armado de um garfo

dá-me duas boas razões para eu olhar por ti
abaixo ao velho pai bate o filho a porta do lar
de dia todos os gajos são pardos gaguejava
de dor que o garfo na falha de dente espetava


[
ninguém falava já naquela família diziam uns
para os outros isso não era novidade mesmo
há muito tempo que comiam sempre uma sopa
de legumes concentrados mudos e calados ouviam

o relato da história da família era um relato
de uma etapa da volta a portugal em que o tio
se tinha estreado na corrida de honra e despedido
numa vergonha que a urina da família desmerecia

tudo começava e acabava com a sopa e o relato
gravado durava tanto como a sopa pelas colheres
permaneciam para ali sentadas todas as mulheres
em silêncio nem rezavam nem deixavam rezar
]



dá-me duas boas razões para eu olhar por ti
e o passo em frente do pai sozinho esticava o dedo
o degrau avisava a campaínha e esta ainda a medo
desfazia-se no seu trimtrimtrimtrimtrimtrimtrimtri

o ministro que arfava nas frases curtas

havia um ministro ou um fato completo que mal sabia ler
e soletrava umas breves notas quando alguém as deixava cair à sua frente

do que eu percebia pareciam-me coisas que nada me interessavam
e por isso nunca dei importância alguma à falta de caco do ministro

até que aqueles comentários só podiam ser levados a sério por aqueles jovens
que suam optimismo sábio enquanto cospem as tendências da bolsa
como quem declama uma declaração de fé no próprio analista,
o obituário de um grande negociante ou de um poeta muito importante
descoberto postumamente.


ainda me lembro de se falar do responsável da imagem
do ministro, fraco a ler e a falar pouco,
célebre por tentar articular, em vez dele, versos épicos
sem imaginar que, para o interesse nacional, do fato completo
quem dera que falasse ainda menos que nada

desse tempo sobraram estas memórias

dito isso só espero que saibam que nada ficou por dizer.

a ordem descendente

tempos houve em que tudo corria em seu leito formal e até a lei
era feita para ser respeitada naquele país de rios obedientes
em que se falava de rigor todos os dias e e até à noite ao que sei

e houve até quem apontasse o país como exemplo para outras gentes
sabendo bem como apontar é feio.

em memória

quando o ar fica assim solto no ar em pedaços solto
e nós o vimos como vimos nuvens
mas sem cor
só o vimos porque é possível ver uma vibração
ver o ar que vibra no seio do ar quieto
ou pelo menos lento
capaz de resistir ao calor sufocante para o ar

ficamos a olhar
através do ar as densidades do ar

e vemos as caras de quem morreu
por estes dias

às vezes reconhecemos um poeta que gostámos tanto de ler
e é agora incapaz de nos contar a história
de novo
porque já não lemos do mesmo modo
ou já não lemos simplesmente porque sobrevivemos
e somos de outro tempo
onde se percebe agora que o olhar que demos
aos poetas que morreram sempre foi uma compaixão
que só pode ser dada aos vivos
e não resiste à morte

pois sempre posso dizer que morreram
os que li fascinado por não ter escrito aquelas linhas
que eram as únicas que queria escrever e já ali estavam
perante o meu olhar postas na mesa por outras mãos
e máquinas

pois sempre posso dizer que morreram
e agora que não voltam cabe-me a mim bordar a toalha da mesa
deixada assim como um pano cru sobre a mesa sem uma única palavra
desvendada
embora as palavras cubram toda a mesa de uma ponta à outra
se não as palavras as linhas as linhas da mão rasgadas pelo fio dos dias
de quem fiou o linho deste abandono de verão na casa velha

onde os talheres contam mais que as palavras para as mulheres que vagueiam
produzindo os sons os choques dos gumes das facas os toques dos pratos esbotenados
pelo tempo os toques dos guardanapos com monogramas de poetas mortos
que raspam a música nas argolas e se repetem quando a mulher indica o lugar
dispondo os guardanapos sobre a mesa ocupada por pratos e copos, facas, garfos e colheres
e só depois os guardanapos com o chamamento pelo nome de cada poeta
convocado para a mesa

os que morreram aborrecem a mulher pois têm de ser chamados repetidamente até se ouvir
alguém dizer já não está entre nós maria
passa a outro
se te lembrares do nome ou de algum verso que alguém tenha escrito em vez do seu póprio nome
de tal modo que seja o verso a ser lembrado em vez da cara

