as lágrimas

nestes dias não sei se chove até
que os céus enxuguem os olhos ou até
que a terra sufoque afogada em martírio até

assim foi

A festa estava quase a acabar, quando o marquês anfitrião estremeceu. Todas as senhoras deram por isso e viraram-se todas, cada uma em busca da criança que deixara pendurada no bengaleiro. O marquês só muito raramente estremece, mas quando estremece e abre os seus olhos de porcelana antiga deixa fugir as meninas dos seus olhos pela casa em busca das suas educadoras de infância. Para brincar, simplesmente. Elas, as educadoras de infância contratadas para tomar conta das meninas dos seus olhos, começam a correr de um lado para o outro, protegendo dos sapatos das convidadas, as meninas dos olhos do marquês. E todas as senhoras sabem que as suas crianças, penduradas no bengaleiro, abandonadas pelas educadoras de infância, vão desatar num berreiro insuportável aos ouvidos do marquês. As damas desesperadas procuram as chapas identificadoras que lhes permitam levantar as crianças penduradas no bengaleiro. A orquestra de câmara ajuda à festa, desatando numa tocata desafinada mas concertante, ocidental, marcial, heróica. O cavalo do marquês levanta-se sobre as duas patas traseiras mostrando o que toda a gente sabe e canta a ária despejada no ar como uma noite de sons.

Quando acabar, o salão há-de estar vazio e as meninas dos olhos do marquês estarão adormecidas em seus berços de porcelana antiga. No chão brilhante, nem uma pegada do baile, nem um cabelo de peruca, nem uma liga. Uma chapa metálica oscila ainda em fim de queda precipitada, perto da grande porta de entrada e de saída. Até que o sapato ensonado do mestre de cerimónia pisa o som metálico contra o silêncio mais escuro.

posa tus lábios

posa tus lábios en las cánulas como hace el dios que llora en tus armarios, el que habla entre uñas amarillas; silba en las cánulas del sufrimiento y, en la pureza de las horas vacías, recuerda la torunda de tu padre, la soledad de las palomas extraviadas en la eternidad,




libro del frío. aún. antonio gamoneda

lugar

fico mesmo por aqui.

sentado em frente da sé
peço a esmola da caridade alheia
a piedade de uma mão fria
contra a febre

ou a frescura da luz branca
na nave
ancorada


neste adro de sal lavado
de pedras comidas pela lixívia
ou pelas lágrimas dos que amam
a viagem por fazer

mesmo por aqui
me
finco

vara espetada
num abismo de lodo

a voz cansada

O Pedro telefonou-me hoje, dia 27 de Abril, ao princípio da tarde. Raramente falamos ao telefone e muito mais raramente me encontrei com o Pedro, embora escreva quase todas as semanas ao Pedro. Uma mensagem sem abraços nem cumprimentos, em cumprimento de uma promessa. Nenhuma obrigação de parte a parte, nenhum deve e haver. De mim, ele não esperava mais que uma crónica livre e pessoal para “o aveiro”. Nos últimos anos, a minha correspondência mais regular foi esta com a imprensa local que, de certa forma, foi a correspondência com o Pedro.

O Pedro telefonou-me hoje ao princípio da tarde e pediu-me que antecipasse a nossa carta semanal, a última carta para “o aveiro”. E eu escrevo. A pensar que devia ter conhecido melhor o Pedro de “o aveiro” e também o próprio “o aveiro”, escrevo a última carta, aquela em que alinho despedidas mais ou menos tontas enquanto declaro o apreço por todos quantos mantêm viva a imprensa regional e local e um particular apreço pelo finca-pé posto no respeito mútuo, na independência, na lealdade e na liberdade.

Reconheço que muitas vezes não dei o devido valor ao acto apressado de escrever o compromisso ou comprometimento semanal assumido sem qualquer comprometimento ou compromisso ou obrigação. E isso manda que eu peça desculpa por tudo o que não fui ou por não ter sido o que de mim esperavam se é que alguém esperava alguma coisa de mim. A minha liberdade andou a passear por aqui como se “o aveiro” fosse a rua da minha liberdade. Com melancolia, dou agora por isso. Nunca é tarde para reconhecer.

