desagradável
não sou nem quero ser perfeito ou cópia de modelo
com medidas ou virtudes escolhidas por alguém que pense ser
modelo perfeito, belo e virtuoso
sou velho demais para seguir caminhos direitos
sou cabeçudo demais para corredores estreitos
e sou gasto demais para não ser intratável e rugoso
e feio à vista e ao ouvido e ao tacto e ao paladar
sou velho demais para saber que sou eterno
não aqui não no céu e não no inferno
mas só porque não sou biodegradável
ou por ser, para tudo e todos, bem desagradável
sou velho demais para saber que um dia de vida
pode ser uma eternidade bem viva
e o eterno pode ser um só instante à deriva
uma partícula de tempo em tempos perdida
amiúde vagueio sem virtude mas sem receio
também sem conta e sem medida
como a vida
ou como a morte ou a falta dela
foi tudo o que ele disse olhando-me como se fosse eu na outra margem
com medidas ou virtudes escolhidas por alguém que pense ser
modelo perfeito, belo e virtuoso
sou velho demais para seguir caminhos direitos
sou cabeçudo demais para corredores estreitos
e sou gasto demais para não ser intratável e rugoso
e feio à vista e ao ouvido e ao tacto e ao paladar
sou velho demais para saber que sou eterno
não aqui não no céu e não no inferno
mas só porque não sou biodegradável
ou por ser, para tudo e todos, bem desagradável
sou velho demais para saber que um dia de vida
pode ser uma eternidade bem viva
e o eterno pode ser um só instante à deriva
uma partícula de tempo em tempos perdida
amiúde vagueio sem virtude mas sem receio
também sem conta e sem medida
como a vida
ou como a morte ou a falta dela
foi tudo o que ele disse olhando-me como se fosse eu na outra margem
onde nos sentamos a ver o mar
para sentirmos o céu imenso deitamo-nos de olhos abertos
vasculhando a terra
para saborearmos a pequenez da terra fincamos os pés no chão
abrindo os olhos à poeira luminosa do céu
para vermos quem amamos fechamos os olhos
e as mágicas pontas dos dedos
a medo
se abrem em corolas das mãos
e se
por momentos
o universo inteiro
sossega nas conchas das nossas mãos
por momentos
pulsa uma vida inteira
vasculhando a terra
para saborearmos a pequenez da terra fincamos os pés no chão
abrindo os olhos à poeira luminosa do céu
para vermos quem amamos fechamos os olhos
e as mágicas pontas dos dedos
a medo
se abrem em corolas das mãos
e se
por momentos
o universo inteiro
sossega nas conchas das nossas mãos
por momentos
pulsa uma vida inteira
Faz bem à Madeira, ...
... não a mim que me habituei a viver sem guelras. Asfixio, pois.
Mas não é como estão pensar. Nem porquê.
... É só humidade excessiva. O que mais poderia ser?
Mas não é como estão pensar. Nem porquê.
... É só humidade excessiva. O que mais poderia ser?
a quanto?
valemos quanto? quanto valemos.
a quanto se vendem quantos? uns quantos se vendem a quanto.
um vale quanto? quanto vale um.
quanto vale cada um? em média, a média.
a quanto se vendem quantos? uns quantos se vendem a quanto.
um vale quanto? quanto vale um.
quanto vale cada um? em média, a média.
insulto seguido de provocação
Quem sabe, faz. Quem não sabe, ensina.
Bernard Shaw
Que não sabe ensinar, forma os professores. Quem não sabe formar professores, faz investigação educacional.
acrescentado por António Nóvoa
citado deAntónio Nóvoa . Professores - Imagens do futuro presente.Educa. Lisboa:2009.
Bernard Shaw
Que não sabe ensinar, forma os professores. Quem não sabe formar professores, faz investigação educacional.
acrescentado por António Nóvoa
citado de
o instante da eternidade
Que farás tu se eu arranhar a tua porta?
- Estou pronto. Podes entrar. Vens ficar comigo? Vens buscar-me?
E se eu te der uma chave para a vida eterna?
- Posso usá-la mais tarde?