por ter os olhos demasiado claros não suportava a luz do sol e ficou escondido na sombra da nave
por ter os olhos demasiado escuros não há quem se lembre da cor dos seus olhos e que não se pode ver
e por isso sem nome
e há mesmo um poeta que anda por aí a voar no ar da sala grande

e para grande espanto dele ninguém o chama porque dele nem peso nem nome nem presença

as pessoas preferiam que o poeta tivesse morrido de morte natural por exemplo se tivesse afogado
a este fardo insuportável de saber sem aceitar que o poeta foi perdendo peso
à medida que ia perdendo os dias que lhe faltavam para a sua passagem aérea
a ar e fumo ou só fumo que viesse a ser a sua forma aérea
como nuvem
e forma de estar acima dos outros
persistente mania treinada em vida com palavras cordatas calmas e sossegadas sem acentos que as fizessem estalar o ar
como asas de anjo ternurento capaz de todos os enganos escondidos sob litros
de suave água de colónia

quem havia de dizer que ele tinha tomado banho em água de colónia
e que eram mentiras vergonhosas os seus poemas de banhos de amargura
e mal estar?

quem havia de saber disso?

por isso a mulher decidida punha a mesa e por ele não chamava e ninguém olhava para cima para os lustres da sala
onde empoleirado estava o poeta de que lera fascinado toda a obra
enquanto a juventude me abandonava dia após dia
por descobrir que o que escreveria estava escrito
irremediavelmente por alguém que viera antes de mim
e roubara das minhas mãos a verdade e a mentira
fingindo que elas erravam por aí à mão de semear ao alcance até de um romântico
de merda medíocre que nem mereceria mais tarde o chamamento pelo nome
para a mesa

os poetas nomeados em altiva voz pela mulher primam pela ausência
e é a mulher quem come um poema inteiro de carneiro sentada à cabeceira da mesa.

o tacto

os pratos.

o ar já foi distribuído pelos pratos
vê-se que está quente pelo vapor que se solta dos pratos
e da terrina

ainda não sorvemos o ar da sopa e já se desvelam outros pratos rasos de lágrimas

aqui não deixamos os poetas morrer
com falta de ar que se come e se bebe

já o ar de respirar nem para assunto de conversa é chamado.



as caçoilas.

na azáfama com as mãos embrulhadas no avental a mulher carrega
as grandes travessas de ir ao forno cheias dos restos das palavras
pelo fogo tatuados no ar suspenso
enquanto uma lágrima se solta ao canto do olho que vê nas cinzas a forma do poeta

a mesma forma marcada na cama como uma pegada de vento

aqui não deixamos os poetas apodrecer e sentados à mesa começamos a nossa oração
pela frase lapidar se havia de ser para a terra o comer...


o álcool e o fumo.

ele escreveu em cada um dos seus livros ardentes
que as refeições de despedida devem ser seladas pelo silêncio
da aguardente forte e do charuto que ele reservara para a despedida
assim ela se apresentasse

e caso ela não fumasse que alguém o fumasse.

a água candente

vermelho

a cor do agosto

O acordo de governo de Lisboa celebrado entre Sá Fernandes e António Costa (ou entre o Bloco de Esquerda e o Partido Socialista) é um acontecimento novo na política portuguesa. Não há nada de novo do ponto de vista do reagrupamento de forças à esquerda ou à direita já que houve antes concertos de esquerda para o governo de Lisboa e a vereação da câmara foi composta por vereadores de vários partidos. Surpresa perante o facto do independente Sá Fernandes ser vereador com pelouro sob a liderança do PS? Nah...

Novo é o texto do acordo tornado público: tão simples que não permite várias leituras, tão claro que faz saltar interesses instalados à esquerda e à direita. O problema para os críticos não pode ser encontrado na circunstância de Lisboa, já que o acordo fala de medidas elementares, de denúncia fácil se não forem executadas. O quê para o saneamento financeiro e o quê sobre quais empresas municipais, estão a ver? Sobre os transportes, assume-se a defesa do transporte público em detrimento do privado e uma simples medida de reserva de canal para extensão de uma linha de eléctrico, estão a ver? É claro que há assuntos que dependem de negociações com o governo ou ferem interesses que vão resistir por todos os meios. Os construtores civis portugueses não vão aceitar ser tão civilizados como os que operam em Barcelona, Madrid ou Nova Iorque e já começam a faíscar os dentes de ouro dos patos bravos contra a obrigação da quota de 25% para habitação a custos controlados tanto em novos projectos como em operaçoes de reabilitação, como contra a escolha da reabilitação do edificado em detrimento das novas construções. Estão a ver?
No que respeita ao pelouro do ambiente e espaços verdes, assumido por Sá Fernandes, não houve invenção alguma e promete-se que o velho Plano Verde de Ribeiro Teles vai ser vertido para o PDM, como molde vinculativo de futuro, enquanto são referidas, uma por uma, as acções a concretizar até ao final do mandato. Estão a ver?