Amanhã, fecha-se a última edição de “o aveiro”. A 30 de Abril, os leitores lerão a despedida e saberão que agradeço a todos a paciência de tentarem entender as minhas hesitações. Saberão que lamento a tristeza do meu pessimismo a contrastar demasiado com o meu optimismo militante e a alegria que, à minha volta, rodopia o tempo todo.

Aos trabalhadores e leitores de “o aveiro” peço que aceitem um abraço solidário. Raramente, muito raramente me telefona o Pedro Farias. Muito menos à segunda. Em resposta, a voz cansada murmura: Abril em Aveiro, para sempre.



[o aveiro;30/04/2009]

um dia daqueles

Todos os dias olho um pouco para a frente - uns minutos de futuro que logo logo se tornam em passado - olhando para trás. Nunca saberei se o sentimento de mim no passado envolve o que chamam a saudade de outros tempos. Sei que há uma dose de melancolia que não inclui culpa ou arrependimento. De certo modo, para mim mesmo construí um estatuto de pequeno nada, um estatuto de partícula de memória com registos das circunstâncias e dos movimentos entre elas. Um entre outros, uma partícula entre outras - acções e reacções, instantes feitos de eternidade, um ou outro dia a ser o tamanho da vida inteira. Os meus olhos perdem-se de espanto perante um dia como o 25 de Abril de 1974. Apesar de não guardar senão uma memória de farrapos de evidências de uma desorganizada fila de espera de orelhas aptas a ouvir um grito do tipo: dispersaaaaaar ap!

Há quem aponte a bondade e a segurança do passado contrapondo a maldade e a insegurança do presente e do futuro, sem memória de ter feito o mesmo todos os dias da sua vida. Há quem aponte o aumento do custo de vida e se lembre do que podia comprar com cinco tostões ou com o escudo guardado em cofres de memória, ainda há quem fale em fortunas de vinte mil reis num tempo em que a unidade monetária é mais ou menos tanto como duzentos mil reis. E há quem compare os números da corrupção de hoje com os números da corrupção do tempo da outra senhora que nunca dava a conhecer os números e muito menos deixava discuti-los na praça pública. E todos os dias me pedem que fale dos últimos 35 anos no que valeu a pena, apontando-me todos os erros de toda a gente como sendo os erros do 25 de Abril e este dia brilhante dia de 1974 como o primeiro dia de todos os erros até ao erro de termos chegado aqui.

Resuma, resuma. Diga numa palavra, vá lá. E eu fico tentado a resumir tudo na palavra democracia que nos permite escolher a forma e a composição do poder, da soberania e dos seus órgãos. E eu fico tentado a pensar na palavra paz e na palavra independência que tantas vezes escrevi nas paredes do meu país. Mas não a digo.

Porque é a liberdade que é tudo. Mesmo quando parece nada, a liberdade é tudo o que é preciso para que cada um seja parte inteira do todo. Uma palavra, um só grito: Liberdade! A liberdade de Abril? A liberdade de todos os dias. A liberdade.

[o aveiro; 24/04/2009]

a democracia do negócio

Pelo meu lado, todos os actos da administração pública devem ser simples, rápidos e eficazes. Sou a favor da certidão e dos bilhetes de identidade na hora, da empresa na hora, do tratamento na hora, etc. É bom tudo o que permitir que verdadeiros empreendedores prossigam objectivos individuais e sociais sem calvário de perseguições burocráticas que os convide ao desânimo. Verdadeiros empreendedores, capazes de criar ou aproveitar a sua oportunidade. Há negócios de ocasião justos e necessários que não podem ser travados.

Há ocasiões. Só que da ocasião também vive o ladrão. Há ocasiões que são forjadas, há coincidências que são forjadas na base de informação privilegiada e muitas vezes ilegítimas (ainda que legais, a maior parte das vezes, ou legalizadas por quem de direito) para determinada ocasião. Uma medida política pode fazer da necessidade do estado a manjedoura para negociantes oportunistas que criam empresas para negócios instantâneos aptas a falir ainda crianças com fundos a investir noutro país qualquer ou a desaparecer numa nebulosa. Lemos os jornais e custa-nos a acreditar na inventiva dos criadores de empresas locais, beneméritos criadores de emprego e desemprego (subsidiados, claro!) que fazem emigrar o capital e o lucro do seu labor patriótico.