Porque não aproveitas logo?
- Não queres gozar comigo a inquietação da vida instantânea?
Posso?
- Comigo podes sempre contar ...
- Estou pronto. Podes entrar. Vens ficar comigo? Vens buscar-me?
E se eu te der uma chave para a vida eterna?
- Posso usá-la mais tarde?
Porque não aproveitas logo?
- Não queres gozar comigo a inquietação da vida instantânea?
Posso?
- Comigo podes sempre contar ...
uma manhã
rezo as matinas.
a quem levanto a voz? é a pergunta breve
que me ocorre tão sussurrada como o são as matinas
no seu silêncio vazio que as faz tão leves
até, sem ganhar asas, voarem livres de peso
atraídas por um farrapo de azul
ou por uma mão cheia de nada, a eterna
realidade que, sem o ser, persiste
sem ser alegre e sem ser triste
a quem levanto a voz? é a pergunta breve
que me ocorre tão sussurrada como o são as matinas
no seu silêncio vazio que as faz tão leves
até, sem ganhar asas, voarem livres de peso
atraídas por um farrapo de azul
ou por uma mão cheia de nada, a eterna
realidade que, sem o ser, persiste
sem ser alegre e sem ser triste
novo ano de lições
nestas horas matinais, a aragem fresca fala
a quem quer ouvir a fala da aragem
e, mesmo sabendo da iminente viagem,
sai para o futuro sem antes arrumar a mala
a quem quer ouvir a fala da aragem
e, mesmo sabendo da iminente viagem,
sai para o futuro sem antes arrumar a mala
féretro
quando as portas de Agramonte se abrem para a paisagem,
última e cega dos que, ao nosso lado, fizeram a sua viagem
guiando passos incertos dos incertos caminheiros que somos
abrem-se também para um abismo onde somos o que já fomos
de par em par por um ventinho bom, uma memória da passagem
até lá, ao fundo do imaginário mira douro
última e cega dos que, ao nosso lado, fizeram a sua viagem
guiando passos incertos dos incertos caminheiros que somos
abrem-se também para um abismo onde somos o que já fomos
de par em par por um ventinho bom, uma memória da passagem
até lá, ao fundo do imaginário mira douro
... quase, quase a acordar
Descansei em ti o meu olhar, como só uma ave cansada de voar pode olhar. Digo-te adeus hoje e sei que não posso deixar de te dizer amanhã adeus de novo. De asas cansadas, poisarei no teu beiral, só por um instante te olharei, alisando maquinalmente as minhas penas sem ânsias de voar, mas certo de partir. Parto para longe, onde não possas ouvir-me gritar, depois da volta larga em frente da tua janela. Parto sem partir definitivamente. Digo-te um adeus sumido. Porque não sei mais que dizer ou fazer e os meus gestos têm a economia própria de quem voa. Quem voa assim tão desajeitadamente? ouço o espanto de uma ave verdadeira, enquanto eu caio a pique ... quase, quase a acordar.
féretro
as paredes acolhem a minha sombra
e eu encolho-me até ser uma sobra
da sombra, uma sombra da sombra:
do chão à parede, a linha da dobra.
e eu encolho-me até ser uma sobra
da sombra, uma sombra da sombra:
do chão à parede, a linha da dobra.
a catedral privada
se ninguém ouve a música que enche a nave direita,
menos imaginam o sermão da nave esquerda:
pois só eu sei como é insuportável esta merda
de estar em duas missas cantadas de uma só feita.
menos imaginam o sermão da nave esquerda:
pois só eu sei como é insuportável esta merda
de estar em duas missas cantadas de uma só feita.
Isabel
Na página do ICA - Instituto do Cinema e do AudioVisual - a morte dela foi notícia nestes termos:
Morreu Isabel Alves Costa
Nascida a 30 de Julho de 1946 no Porto, Isabel Alves Costa, que recebeu em 2006 a distinção "Cavaleiro das Artes e das Letras" do Estado francês, faleceu hoje, dias depois de ter completado os 63 anos. Conceituada figura do meio artístico do Porto, Isabel Alves Costa era, actualmente, directora do Museu da Marioneta após, durante 13 anos, ter sido directora artística do Teatro Rivoli. Isabel Alves Costa doutorou-se em Estudos Teatrais pela Universidade de Sorbonne (Paris, França),em 1997, tendo obtido cinco anos antes o diploma de Estudos Aprofundados no Instituto de Estudos Teatrais daquela Universidade. Isabel Alves Costa fazia parte da bolsa de Júris de Selecção do ICA.