Eu estou no acordo. Para ver fazer a parte de cada parte. E porque o que António Costa aceitou assinar, faz dele um político de respeito. Há muita gente à espera que falhe. Eu só quero que dê certo. Lisboa é gente e merece que um acordo assim seja respeitado em acções. Por todos. E que todos ganhem na medida do que forem e fizerem.

Por lá e ... por cá, também. Que cada um receba em dobro o bem que faz e dobrado castigo para o mal de que é capaz.


[o aveiro; 9/8/2007]

um dia destes

Um dia destes vou levantar-me para viver
E para que me escutem vou deixar de falar
E para que me leiam vou deixar de escrever

Porque estou cansado demais para emendar
A mão que escreve ou a voz que dói de rouca

Antes morrer de pé: no olhar na mão na boca

castigo

quando ela voltou eu estava virado para a parede
tal como ela me tinha deixado
50 anos antes

e para mim o mais fácil foi fingir
que estava tudo como dantes.

des envolvimento

O que mais me incomoda é a distância feita de desprezo e é, por isso, que muitos dos governantes modernos me parecem selvagens.

Educados para a compaixão real, feita de gestos tão anómimos quanto dirigidos a pessoas reais que se cruzam no nosso caminho, não atinamos com aqueles que falam dos desempregados como se eles não fossem nossos vizinhos e não fossem mais que unidades estatísticas. Não atinamos com políticos que justificam as suas políticas com um futuro radioso para todos os filhos dos que nem vislumbram o pão nosso de cada dia presente e menos ainda o futuro dos seus filhos. Não nos entusiasmam perspectivas de desenvolvimento se elas existirem em detrimento das pessoas reais, sem se fundarem e fundirem com pessoas realmente existentes.

Estes jovens governantes selvagens falam de pessoas em abstracto, livres de qualquer comoção humana perante as dificuldades das pessoas reais, ganharam uma falha de carácter e uma desmemória sobre os cíclicos descalabros da espécie até ao desprezo pelas pessoas reais quando elas são o contra-exemplo para as suas políticas. E enriqueceram.

Depois olhámos esses políticos como parolos a tentar agradar a patrões e a padrões estrangeiros. Habituaram-se a pensar em desenvolvimento e progresso como coisas neutras iguais para todos em todo o mundo e para os quais há uma só receita universal. Parecia-me uma desculpa inventada por tolos. Nunca me passaria pela cabeça que houvesse alguém tão tolo que pudesse impingir esta ou aquela teoria ou tese de uma ciência social como se fosse tese de uma ciência exacta, válida para o exótico e imprevisivel universo humano.

Nesta última semana, fiquei a saber pelas organizações não governamentais a trabalhar no Iraque, que, em nome da democracia, os políticos selvagens fizeram a guerra que lhes permitiu agitar o mercado que, mesmo selvagem, funciona bem até num país transformado num campo de batalha. As ONG não denunciam a falta de interesse dos países da coligação. Não. Dizem que eles estão a sacrificar grandes massas de crianças e adultos de hoje às suas estratégias de desenvolvimento. Fome e penúria mais extrema, ao lado do mercado florescente e, porta com porta, com a riqueza mais obscena.

Os políticos selvagens não reconhecem os seus pares humanos, não se envolvem. Eles são a favor do des envolvimento humano.


[o aveiro; 1/8/2007]

quem a vésper espera


aqui onde aves fazem uma algazarra de família
regressada a casa
ao fim do dia

espero a estrela da tarde
e imagino um sino que dobra um bater de asas

um instante a morte e a vida juntas

o que esconde, mostra-se

mau exemplo, mau é

Ainda na oposição, com os olhos na cadeira do poder, a um povo que se revia grego, Sócrates bradava garantias referendárias para as grandes questões. Também para as questões do tratado que estabelece uma constituição para a Europa. Dar a palavra aos povos tinha chumbado aquele giscardiano texto assinado então, em nome de Portugal, pelo fantástico Lopes de Lisboa. Passados poucos anos, Sócrates é um poderoso primeiro ministro de uma presidência europeia (em) investida contra referendos a uma nova versão de tratado agora destinado a ser votada nos parlamentos. Sócrates vem enaltecer a democracia representativa e lança anátemas aos que, por defenderem os referendos e a participação popular, diminuem a representação democrática e parlamentar. Opinião de sofista. Ninguém melhor que Sócrates para saber que a Assembleia onde o PS tem maioria absoluta foi eleita para defender o referendo. Pretérito mais que perfeito, imperfeito, condicional? Mudam-se os tempos para que futuro? Ninguém melhor que Sócrates para saber que o que apouca a democracia parlamentar são as palavras por cumprir, a falta à palavra dada, a desonra e a pouca vergonha.