Em muitos aspectos, parece-nos que vivemos uma democracia do negócio. Claro que não podemos dizer que o negócio foi democratizado porque os nomes a que os jornais se referem estão ligados em teia, em famílias de mães, tios primos, amigos de longa data e afilhados... muitos deles sempre a jogar ao centro ou no centrão do poder. Não há muito tempo, o banco privado ou o banco português dos negócios apareciam-nos como enigmas portugueses. A crise veio para fazer do charco enigmático um espelho de água, bancos de fachada, opacas fachadas de banco de onde somos vistos pelas coisas que não vemos.

Finalmente o espanto vai para a novidade das famílias nos jornais. Que sabe cada um de nós do que faz ou deixa de fazer um qualquer dos primos? Andamos nós a falar das famílias e da fragilidade dos laços de família. Esta crise veio mostrar que nada há a temer quanto aos valores das famílias, pelo menos de algumas. Unida como poucas, a família dos negócios prospera. Há uma moral material.

[o aveiro; 17/04/2009]

os dias que contam

Nenhum de nós sabe quanto custa um abraço. Com gosto, pagamos todos os abraços solidários sem contarmos os tostões. Não regateamos o preço de cada escola que construímos, de cada encontro com o conhecimento, de cada momento de cultura, de cada momento de criação. Porque pagamos um alto preço quando falhamos uma (re)construção cultural, quando falhamos um encontro com a ciência ou com a literatura, quando falhamos a festa do cidadão em construção.

Vem tudo isto a propósito da festa que é o Campeonato de Jogos Matemáticos, cuja final se realizou este mês na Covilhã. Milhares de jovens e professores das escolas do país envolvem-se no estudo dos jogos e na competição entre jovens que se mantêm atentos por saberem que tudo depende da atenção presa a cada passo de uma estratégia ganhadora. Não se trata de jogos de azar ou de sorte e é preciso não cometer erros de estratégia, nem erros de raciocínio combinatório e manter uma grande disciplina de espírito temperada pela criatividade que desequilibra. Milhares de jovens, muitos milhares de jovens portugueses revelam-nos o interesse mágico da matemática, uma outra vida. Começa a ser claro que a matemática da escola já vai muito para além da matemática das aulas tal como nós a pensamos e que, para muitos jovens, essa é a matemática que importa, essa é a matemática em que revelam competências insuspeitadas. No tabuleiro e nos movimentos das peças com vista a um objectivo preciso há intuição e matemática da melhor, cujos pedaços vão sendo organizados ao longo da vida escolar mesmo quando não parece, ainda que a teoria não faça o jogador.

Pela primeira vez, este ano, participaram jogadores cegos no campeonato nacional dos Jogos Matemáticos, com jogos matemáticos construídos expressamente para serem jogados por cegos. As peças e os tabuleiros podem ser diferentes, mas a matemática em jogo é a mesma. Assisti à festa e estive na entrega dos prémios a campeões, sabendo que ao lado de cada jovem que sobe ao pódio há um animador e professor que recebe o prémio e o percebe de um outro modo. Ganhei o dia. Ganhei um dia glorioso por, sem mérito algum, ter entregue o prémio a um jovem campeão cego com a consciência de que, naquele tabuleiro, ele sabe muito mais matemática que eu.

Os dias que contam contam-se pelos dedos das mãos.

[o aveiro; 27/03/2009]

desenho com a mão que escreve

onde?

vais buscar-me onde?
nos últimos dias ninguém parou para olhar quem era aquele que passava e foi por isso que me esqueci de parar e saltei todos os muros até me perder no labirinto sem ter o cuidado de deixar rasto nem ter rasgado a mão direita contra a sebe.
se tentar voltar atrás não posso saber onde vou ter e se continuar em frente não sei se ando às voltas simplesmente porque nada há de diferente para quem não viu nem vê como são as paredes vegetais.
vais procurar-me onde?
não há sinais. sinto um cheiro a antigo corrimão metálico mas não sei se o cheiro é meu ou anda sempre comigo como se eu fosse o corrimão que me apoiou na queda. ou na subida? como posso eu saber onde procurar-me? não sei onde te perdi ou sequer quem és e tu não sabes onde me perdeste.
é por isso que eu não posso encontrar-te e tu não podes procurar-me. não sabes se eu espero ser encontrado e eu não sei que é feito de ti.
cada um tomou o seu lugar em sua ilha do labirinto. ouvi perguntar quantas ilhas tem este labirinto? e eu não soube responder nem a quem. de quem foi a pergunta?
vais encontrar-me onde?
já me disseram que duas pessoas que se procurem estão a afastar-se irremediavelmente. por puro acaso.

a paz do olhar

desenho, logo existe



desenho, logo existe



desenho, logo existe



azedas?