Transcrevo para agora e aqui, um texto que escrevi, há mais de 20 anos, inspirado num incidente que fez da professora contratada Isabel uma professora desempregada. Soube disso por Manuela Ferreira, então educadora num lugar de Castelo de Paiva. Conhecia a Isabel há muitos anos, encontrei-a muitas vezes, mas nunca falámos disso. No texto escrito é tudo ficção (ou quase). Real é a solidariedade de então e a memória de hoje. Trago-a à minha memória como professora contratada.... no seu movimento e drama, como a vida é.
Movimento e Drama
Quando ela entrava na sala, eles já lá estavam sentados pelo chão. E já tinham arrumado para os lados as mesas e as cadeiras. Ao meio da sala tinham deixado a mesma velha cadeira de sempre.
Ela trazia pelos ombros uma manta exótica, a tiracolo uma saca de pano, duas rugas cavadas perto dos olhos, o cabelo atado por um elástico de notas e um sorriso tímido deformando-lhe a boca.
Amélia da Fonte Seca pousa o saco na mesa mais perto da porta, despia pela cabeça a manta que a fazia parecer grande e forte que ia fazer monte por cima do saco. Sobrava sua figura magra e pequena moldada pelas calças pretas coçadas e pela camisola preta de gola alta.
Eles já se tinham preparado e, por isso, o mundo era a sala com o seu espesso silêncio, o de habitantes que esqueceram tudo o que não é a respiração que se ouve.
Neste mundo não corre a mais leve aragem.
Amélia conhce-os bem. Demorou-os nos primeiros exercícios de relaxamento, de apagar as marcas das inibições do uso do corpo em relação consigo e com os outros corpos, nos exercícios do mais profundo acordo e desacordo “consigo mesmo”. Sabe que estão preparados para, a partir de nada, criar outra realidade e vivê-la.
E é como se tivesse crescido o corpo da Amélia, quando se ouviu a sua própria voz:
Filipe! Estás a ouvir o vento? Começou mesmo agora a soprar. E é tão bom neste dia de calor. Primeiro suavemente e depois cada vez mais forte.
O Filipe e os outros olharam-se e começaram a ver. Parecia que o cabelo da Amélia se tinha soltado ao vento e ondulava. E o sorriso dela era deliciado e era como se os dedos abertos dela estivessem a ser refrescados e que o vento estivesse limpando o suor. Todos, incluindo a Mariana que não vai em cantigas, sentiam o vento cada vez mais forte e começaram a ver o mar a desdobrar-se onde antes o soalho não era mais que um tapete coçado. E viram-na desenhar no ar ondas que no ar ficavam bem visíveis.
Apagou a luz. Fechou as cortinas e disse:
Hoje vamos ver os gatos e os ratos. Os seus movimentos para um drama. Olhem para os meus olhos. São amarelos e brilham.
E a Mariana viu que havia naquela escuridão os olhos de um gato. Amarelos e brilhantes.
Quando a Amélia fechou os olhos e os voltou a abrir nada se via. Disse:
Os meus olhos de rato são pretos e baços. O gato não me vê e eu vejo-o e ando por perto. O meu corpo é cinzento e baço. Quando o gato me cheiram, os olhos brilham-lhe (e viram-se os olhos do gato Filipe brilhando), mas eu escorro por baixo das mesas e pelos buracos (e sentiu-se a Mariana correndo para baixo da mesa do fundo).