Eles têm agora a espinhosa missão para nos convencer que tudo o que fazem colhe o seu valor nos resultados futuros, nos maravilhosos frutos do exercício do seu poder. Os fins, os fins, os fins justificam os meios. Se perdermos tempo a discutir, perdemos eficácia, competitividade, a oportunidade de ouro, etc. E já há quem queira ver assim e ache coisa pouca a participação popular mesmo quando ela foi prometida em troca da maioria cor de rosa. Até porque ela é tão pobre! Não é? Não é tão evidente?

Nestes tempos de comunicações rápidas, para uma parte dos nossos políticos, até a participação (que não se puder dispensar) pode ser representada por figurantes recrutados entre velhinhos da província que aceitem pagar uma excursão à capital com uma hora de bandeirinha em campanha de autarquia de costa ou entre jovens que, bonitos, empenhados e bem comportados pela mão de uma agência de modelos, aceitem vender-se por 30 dinheiros ao serviço da ministra da boa (?) educação tecnológica. A ministra acha que isso é nada quando comparado com o anúncio tecnológico. Mau exemplo, má educação democrática são pequenos nadas, sendo tudo.

Ainda que tenham bom aproveitamento como eficazes figurões tecnocratas, nunca lhes perdoaremos o mau comportamento como democratas.


[o aveiro; 26/07/2007]

Santiago


A ignorância e a tristeza
não olham como eu olho para a beleza.

Santiago

As pessoas que passam sem ver a cor da rua
não caminham para a luz



e a sua vida finge carregar uma cruz
que nem existe ou não é a sua

A fortuna dos dias

Abro a caixa do correio todos os dias mas há dias em que a fortuna me bate à porta: Hoje recebi "A fortuna dos dias" de José Vicente Lopes. Um abraço apertado de Cabo Verde.

vegetal doméstico

criei-te como quem cuida
de um girassol doméstico:

água e horas de parapeito

e persianas de correr: ora
luz ora sombra para te ver
o pescoço esguio rodando

em movimento lento, vegetal.

o que sobe, cai

Um homem seguia pela vereda, incomodado com os silvados a roçar-lhe o fato. Com o cotovelo levantado, protegia a cara dos ataques. Entredentes, não parava de falar de si mesmo para si mesmo. Um pouco atrás, a mulher caminhava ligeira. Sorria para dentro. Parecia que lhe dava algum prazer a atrapalhação do homem e não conseguia esconder a satisfação. Isso era o que me parecia enquanto olhava para baixo a vê-los, subindo encosta acima. A certa altura, do meio do matagal, vejo sair o garoto. Pareceu-me ver o homem embaraçado pela finta do garoto. Não tardou muito, aos meus ouvidos chegavam os palavrões do homem, os gritos do garoto e a gargalhada feminina cantada por cima dos palavrões e gritos. Pouco depois, deixei de os ouvir e também deixei de os ver. Tinham entrado num daqueles túneis vegetais que as veredas nos reservam. Não me preocupei e fiquei à espera de os ver reaparecer mais perto do cimo do monte, onde me encontrava. O tempo fez-se mais lento e dei por mim a preocupar-me. Não me parecia que pudessem ter tomado outro trilho diferente daquele em que eu os vigiava. Porque terão deixado de falar? O que aconteceu ao garoto? Que é feito da gargalhada da mulher para as costas do fato tão inadequado para a subida montanha acima? Parecia que a terra os engolira naquela curva da vereda. Já começava a desesperar no meu posto de guarda, quando os vi ao longe seguindo pela vereda que dava uma grande volta, para poupar na subida inevitável. Verifiquei que a partir dali, onde eles reapareceram, o trilho se alargava e aparecia desenhado como um risco em volta da montanha. Se o pudesse ver de mais alto, pareceria uma escada em caracol para o céu que o monte arranhava. Contente por voltar a vê-los de novo, fiquei preocupado ao constatar que me veriam ao passarem por aqui. E tinha razões para temer que reconhecessem a cara da campanha de todas as promessas.