Nesta época do ano, olho para os caules verdes encimados por flores amarelas brilhantes e vem-me a memória da infância em que mastigava caules amargos da borda dos caminhos, como agora se mastigam pastilhas elásticas. Presos nos jardins murados da escola, milhões de caules iguais aos da minha infância levantam-se e quem os corta e mastiga é a máquina de cortar relva, à falta de dentes e apetite do suco vegetal amargo. As voltas que a vida dá. Como se chamará essa planta?


Oxalis europaca, família das aleluias/Oxalidáceas - diz H.F. Será?

olho para o céu, vejo braços

astronomia

2009 é o Ano Inernacional da Astronomia (ver http://www.astronomia2009.org/). Em toda a parte se celebra a ciência que nos demos e damos uns aos outros, a partir de maravilhas que vemos e adivinhamos. Há uma celebração do nosso planeta e, a partir dele, de todos os astros que a humanidade não desiste de procurar. Há uma celebração da humanidade no olhar para dentro da sua acção aparentemente perpétua em busca do que nos escapa, mas também nos explica. Todos os dias criticamos a nossa acção humana que destrói, todos os dias nos maravilhamos com a nossa acção que constrói as pontes para fora de nós e nos deixa ver os outros astros que só podemos adivinhar e imaginar quais pintores de sonhos. E, na ciência, celebramos o que de melhor somos na compreensão do que não podemos atingir com as nossas magníficas mãos, despidas de tecnologia, mas podemos comprender com a inteligência despida de preconceitos e ancorada no conhecimento que herdámos. Por isso, celebramos todos os que olharam para os céus em busca da verdade por saber e sofreram horrores para nos darem a visão das coisas que não são conformes aos sentidos ou às crenças dominantes. O que as escolas ensinam, sem mistérios, é o resultado de um lento desenvolvimento, de uma luta milenar, de uma busca tão mais humana quanto nos parece sem sentido e sem utilidade para cada geração. O Ano Internacional da Astronomia aí está, não para nos fazer esquecer a crise e a obra nefasta de parte da humanidade, mas para lembrar a todos que há esperança sem fim e há esperança até nos confins do universo limitado que nos vem desde o princípio dos séculos humanos e nenhuma crise humana (e foram tantas!) foi capaz de travar a meio do caminho.

Aveiro tem um céu especial que deve ser olhado em si mesmo por todos os que se maravilham com o que ao longe podem ver e podem compreender, nas suas relações, pela via da ciência. É altura de chamar a atenção dos jovens para os modelos matemáticos que nos fornecem explicação para o funcionamento actual das coisas no universo, tal como as vamos conhecendo, e nos alertam para tudo o que, com base nos modelos, pode acontecer com elevada probabilidade.
Cada um de nós aparece e, um momento depois, desaparece deixando um rasto de memórias e não mais que isso. Assim pode acontecer com a humanidade inteira.

O céu por escalar é um impulso. Olhemos para o céu. E olhemos por ele, amorosamente. O céu não pode esperar.

[o aveiro; 13/03/2009]

piano


The Piano from Arthur Molenaar on Vimeo.

pela mão do Pedro Aniceto ou de um cão com pulgas reflexivo

o tempo

a temperatura da primavera subiu ligeira as suas escadas, a meio parou e sentou-se ajeitando a saia e soltando os cabelos com gestos precisos. um trânsito de pétalas carnudas, brancas e rosadas, pedia uma lentidão consentida a quem passava: quem por ali passava, tardava em passar.

e eu, sem pensar, estacionei o camião na rua de cima. depois desci as escadas e deixei que o meu corpo adormecesse. as flores tomaram o meu lugar enquanto eu perdia a forma de existir para os outros,

não ganhei para o susto. ganhei consciência do peso dos que passavam sem dar por mim.

