reitor acompanhado de advogados e seguranças para ser reposto em seu poiso com apoio da polícia para ser de novo retirado daquela cena já não sei por quem mas com certeza por razões puramente comerciais e substituído por um conselho de reitores. Se ouviram e viram aquelas personagens têm de concordar que elas não parecem particularmente interessantes em si mesmas, mas os acontecimentos urdidos são arrebatadores, comercialmente falando. E aterradores, se nos lembrarmos que tudo se passa numa unidiversidade.

Paulo Portas passa os dedos pela testa. Mostra com gestos firmes como controla a melena. Enquanto nos olha de frente com olhos bem abertos e riso mais branco que franco, domina o partido do passado no tempo presente, tomando a via directa pela direita. Insensível à informalidade do colarinho de portas abertas, uma mulher decide abusar do seu poder formal momentâneo para afirmar a formalidade do respeito pelos estatutos como condição da democracia partidária e nela inscrita para emperrar portas à entrada dos penetras - ora invasivos, ontem evasivos. Ficamos a ver como uma reunião pode ser arrebatadora. Viram que não há pessoas envolvidas, mas só figurantes e figurões para uma peça sobre a receita de poder instantâneo, filmada numa cozinha de um partido com dote.

Quando o alvo fala, nem o cego falha.


[o aveiro; 22/03/2007]

o passeio que passeia

Antes de mais nada, devo dizer que ando contente com coisa pouca. Como é natural em mim, devo confessar. Há mais de uma dúzia de anos que vim morar para o bairro da cooperativa. À volta da casa, continuaram as pequenas e grandes obras. Antes da minha rua que nem demorou muito a ser feita, viveram-se tempos desesperados para as primeiras ruas do empreendimento cooperativo. Só que uma rua ainda é a rua dos carros e a rua que os meus pés pisam só agora está a surgir completa. Fico contente e vou fingir que esqueço de toda a lama e poeira que nos cercou todos estes anos passados. De facto, tudo foi feito para acolher os automóveis e, por isso, já nem estranho ter ficado rodeado de carros por todos os lados e até ver que eles galgaram das ruas para os passeios dos peões. À porta da escola onde trabalho, as horas de entrada e saída de jovens mostram o atraso da minha cidade: jovens fazem manobras com grandes automóveis para mostrar a máquina às catraias, mães e pais fazem filas de blindados para despejar as crianças e jovens, ... Tudo está feito para os carros e, mesmo quando não está, a vontade das máquinas tomou de assalto o espírito dos lugares e ouve-se um ronco de (a)celerado. Mesmo assim, fico contente por ver o passeio da minha rua e ganho nova esperança em ver nascer passeios nas ruas de entrada de Esgueira que os meus pés não encontram hoje, quando lá chegam vindos do outro lado da linha. Contente também fiquei por ter conseguido pisar passeios (ainda em obras em alguns sítios) desde a cidade até ao Parque de Exposições. É bom pisar passeios. Dá-nos algum conforto e segurança. Coisa pouca e fico contente.

Na sexta e sábado passados, discutiram-se tecnologias da informação desde o passado até ao futuro, desde o Portugal até ao Aveiro-Digital. E veio Ministro, para o enceramento. Na segunda, vieram as tecnologias limpas até Aveiro pelas mãos do Presidente. O dia seguinte acordou as PME com um deputado despertador... Os porquês dos temas desfilaram? Quem é quem desafiou o futuro?

Claro que nenhum deles pode perceber o meu sapateado de alegria pelos passeios. Talvez nem saibam da importância do tema dos passeios de Aveiro. Talvez saibam.


[o aveiro; 15/03/2007]

o caso independente

A Independente é um caso. Mais um caso. Quando ouvimos falar os responsáveis e ex-responsáveis daquela Universidade ficamos sem fala. Sem qualquer ponta de vergonha, os amigos de ontem esfrangalham as hipóteses de honra que sempre se presume existir em responsáveis por estabelecimentos de ensino homologados pelo nosso governo. Num combate sem tréguas, travado num terreiro de lama, os frangos velhos dizem quem são quando falam de si mesmos e de cada um dos outros. Mais claros ainda, quando falam de milhões, de dinheiros mal parados ou de origem duvidosa para não dizer tenebrosa, quando dizem eles mesmos o que fizeram por cada um dos outros com o dinheiro de quem não sabemos. Pela boca do escol da universidade independente, ficamos a saber de que escola se trata. Cada um deles é dono daquilo, cada um deles está cheio de papel, de razão, de despachos, de processos em segredo de justiça e sem segredo nenhum, acções entregues e depositadas aqui ou ali em algum vão da escada da justiça portuguesa.