Ainda nem tinham chegado ao cume do poder, já o homem perguntava: “Sócrates?” E, sem pausa, a mulher atirou certeira: “Vens pagar alguma promessa?” Não me lembro do que se seguiu. Disseram-me depois que o garoto, que nem me conhecia, enquanto me empurrava, repetia: “Prometeste, subiste!... Mentiste, não cumpriste e...caííííste!” E mais nada!

Porque é que o homem me chamava pelo nome de um grego?


[o aveiro; 19/07/2007]

alta voz!

Finges que não os vês quando passas
mas sabes que eles vagueiam por aí
porque lhes aconteceu mais cedo
o que bem pode acontecer-te a ti.

Ai, quem sabe se não foi um simples "não!"
que lhes mandou o emprego pró caraças!

Pelo sim pelo não, à força do hábito ou do medo,
vergado, tudo farás às ordens do patrão.



Se todos sabem o que não esquecem,
porque é que os que mandam e os que obedecem
consultam de novo a lista dos tiques da servidão?

podemos rezar


a luísa seguiu pelo corredor até à sala de memórias,
aí chegada, correu as persianas até fechar os olhos
e rezou pelo passado

até ter a certeza que dele só sobram restos
das traças

o que nem as traças encontraram.

poeta


a luísa escreve do passado, o branco
sobre o branco:

e espera alguém que leia uma parede branca
em cal viva


uma morte em carne viva
uma prece.

o que eu vejo


o que eu vejo quando olho pela minha janela
é só o que existe
e é igual todos os dias desde que me levanto:

não preciso ver nem saber mais para ser triste.

dispor as pedras


a luísa encostou-se à parede em frente da janela
e atirou certeira as pedras com seus riscos

de tal modo que elas cobriram as suas sombras

e nem sobrou a sombra que cai como a tarde cai até ser noite

vira as costas ao comboio

pelo telefone

talvez ninguém possa falar das medidas
contra a educação

(por exemplo, morte das jóias da coroa de ontem: TICS, CEFs, cursos tecnológicos
seguidas de outras mortes "por inerência",
medidas tão excepcionais como um arrepio,
ao arrepio do planeado há pouco tempo ainda,
demonstração de falência da gestão do sistema educativo,
coisa mal educada, demonstração da cobardia
de cruéis trapalhões
para quem as pessoas deixaram de existir)


porque elas não existem realmente

já que
o que existe é o telefonema que anuncia
que antecipa

o que mais tarde cairá mais como facto consumado
do que como directiva de papel

ou

lei avulsa
que não é agora mais que uma forma
onde cabe o uso do abuso

contra a democracia e contra o direito
contra os direitos todos
individuais
dos profissionais

e sociais
das profissões

e

o exercício do dever.

O funcionário público sempre se levantara, manhãzinha cedo, para o seu exercício diário. Com a surdina ligada, para não acordar os vizinhos, o funcionário público marcava o ritmo dos movimentos: um, dois, três, quatro, cinco, um, dois, ... Depois do duche rápido, vestia-se e saía para a rua. Chegava cedo e ajeitava os papéis ao longo da pequena bancada, ao seu alcance e fora do alcance de quem se dirigia ao guichet onde se escondia e se mostrava o funcionário público para distribuir o exacto papel e não um qualquer papel. Ali sentado do lado de dentro do balcão antigo, não deixava ver mais que os seus olhos de ave, uma gravata e a mão cuidada que entregava o papel exacto, necessário para um determinado acto.

Uma destas semanas, às ordens do governo, o funcionário público deu por si espantado sem saber qual o seu papel nem que papel havia para dar. Sem aviso aos utentes e ao funcionário, o papel de ontem que e ainda não se cumprira em qualquer acto, já não servia, porque os actos e serviços, ontem necessários para os utentes, tinham deixado de o ser para o governante que os tinha altianunciado. O funcionário público nem sabia o que acontecia para fazer acontecer a ordem do dia. E isto começou a repetir-se com uma frequência assustadora. Alguns trabalhadores que, a confiar nos governantes, ontem desempenhavam tarefas absolutamente necessárias, revelavam-se inúteis e mesmo prejudiciais hoje, por ordem do governo. O funcionário público via como cada uma das pessoas acolhia a dor ao deixar de ser a pessoa que era, pessoa em si mesma e para os outros que a reconheciam pelos serviços imprescindíveis que prestava. Não só tinham baralhado os papéis no seu guichet, como as pessoas da fila em espera tinham perguntas para as quais as respostas de ontem não podiam ser repetidas hoje e nem havia resposta que se pudesse dar. E que papel para as pessoas à sua volta?