a conta calada

José Sócrates vestiu o (ul)traje da solidão obcessiva. Como se um partido pudesse deixar-se substituir por uma pessoa. Identifica-se e determina-se por oposição, rejeita-se por oposição. Cego e surdo vive num deserto. Há uma multidão de mãos de apoiantes sem cabeça e ideias a erguerem-se para ele como esperança no poder, parece que o levantam aos céus de um filme épico, não sendo eles mais que migalhas ou grãos de uma areia movediça que tudo consome. Há uma multidão que o rejeita como solução e ele não vê mais que uma campanha de rostos encapuçados por negros presságios de desgraça. Todos os dias recebe os mesmos avisos por altifalantes estrangeiros como ecos dos avisos que cá dentro compoem uma paisagem assim não, e ele afasta com gestos impacientes esses sinais voadores e a mosca que não se deixa apanhar e zumbe em vários comprimentos de onda. Já não discrimina o que cada um dos outros diz e tudo reduz a uma mancha sonora de desaprovação insensata. Prega no deserto a maioria absoluta como a criança espeta pregos na areia da praia, só que a criança sabe que prego que se espeta é prego que se desprega para recomeçar sempre do mesmo modo, até que o regresso a casa limpe o rasto do jogo. Mesmo que venha a obter uma maioria absoluta de mãos que pregam como ecos dele, ela só servirá para o reduzir a si mesmo ou a nada. O poder ensurdece e cega. A partir de certa altura, passeará de uma sala para outra por sombrios corredores do poder, movido a ar comprimido numa atmosfera de ar condicionado. O pior que lhe pode acontecer é ser cercado por criaturas de ar resignado que colhem os votos populares como se fossem um só: ele. Ele verbaliza uma razão trágica quando declara que governa, não quem representa, antes, quem é escolhido ou ungido, e, por isso, pede uma maioria absoluta para ser ele o primeiro ministro. E nós já sentimos como isso é verdade.

Por amor das pessoas, de Sócrates, da cidade e dos cidadãos, elevamos a voz contra a resignação e em apelo ao julgamento crítico. Em modo de oração democrática, humildemente, declaramos a nossa esperança nos que tudo ouvem, discutem e levam em conta para criar opinião própria e, em consequência, agir livremente em votações, livres e não condicionadas por fantasmas que confundem a saída da crise com a porta da casa do poder atravessar paredes...

[o aveiro; 6/03/2009]

março

os cães rosnam aos cheiros aéreos e as cadelas vagueiam
pelo relvado provocando fúrias
grandiosas ou grandiloquentes como quiserem
os professores que ensinem a melhor forma
para dizer estas coisas a animais

pachorrentos que olham sem ver
o apetite do açougueiro
que os pesa com o olhar

e lamenta a morte dos cães nos canis municipais
em terras onde os talhantes honrados não vendem carne de cão
publicamente

de nada

O guerreiro empunhou a lança.
Estranhou a curva da lança que lhe fez lembrar um podão que usava para cortar ramos de videira e esgalhar as pontas dos vimes. Não se lembrava de ter visto outra lança assim curva como aquela. Quem teria sido o podão de ferreiro para fazer aquele trabalho?
Demorou tempo demais a pensar enquanto os cavalos se aproximavam do acampamento. Quando recuperou da distracção reparou na tensão dolorosa dos seus músculos retesados e deu ordem para libertar a lança presa ao seu espanto.
Viu como ela partiu e com maior espanto a viu voltar. Até que deixou de ver.

a coisa


Podes olhar e ver um espelho simplesmente um espelho decorado a ferro forjado ou ver uma janela que pode abrir-se ou a geometria da decoração em ferro forjado ou a transformação geométrica da árvore em imagem ao espelho ou imaginar e ver a forja a face tisnada do ferreiro o martelo nas mãos calejadas do ferreiro as faíscas saltando da bigorna a labareda como um sopro do carvão incendiado o ferro vermelho contorcendo-se de dor de queimado e torturado ou como uma cobra apanhada e depois sempre presa mergulhada na celha ou no ribeiro que ali passa para que se torne rígida a forma temperada na forma de uma encomenda desenhada por uma tradição vista num risco de pais para filhos ferreiros todos ou podes concentrar-te no vidro e do fogo que consumiu a areia até ser vidro e espelho. Podes ver o que quiseres. Assim o queiras ver.

quarta de cinzas

Há 70334 novos desempregados - escreve-se nos jornais destes dias, apesar de Janeiro ter sido simultaneamente o mês de mais oferta (8821) e mais colocações (4219). As empresas aproveitaram os fins dos contratos a prazo para os não renovarem. O exército de desempregados conta agora com quase meio milhão de portugueses (447966). E é no norte do país que o contingente de desempregados é maior.