Por uns tempos, a universidade independente fica fechada e, em vez das aulas dos professores, os estudantes assistem a aulas dadas pela televisão, em directo da boca do magnífico reitor ou de algum magnífico qualquer outra coisa. Em directo também, assistimos a uma cerimónia de reabertura das actividades da universidade com as aves raras fardadas de negro com enfeites amarelos nos chapéus magníficos. Quando assim aparecem, ficamos mudos de espanto. Mais espantados ficamos com a nomeação de alguns figurões pescados da imensa lista dos novos figurantes negociados sob a pressão do fragor dos combates dos frangos que se depenaram em público até termos visto as vergonhas que as togas nunca conseguirão esconder.

Cada um dos três melhores deste processo independente disse de cada um dos outros que é gatuno, sem esquecer menções especiais aos membros da família do citado. Esta universidade continua e continuará aberta e como universidade, porque o governo homologou cursos e graus e há jovens envolvidos cujos interesses têm de ser acautelados. Já não é a primeira forma de universidade que sobrevive por via desta chantagem, com prejuízo para todas as instituições de ensino superior.

Será que não há outra maneira de acordar destes pesadelos?

[o aveiro; 8/03/2007]

à falta de melhor luz

Já há mais horas de luz foi o que me disseram ontem, quando saía de uma reunião de trabalho. Naquela sala, a luz do sol entrou desaforada para aquecer e para cegar. De tal modo, que algumas crianças que queriam ver-me e ao quadro branco tiveram de procurar um lugar mais para dentro na sombra da casa grande.

Para compensar, segunda e terça, a luz eléctrica foi e veio sem aviso. A tardinha de terça apanhou-me sentado tacteando as teclas da máquina de escrever. Estou convencido que posso escrever sem olhar para o teclado. E chega a ser verdade quando nem penso nisso, embora troque muitas vezes a ordem das letras seguidas se uma vier de um dedo da mão esquerda e outra vier de dedo da mão direita. Mas quando é mais preciso mostrar essa habilidade é que as coisas não correm mesmo nada bem e dou por mim incapaz de escrever correntemente se me falta a luz como está a acontecer enquanto escrevo este texto. Nestes momentos, lamento ter desprezado a possibilidade de comprar um computador com teclas a brilhar contra o escuro. Não, não me chega o branco brilhante da folha branca onde estas letras se alinham.

Sei, por isso, que a minha escola de dactilografia não bastou para escreviver num mundo sem luz . Será que eu passaria imediatamente a ser capaz de escrever se me tornasse incapaz de ver? Quem me dera que nunca o venha a saber!

Aqui ao lado, há quem tire do teclado do piano uma melodia contra a noite escura. Vibrante, ouço um texto ocupar o ar. Há textos que eu gostava de ter escrito para serem música. Não, não são grandes textos os que a melodia sugere. São os textos que só ganham sentido como parte de um bordado de sons.

Nesta escuridão, os meus dedos escrevem sobre a luz de que me falaram e eu senti na ternura da manhã clara, dos sons que se juntam para guiar as mãos capazes de bordar sons quando falta a luz. De certo modo, estou a aproveitar a oportunidade da falta de luz para falar do que simplesmente falta. Para não falar do assalto feito pelos meliantes e comediantes que entram na casa da minha cabeça pela porta da frente, olhos e ouvidos, capazes de todas as ofensas e vandalismos. Talvez a falta de luz me obrigue a descansar até que o sol volte.

Oh! Veio a luz e está na hora do telejornal. Voltemos à vida eléctrica.


[o aveiro; 01/03/2007]

Tudo e nada nem ninguém

Nem sempre o que acontece no Carnaval pode passar por brincadeira. Ainda que de mau gosto, brincadeira?

Um governante regional fez de bobo em carnavais vários. Com a sua participação nos corsos carnavalescos encarnava o seu verdadeiro papel e mostrava que a razão para ser eleito estava em ser presidente de um carnaval regional, ser o dedo gordo de um país inteiro que exibe a pérola do atlântico presa num anel como se fora uma aliança.