A voz da Amélia, depois a voz do tímido Joaquim de Albergaria, criaram uma tempestade. E viu-se a faísca que o Joaquim criou e viu-se a trajectória dos olhos amarelos do Filipe que saltava para abraçar com as suas garras o rato Mariana, descoberto pelo flash do relâmpago. Sentiram que a Mariana estava morta e era arrastada para o canto mais tranquilo onde o gato Filipe despedaçava as suas presas.
Amélia acendeu a luz, abriu as cortinas. E disse que tinha sido bom.
Vestiu a manta, pegou no saco, verificou se tinha o passe para regressar ao Porto e lembrou o ensaio de 6ª.
Foi assim e diferente a vida da Amélia. Tinha abandonado tudo ao tempo da pura euforia para pegar e largar futuros professores do ensino primário, capazes do movimento e do drama.
Trabalhou. Recebeu o seu magro salário de contratada a prazo. Feliz uns dias. Cansada sempre. Mas das suas aulas criadoras de vento, ficaram sulcos indeléveis nas aulas de gerações de professores. Alguns, regressados à terra, por lá andam criando tempestades e inventando o drama do gato e do rato e mudando a face do mundo.
Mas Amélia da Fonte Seca não tinha uma ciência exacta para dar, nem tinha procurado licenciatura para se segurar e segurar outros contratos melhores. E um dia o Ministério descobriu que tinha de eliminar uma despesa. Procurou a despesa como um gato atrás do rato. Uma faísca iluminou o canto do Magistéio emq eu Amélia se escondia. As garras de tinta vermelha dispensaram para o canto dos desempregados a Amélia da Fonte Seca.
Não é pura coincidência se esta história lembrar alguma realidade que não é das criadas pela Amélia. Talvez a Amélia exista e exista este movimento e este drama.
O Filipe e a Mariana dizem que o Joaquim de Albergaria já não distinguia os dois mundos e, por isso, partiu para lá onde decretou que nada disto pode acontecer. Perturbador é viver deste lado do espelho. •
dedo no ar.4, 1ª série, 24/01/1986, rádio independente de aveiro, pela vo de josé antónio moreira
Morreu Isabel Alves Costa
Nascida a 30 de Julho de 1946 no Porto, Isabel Alves Costa, que recebeu em 2006 a distinção "Cavaleiro das Artes e das Letras" do Estado francês, faleceu hoje, dias depois de ter completado os 63 anos. Conceituada figura do meio artístico do Porto, Isabel Alves Costa era, actualmente, directora do Museu da Marioneta após, durante 13 anos, ter sido directora artística do Teatro Rivoli. Isabel Alves Costa doutorou-se em Estudos Teatrais pela Universidade de Sorbonne (Paris, França),em 1997, tendo obtido cinco anos antes o diploma de Estudos Aprofundados no Instituto de Estudos Teatrais daquela Universidade. Isabel Alves Costa fazia parte da bolsa de Júris de Selecção do ICA.
Transcrevo para agora e aqui, um texto que escrevi, há mais de 20 anos, inspirado num incidente que fez da professora contratada Isabel uma professora desempregada. Soube disso por Manuela Ferreira, então educadora num lugar de Castelo de Paiva. Conhecia a Isabel há muitos anos, encontrei-a muitas vezes, mas nunca falámos disso. No texto escrito é tudo ficção (ou quase). Real é a solidariedade de então e a memória de hoje. Trago-a à minha memória como professora contratada.... no seu movimento e drama, como a vida é.
Movimento e Drama
Quando ela entrava na sala, eles já lá estavam sentados pelo chão. E já tinham arrumado para os lados as mesas e as cadeiras. Ao meio da sala tinham deixado a mesma velha cadeira de sempre.
Ela trazia pelos ombros uma manta exótica, a tiracolo uma saca de pano, duas rugas cavadas perto dos olhos, o cabelo atado por um elástico de notas e um sorriso tímido deformando-lhe a boca.
Amélia da Fonte Seca pousa o saco na mesa mais perto da porta, despia pela cabeça a manta que a fazia parecer grande e forte que ia fazer monte por cima do saco. Sobrava sua figura magra e pequena moldada pelas calças pretas coçadas e pela camisola preta de gola alta.