A este respeito, os partidos que se têm revezado na governação fazem declarações de carnaval a roçar o obsceno. Para além das almofadas do emprego no sector público, os dirigentes políticos cansam-se em acusações mútuas sobre as políticas que cada um deles seguiu. De tal modo se cansam nisto que parecem cegos na realidade. A realidade que importa considerar está nas pessoas e famílias de pessoas em busca de solução para o dia a dia difícil e intolerável e não em abstractas considerações estatísticas de mais ou menos pontos percentuais. Todos os dias, dia a dia, os desempregados são pessoas que buscam uma oportunidade de trabalho produtivo pelo qual recebam salário que viabilize a vida familiar e dê curso a uma vida produtiva, socialmente útil.

O discurso directo de cada um não pode ser ensopado em caldo de estatísticas que se usam como espadas de brincar nas mãos dos foliões dos governos. Não há optimismo que subsista no mundo de cada desempregado se o seu mundo se mantiver em derrocada. E não há pessimismo que nos salve se o pessimismo sobre as políticas do aparente inimigo esconder o que ontem fizeram e querem voltar a fazer no poder a que anseiam voltar. Sem nada fazer para devolver à sociedade a vida produtiva de cada produtor e consumidor.

A época também revelou que das nossas empresas, registadas como tal, há 71882 que empregam ninguém. Máscaras? A maioria destas empresas não representa iniciativas familiares de auto-emprego a confiar na sua classificação por sectores de actividade. Empresas de nada e de ninguém? Ou é a sua força produtiva que mantém a lucrativa indústria de recibos verdes?

Carnaval? Quarta de cinzas..

[o aveiro; 27/02/2009]

o espelho

amanhã e depois de amanhã ainda lá estará o espelho



mas não ficará lá para sempre assim tão velho
como a árvore que nele se reflecte

os anjos de barro

os anjos de barro estão mais que mortos.

todos sabemos que foram amassados
carinhosamente e depois com crueldade
moldados em forma de anjos

antes de serem cozidos em forno ou inferno

como queiram.

raia de steiner



animamos um "lugar geométrico" ou dois.... para nos darmos uma curva ou duas onde se ajustem e descansem os nossos pontos pequenos como olhos e as nossas rectas como trágicas varas

as perguntas e as respostas

Caminho pelas manhãs dos dias, respondendo a cumprimentos vagos. Habitualmente. Mas agora, cada vez mais frequentemente, as pessoas que me conhecem acrescentam perguntas do tipo: Ainda está no activo? Ainda não se reformou? Porque é que tira o chapéu com este frio? Hoje assim aconteceu. Nunca sei muito bem o que responder. Mas respondo mais ou menos maquinalmente, porque todas as perguntas têm resposta. Não posso responder que não sei, mas também não posso responder que sei. Respondo que sim, que estou activo, que ainda não me reformei, que tiro o feio chapéu num gesto automático de cumprimento. Outras perguntas mais raras: Então a avaliação? Ainda vai querer ser avaliado? Para quê? Anda sempre a contestar políticas e leis e ainda vai cumprir a lei feita por um governo de que discorda e não elegeu? Podia responder: Sei lá. De facto, a minha vida democrática é feita de desacordo com os partidos de governo e com muitas das leis que são promulgadas. E, sem deixar de as discutir, cumpro as leis da minha república. Da república das bananas? acrescentam. Parece, mas não é. E eu, que só respondo pela minha cabeça em vias de reforma, digo que discuto as leis e as respeito quando aprovadas pela maioria dos eleitos. Se assim não fosse, não podia esperar dos outros que cumprissem as leis que, em minha opinião, são boas. E teria de achar que vivíamos numa república de bananas, onde cada intenção de grupo vale como lei ou mais que a lei. E nada vale, valendo tudo de igual modo. Por isso, vou cumprindo as leis desta república sem qualquer desejo de voltar ao tempo em que as leis do governo não passavam pelo crivo do parlamento, da presidência, do acordo constitucional, dos tribunais, das eleições. Está bem. mas para o seu caso, o governo já abriu excepção em lei. Pois, abriu excepção, mas não me retira o direito de ser igual aos outros que cumprem a lei geral. Já antes isso me aconteceu. Abriram excepções para os presidentes dos conselhos executivos e eu, presidente do conselho executivo, recusei ser tratado de forma diferente dos meus colegas de profissão que continuavam a ser avaliados com as regras da altura. Que me podem perguntar a seguir? Vai ganhar mais? Não. Então para que é que isso lhe serve? Para ser o mesmo. Isso não é grande coisa. Pois não. Mas sou eu. Diferente de todos os outro? Diferente, claro. Mas mais igual, me parece. E depois? Sei lá. As respostas não são boas? E as perguntas?