Num instante, os governantes mudavam decisões para nenhumas decisões mais caras.



Sem saber bem qual é o seu papel, o funcionário público levanta-se manhã cedo, desliga a surdina e acorda toda a gente a gritar para quem o quer ouvir que é urgente mudar estes governantes antes que eles gastem todo o dinheiro a desfazer o que ontem era uma boa razão para gastar o dinheiro de amanhã.

O dever de um funcionário público pode ser pedir a demissão dos seus governantes?

[o aveiro; 12/07/2007]

sala de espera

pela casa

na multidão que habita a cidade não podes esconder-te:

cada par de olhos te vê como se te conhecesse desde criança
e sentes que te seguem na tua deambulação sem esperança:

sabes bem que mão procuras e também sabes perder-te

o quadro

Praça do peixe

Nos dias que correm, para serem elegantes e poderosos, os homens mostram-se a correr pelas ruas e praças. Aproveitando a frescura da manhã ou da tardinha, um homem poderoso e elegante deve tomar a dianteira de uma fila de homens seguros treinados em ordem unida e em limpeza de bermas do trilho. Há fotógrafos que correm, em rápida marcha atrás, tanto como os homens poderosos e elegantes, para fotografar o andar saudavelmente enérgico dos homens elegantes estampado nas caras sorridentes que trazem sempre afiveladas. Os fotógrafos que tiram estas fotografias são admitidos nos trilhos e chegam mesmo a aparecer como matilha.

Os homens poderosos e elegantes são optimistas, nunca esquecem o sorriso, o brilho no olhar e a palavra fácil sobre uma grande cimeira, razão directa da ciumeira oposicionista e invejosa. 

Podem surgir do nada os homens elegantes e poderosos, podem ser feitos de nada, podem ter sido feitos para nada como se fosse para serem tudo que é o nada do outro lado. O maior encanto dos homens elegantes e poderosos reside no milagre da sua criação por uma revista de recados, modas e bordados. A essência “chic” dos homens elegantes transparece tanto na passada elástica sobre passadeiras vermelhas como na forma do tornozelo que se vê nas fotografias das tão significativamente importantes saídas dos automóveis negros. Há mesmo quem diga que neste mundo atapetado e apatetado importa mais a riqueza do pormenor que o pormenor da riqueza e que um homem poderoso pode ser elegante na medida da marca do sapato ou do verniz. 

Em momentos de grande pompa, o mais importante para os homens elegantes é não mostrar uma única estaladela no verniz e dar para a fotografia a ruga de simpatia, quase humano sinal de compaixão por quem precisa de ver a fotografia para acreditar na benção da sua existência. 

As pompas civis repetem-se: assembleias de accionistas, cimeiras, estreias de teatro superbemestar ou exposição de rica colecção em instituições subsidiadas pelo estado, velórios, baptizados e casamentos de estadão.  O cerimonial com artistas poderosos e elegantes não é subsidiado, porque é o estado a representar(-se). Até um mosteiro pode virar camarim. Não falta arte para representar, nem ponto para a asneira mais artística, nem fresco papel moeda.

Quem lhes dá corda aos sapatos? 

[o aveiro; 5/07/2007]

a leitura que nós somos

Se for verdade que nós escrevemos o que somos, é também verdade que nós somos o que lemos e diferentes seríamos se tivessem sido outros livros os que nos conduziram até aqui. Quanto mais leio, mais me sinto desmentido e, por isso, mais necessidade tenho de mentir a mim próprio para que o meu mundo não entre em derrocada.

Há quem diga que nós olhámos a religião como ópio do povo e a religião é afinal baseada na crença da imperfeição do homem terreno e que isso sim é a humanidade que anseia pela perfeição noutra vida que não nesta. E que procurar na vida terrena a perfeição humana transformou-se numa nova religião, ópio dos intelectuais que não se habituaram ao ópio do povo.

Quem assim nos olha, está sentado no penhasco mais alto e mais aguçado enquanto lê um livro de viagens escrito por um cavalheiro, e, sem acreditar em coisa alguma, deixam à turba a esperança na salvação eterna e aos intelectuais a degradação no culto do ópio e da perfeição humana em vida.

pobre e pedinte

Não me penteio e, por isso, um espelho anda atrás de mim pela casa. Não sou capaz de o partir porque o barulho da sua choradeira acordava o prédio inteiro. De vez em quando vai à minha frente em marcha atrás com um pente na mão. O desgraçado do espelho é cego, mas eu não dou esmolas ao primeiro espelho que me aparece.