Eles já se tinham preparado e, por isso, o mundo era a sala com o seu espesso silêncio, o de habitantes que esqueceram tudo o que não é a respiração que se ouve.
Neste mundo não corre a mais leve aragem.
Amélia conhce-os bem. Demorou-os nos primeiros exercícios de relaxamento, de apagar as marcas das inibições do uso do corpo em relação consigo e com os outros corpos, nos exercícios do mais profundo acordo e desacordo “consigo mesmo”. Sabe que estão preparados para, a partir de nada, criar outra realidade e vivê-la.
E é como se tivesse crescido o corpo da Amélia, quando se ouviu a sua própria voz:
Filipe! Estás a ouvir o vento? Começou mesmo agora a soprar. E é tão bom neste dia de calor. Primeiro suavemente e depois cada vez mais forte.
O Filipe e os outros olharam-se e começaram a ver. Parecia que o cabelo da Amélia se tinha soltado ao vento e ondulava. E o sorriso dela era deliciado e era como se os dedos abertos dela estivessem a ser refrescados e que o vento estivesse limpando o suor. Todos, incluindo a Mariana que não vai em cantigas, sentiam o vento cada vez mais forte e começaram a ver o mar a desdobrar-se onde antes o soalho não era mais que um tapete coçado. E viram-na desenhar no ar ondas que no ar ficavam bem visíveis.
Apagou a luz. Fechou as cortinas e disse:
Hoje vamos ver os gatos e os ratos. Os seus movimentos para um drama. Olhem para os meus olhos. São amarelos e brilham.
E a Mariana viu que havia naquela escuridão os olhos de um gato. Amarelos e brilhantes.
Quando a Amélia fechou os olhos e os voltou a abrir nada se via. Disse:
Os meus olhos de rato são pretos e baços. O gato não me vê e eu vejo-o e ando por perto. O meu corpo é cinzento e baço. Quando o gato me cheiram, os olhos brilham-lhe (e viram-se os olhos do gato Filipe brilhando), mas eu escorro por baixo das mesas e pelos buracos (e sentiu-se a Mariana correndo para baixo da mesa do fundo).
A voz da Amélia, depois a voz do tímido Joaquim de Albergaria, criaram uma tempestade. E viu-se a faísca que o Joaquim criou e viu-se a trajectória dos olhos amarelos do Filipe que saltava para abraçar com as suas garras o rato Mariana, descoberto pelo flash do relâmpago. Sentiram que a Mariana estava morta e era arrastada para o canto mais tranquilo onde o gato Filipe despedaçava as suas presas.
Amélia acendeu a luz, abriu as cortinas. E disse que tinha sido bom.
Vestiu a manta, pegou no saco, verificou se tinha o passe para regressar ao Porto e lembrou o ensaio de 6ª.
Foi assim e diferente a vida da Amélia. Tinha abandonado tudo ao tempo da pura euforia para pegar e largar futuros professores do ensino primário, capazes do movimento e do drama.
Trabalhou. Recebeu o seu magro salário de contratada a prazo. Feliz uns dias. Cansada sempre. Mas das suas aulas criadoras de vento, ficaram sulcos indeléveis nas aulas de gerações de professores. Alguns, regressados à terra, por lá andam criando tempestades e inventando o drama do gato e do rato e mudando a face do mundo.
Mas Amélia da Fonte Seca não tinha uma ciência exacta para dar, nem tinha procurado licenciatura para se segurar e segurar outros contratos melhores. E um dia o Ministério descobriu que tinha de eliminar uma despesa. Procurou a despesa como um gato atrás do rato. Uma faísca iluminou o canto do Magistéio emq eu Amélia se escondia. As garras de tinta vermelha dispensaram para o canto dos desempregados a Amélia da Fonte Seca.
Não é pura coincidência se esta história lembrar alguma realidade que não é das criadas pela Amélia. Talvez a Amélia exista e exista este movimento e este drama.