[o aveiro; 13/02/2009]

baile


uma e outra camada de negro veste o verso: na esperança que por uma fenda negra ensaia um passo de dança quando eu não sei dar conta do que tenho entre mãos e me dá para não chorar um pincel varre as lágrimas para debaixo do tapete negro e as esconder dos olhos.

vouga


naquele dia o vouga saltara do seu leito e trabalhava por ali perto animando os sapos a parecerem príncipes não vá aparecer a donzela que nos quebre o feitiço

memória e procura

Arrumamos a nossa vida em pequenos cubículos. Uma parte da minha vida passa-se entre papéis poisados em estantes. As estantes são sólidas e a maior parte dos livros aparecem poisados em lugares que não são disputados por outros papéis. Mas a maior parte dos papéis parecem ter sido despejados a esmo por cima de outros e a desordem que nos dão a ver não é aparente. A família diz que aquele lugar e outros dos meus lugares só merecem uma classificação na porta ou na lombada: DIVERSOS. Para toda a gente, a desordem. Para mim, a ordem. Sabia onde se encontrava este ou aquele papel e sabia onde entra o computador e onde se alimenta, onde as mãos cabem e podem esticar os dedos, onde está o papel em branco, onde estão as canetas, onde me posso sentar, como posso escalar até aos papéis do alto.
Mas, recentemente, dei por mim a ter medo de arrumar este ou aquele conjunto de folhas. Ali, naquele mundo ordenado na minha memória passada, passaram a suceder-se jogos de gato e rato. De gatas, procuro o rato que arrumei. Como um gato me vejo pendurado, gestos cautelosos de felino para nada ser mexido e meticulosos exercícios de rememorar os lugares do papel que arrumei antes com tal cuidado que nunca me esquecesse do seu lugar.
No meu mundo, sei agora que arrumar é esconder e perder. E descobri que foi assim no passado. Ao procurar os papéis que preciso hoje sem falta, descubro papéis que devo ter arrumado cuidadosamente no passado e de que nem me lembrava agora. A busca de um papel arrumado ontem é um exercício lento e laborioso hoje, mais lento porque encontro o que já nem existia por não poder ser nomeado por mim, que lhes dera existência.
O mesmo se passa com o que só existe em discos, vários ali perdidos entre os papéis e vários em outros países e paraísos onde memórias minhas ficaram guardadas e de onde podem ser visitadas. Quando procuro isto, aparece-me aquilo. As palavras que eu associo ao perdido não nomeiam o que eu perdi, mas nomeiam, muitas vezes, o que eu esqueci e, por isso, não existe.

Nestas condições, sigo com muito interesse e atenção, a campanha negra. Leio notas de jornal, ouço investigadores e procuradores sobre os rastos do dinheiro, das agendas e das vidas virtuais dos suspeitos. Algumas vezes, pensamos que eles tinham destruído os rastos quando afinal os tinham arrumado para os perderem. Rezo pelo sucesso dos investigadores e procuradores.

Confiarei num procurador para os “diversos” onde a minha vidinha se perdeu? Depende muito da campanha em curso.

[o aveiro; 7/02/2009]

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