Praça de peixe

Outros poderão vender. Mas eu dou mesmo, dou de barato a verdade de quase todos os governos das autarquias portuguesas estarem em grande sofrimento. E eu, pequeno contribuinte, com eles sofro quando a dor deles é pontada de desgosto pela herança de dívidas acumuladas. A dor da dívida inicial curou-se com pêlo do mesmo cão: quanto maior o montante em dívida, maior a capacidade de endividamento! Até um certo nível. Acima dele, os cães invadem a rua. No espaço social exterior ao canil das dívidas do município, as vítimas dos cães e os cães uivam.

Ainda a procissão ia no adro, e aparecia em cena uma especialização em controle de cães e afins a que chamaram engenharia financeira para as primeiras perseguições e reengenharia financeira para as fintas à realidade. Não sei em que faculdade se formavam estes engenheiros nem sei que refaculdades especiais são exigidas aos reengenheiros. Nem sei se há ordem para estes casos e muito menos ouvi falar em qualquer reordem. Dou de barato que há por aí uma dor em redor da banca branca.

Dar de barato para a dor é uma coisa.

Engolir tudo o que nos dizem para esquecer a dor é outra. Já cheiravam a peixe podre as notas explicativas para a obra de encerramento da praça do peixe fresco. Como justificar que não há notícia a chamar à responsabilidade os técnicos suspeitos de terem cometido os erros de que fala o encerrador? Pior fedor tem a notícia de que, com apoio em técnicos certamente e tendo 9 talhos disponíveis no novo Mercado, a anterior câmara prometeu um talho a cada um de 13 talhantes. A verdade mente? Seja o que for que tenha acontecido ou tenha sido dito, o que está a ser dito agora é uma baforada de mau cheiro vinda de lá, desse lugar que começa a ser incapaz para um mínimo de decoro.
Há quem pense que os políticos podem usar de alguns descuidos na linguagem e que isso é normal na luta política. Chamam-lhes peixeiradas para ofender as peixeiras. Eu preciso de acreditar no que me dizem os responsáveis para formar opinião, estar de acordo ou em desacordo. Também não dou de barato enxovalhos aos técnicos da autarquia.
Não faço ouvidos de mercador. Disparates risíveis presos do lado de fora das minhas orelhas não fazem de mim louco, nem tão pouco mouco. Fazem de mim.


[o aveiro; 28/06/2007]

porque hoje é sábado

Quando a noite chegou, fumei um dos charutos da herança de Estrela Rego. A varanda enche-se de sinais de fumo. Que partam com o ar que passa! Não lembro o que leio, não lembro o que ouço nem o que vejo. Deixo que a noite tome conta de tudo. Embrulho-me nela e deixo-me ficar escondido, embrulhado numa dobra de tempo feita por uma ausência de luz.

16

Era uma vez uma palavra que estava sentada à porta de casa quando passou um rato. Bela palavra diz o rato. Como ia com mutia pressa deu-lhe umas dentadas e engoliu-a. Mal. A palavra ficou-lhe atravessada na garganta. Então os dentes começaram-lhe a crescer para dentro.

[Ana Hatherly. 463 tisanas. Quimera.]

a praça do peixe

Temos para nós que as mães querem o melhor para os filhos. De um modo geral, queremos dizer com isso que as mães tudo fazem para que os seus filhos tenham acesso a mais conhecimento do mundo até que nada de essencial lhes falte e lhes seja mais leve a sua quota de criação. Ao mesmo tempo, cada mãe espera que os seus filhos transportem para o futuro a sua melhor memória, uma história de portadora dedicada e solidária de esperança na sua contribuição infinitesimal para um mundo mais fraterno. As mães sabem que entregam os seus filhos ao mundo que, já não sendo o mundo tal qual era o seu, é um mundo cheio dos sinais que elas reconhecem e integram a identidade do seu filho, a contribuição única que ele é para a riqueza colectiva - a diversidade como colecção e mistura das contribuições. Nenhuma mãe quer desaparecer da memória cultural do seu lugar e isso significa ideias, cultura, juízo, produtos agrícolas e industriais, trocas comerciais, etc... enfim, valores.

Que engano de mãe abençoa a mão do filho que apaga todos os puros sinais do seu tempo?