Nada mais apropriado que o carnaval para anúncios de demissão e de eleição do governante regional. Já confundido com um eterno carnaval, o governante regional cacareja agora o seu instante de glória suprema. Sabe ele que o seu poder jorra de várias fontes, sendo que de uma delas jorra a notícia que é o poder unipessoal quem distribui migalhas pela ilha como chuva miudinha de riqueza, recolhida em chapéu alto de palhaço rico, atraída pelo espectáculo ruidoso do gordo bonacheirão em fato brilhante.

O governante está na ilha onde a extrema miséria social partilha um território promíscuo, contíguo ao desaforo de uma exótica vilanagem que não se farta. Fartos de saber de que barro se faz o populismo mais boçal, os tiranetes de carnaval marcaram à dentada arraiais e mesas populares em todos os cantos do território.

Dizem-nos que, em termos relativos, a região do governador de carnaval está entre as regiões de maior produto interno bruto. Neste carnaval, o governante regional contesta ao seu modo carnavalesco a lei da nação que altera a distribuição da riqueza, não mais que um nada do todo. Com a sua demissão, o governante ensaia uma saída, uma tocaia para o glorioso regresso aos ombros da costumeira maioria absoluta. Jogos. Demissão, recandidatura... plebiscito.

O governante do carnaval sabe que pode esperar os votos garantidos sobre o abuso e o uso capião. E sabe que pode contar com o bom partido que o seu partido é. Pode ter acabado com todo o decoro, pode ter assassinado toda a boa-educação, pode ter gritado ofensas aos ouvidos de todos, contra todos e a sua própria família... partidária. Mas ele sabe que o casamento partidário não treme. Casamento?

Nem sempre o que acontece no Carnaval passa por brincadeira. Afinal o todo é feito de tudo e nada nem ninguém. Não é?


[o aveiro; 22/02/2007]

nem bem que não acabe?

Para pior, já basta assim.

Quando estamos apanhados no delírio de uma gripe entusiástica, não nos vêm à memória frases batidas. Nada nos vem à memória. Enrolamos o que nos sobra de dignidade num lençol molhado e soçobramos, deixamos o corpo afundar na solidão do vale de lágrimas choradas por todos os poros. O corpo tudo faz para se afogar. Desses dias de puro desvario febril, não guardo memória de qualquer esforço que tenha feito para voltar a respirar, assobiar ou cantar. Deixava-me ir até à porta. Nem guardo memória de qualquer dor real. Sei onde estive por pura especulação a partir do que antes fora e do local onde me reencontrara depois. A fala e os gestos são mais cuidadosos por medo. A tosse ecoa na cabeça até esta ser uma caixa oca com as paredes a ameaçar ruína a cada novo ataque. A quem vive e trabalha comigo, dou um avanço para que possam fugir com segurança. Não guardo memória de guinada que dê novo sentido à vida. Nada terá acontecido que valha um esforço de memória.

Para melhor, está bem, está bem.

Dou por mim a desejar que uma parte do meu povo tenha querido conversar, para tomar decisões ou fazer escolhas sobre assuntos importantes. Não, não estive alheado dos debates sobre o referendo e nunca tive qualquer dúvida sobre a minha resposta à pergunta do referendo de domingo passado. Mas fiquei espantado com as leituras que se fizeram das palavras da pergunta. Uma parte importante do meu exercício profissional (e de cidadania, também!) depende da arte de perguntar e da vontade de responder a todas as perguntas. A pergunta de domingo precisava e merecia que a reflexão não fugisse dela. E fugiu-se até confundir as pessoas para que respondessem a uma pergunta sobre o segredo (in)confessável. O mais provável é que a última semana tenha sido apanhada em grande medida pela febre. Como eu tinha sido.

Mas não há mal que sempre dure.

Neste referendo, muito mais gente votou. E bem. Espero agora que governo e deputados actuem em conformidade com a boa vontade (expressa) da gente que "concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado". Pesadas e medidas, só estas palavras faziam a pergunta. Nenhuma mais. Nenhuma menos.

[o aveiro; 15/02/2007]

pelos ouvidos, desenho o nariz

IX

Quando me dizes, amada, que em criança não agradavas
Às pessoas, e que a tua mãe te repudiou
Até teres crescido e desenvolvido, eu acredito -
Gosto de imaginar em ti uma criança singular.
Também à flor da videira faltam as cores e a forma,
Mas a baga madura encanta deuses e humanos.


Goethe; Erotica romana

o que nomeia

posso trocar o teu nome sem te trocar pelo outro
que ao procurar-te
em teu nome convoquei

também posso trocar-te pelo nome
que a minha voz cala.

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