Nos nossos lugares, estamos sempre a procurar os sinais que acrescentamos. O nosso futuro tem um passado e um presente que é escolha do que interessa e rejeição do que não interessa ao futuro. Globalmente e localmente. A sobrevivência depende da diversidade em que nos reconhecem pelas diferenças. E isso obriga-nos a avivar os nossos sinais, a não nos disfarçarmos noutra identidade. Os eleitos locais devem ajudar a localizar os seus eleitores na sua história, no seu tempo, no seu lugar. Cidadãos do mundo, queremos saber qual a nossa contribuição exclusiva, ao mesmo tempo que queremos conhecer e saborear as contribuições dos outros. O comércio global pode e quer vender-nos tudo. Os eleitos locais não precisam de aprofundar essa globalização, precisam de preservar os nossos produtos e a memória do que fazemos e, talvez, ajudar à sua inclusão nas listas de vendas do mercado global.


A que cheira uma Praça do Peixe? A alguns dos nossos eleitos, a praça do peixe já só cheira a cerveja.


[o aveiro; 21/06/2007]

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Era uma vez uma sala de espera. Havia várias pessoas que esperavam, mas calmamente. Porém, a certa altura começou a nascer a impaciência. A sala diminuíu imediatamente de tamanho.

[Ana Hatherly. 463 tisanas. Quimera.]

A terra dos ...

No último ano, um Ministro andou a cantar aos quatro ventos que iria haver um aeroporto ali para os lados de Alenquer. Disseram-se coisas sobre interesses escuros, obscuros e claros relacionados com essa decisão política. Anda-se nisso há quantos anos?

Mudanças de interesses e de parceiros e o que era uma decisão política certa passou a sofrer da doença de moratória. Por iniciativa da indústria, acolitando a Presidência que ajudaram a eleger, acendeu-se uma nova luz e decidiu-se uma alternativa em Alcochete, ou melhor, numa pequena arena montada mesmo ali em plena Assembleia. Olé! - grita o inteligente.

Na apresentação da alternativa de Alcochete lá estava o autarca da nova opção aeroportiana a defender o desenvolvimento para Alcochete deixar de ser Alcochete.

No dia seguinte à declaração de que o governo iria prosseguir os estudos, os autarcas otários vieram reclamar de tal decisão por já se terem comprometido com investimentos na ordem da cruz de milhões. Hotéis, hospital, e, como jóia da coroa de todos os investimentos, um santuário. Já tudo me tinha passado pela cabeça, até voos rasantes de aviões ansiosos por oterrar, menos um santuário à maneira. Há tanta coisa para fazer quando o céu nos aterra no quintal!

Desde que anda o aeroporto no ar, nasce uma novidade em cada dia. Um dia ficamos a saber de quantos quilómetros de deserto se faz uma alternativa de sul, noutro quantos quilómetros cúbicos de terra temos de movimentar se formos otários, no seguinte quantos quilómetros por hora pode atingir o tgv para dar o passo que separa Alcochete do oriente, ou quantos minutos mede um metro entre Lisboa e a Ota. Os planos mais arrojados já falam da Lisboa que chega a Ota, de Lisbota. Alen...quer até ser Lisboa.

Já Alcochete arma todos os campinos. De varas afiadas apontadas ao céu de Alenquer, os campinos têm batido todos os recordes de lançamento de dardo e de salto à vara no assalto aos céus. De campinos a campeões é um passo.

Nada de parar, devemos procurar novas oportunidades e alternativas. Portugal só tem a ganhar em ter mais estudos - é o que dizem os estudos. E há exemplos a seguir.


[o aveiro; 14/06/2007]

asas para que vos quero?

Deixei de acreditar em asas para voar.


Casei-me para ter uma viúva capaz
de me ver voar sem asas como labareda no forno
ou como voa o fumo quando sai da chaminé
ou como voa a cinza no cume da liberdade

de um monte ventoso ou à porta de casa
em certos dias de cabeça perdida, de vento irrequieto
a desmanchar perucas, a levantar saias e a despedir
chapéus para as retretes públicas dos cães.

Outros animais de estimação, como eu, sem asas,
e até as crianças deixaram de poder brincar
nos ex-jardins públicos, privadas a céu aberto


Mas mesmo sabendo eu que o fumo da minha carne
e a cinza dos meus ossos podem cair num monte de caca
a minha esperança de voar sem asas permanece intacta.

a perspectiva

a escola em volta


O verdejante ramo por terra também é a vida que precisamos de ver.

a escola em volta


Aqui moraram por tantos anos as tílias que cresceram abraçadas até naão caberem no abraço humano e se perderam em ameaças de força imensa à pequena oficina de artes que dá vida à esquina. Sobraram as ameixas.

GEOMETRIA : A curva do ingénuo revisitado (geogebra)

GEOMETRIA : A curva do ingénuo revisitado (geogebra) : Revisitamos "31 de Janeiro de 2005" de entrada ligada a texto de setembro ...