O Filipe e a Mariana dizem que o Joaquim de Albergaria já não distinguia os dois mundos e, por isso, partiu para lá onde decretou que nada disto pode acontecer. Perturbador é viver deste lado do espelho. •
dedo no ar.4, 1ª série, 24/01/1986, rádio independente de aveiro, pela vo de josé antónio moreira
fim a gosto
lembro-me do tempo em que o mês de agosto aquecia ao rubro as pedras e a areia e eu cortava a respiração sem desfitar as lagartixas até elas desistirem da cauda entre os meus dedos
e isso foi antes de eu brincar ao jogo do sério
lembro-me também de haver assuntos que precisavam de tanto tempo para serem estudados que eu nunca estudava por não ter tanto tempo assim ou era o calor de agosto a entorpecer-me a vontade
e isso foi antes de eu brincar ao jogo da velhice
agora eu passo o mês de agosto a cansar-me numa banheira de água salgada na esperança de caminhar normalmente o resto do ano e não haver quem dê por ela até que mesmo eu pense que não há problema e tudo está bem
sabendo que tudo está bem quando acaba em bem
e isso é agora em que quem está a acabar sou eu :-)
e isso foi antes de eu brincar ao jogo do sério
lembro-me também de haver assuntos que precisavam de tanto tempo para serem estudados que eu nunca estudava por não ter tanto tempo assim ou era o calor de agosto a entorpecer-me a vontade
e isso foi antes de eu brincar ao jogo da velhice
agora eu passo o mês de agosto a cansar-me numa banheira de água salgada na esperança de caminhar normalmente o resto do ano e não haver quem dê por ela até que mesmo eu pense que não há problema e tudo está bem
sabendo que tudo está bem quando acaba em bem
e isso é agora em que quem está a acabar sou eu :-)
ouvir sempre?
mesmo quando deixam de falar comigo
e deixo eu de falar, continuo a ouvir
o que fiz de mim para ser esta algazarra dentro da minha cabeça?
e deixo eu de falar, continuo a ouvir
o que fiz de mim para ser esta algazarra dentro da minha cabeça?
do terceiro livro
(...)
6.
Senhor, dá a cada um a sua própria morte.
Morrer que venha dessa vida
Durante a qual amou, sentido encontrou, teve má sorte.
(...)
Rilke (Teresa Furtado), O livro da pobreza e da morte, em O livro de horas. Teofanias. Assírio e Alvim
6.
Senhor, dá a cada um a sua própria morte.
Morrer que venha dessa vida
Durante a qual amou, sentido encontrou, teve má sorte.
(...)
Rilke (Teresa Furtado), O livro da pobreza e da morte, em O livro de horas. Teofanias. Assírio e Alvim
consequência do tédio
A Criação foi o primeiro acto de sabotagem.
E M Cioran; Silogismos da amargura.
somos nós
6)
Somos nós. A arrogância da fala como a lâmina que nos faltava para rasgar um véu, um nevoeiro, uma manta de chuva de verão sobre os olhos cansados. Somos nós, um dedo no ar para nos dar lugar a fazer uma pergunta por fazer, a pergunta nunca feita. Somos nós o dedo no ar que ninguém vê porque nós falamos dele para sermos ouvidos, para declarar que há sempre uma pergunta a que ninguém responde e há sempre uma pergunta por fazer. Não sabemos pronunciar essa pergunta. E é só por isso que não sabemos as palavras da resposta.
Somos também nós os que se calam.
Somos nós. A arrogância da fala como a lâmina que nos faltava para rasgar um véu, um nevoeiro, uma manta de chuva de verão sobre os olhos cansados. Somos nós, um dedo no ar para nos dar lugar a fazer uma pergunta por fazer, a pergunta nunca feita. Somos nós o dedo no ar que ninguém vê porque nós falamos dele para sermos ouvidos, para declarar que há sempre uma pergunta a que ninguém responde e há sempre uma pergunta por fazer. Não sabemos pronunciar essa pergunta. E é só por isso que não sabemos as palavras da resposta.
Somos também nós os que se calam.
somos nós
5)
Somos nós as férias de nós, a arrogância maior de nos vermos cansados de tudo e ao mesmo tempo capazes da arrogância de pensar que nos podemos retemperar até nos podermos ver com outros olhos, uns aos outros, um mês mais adiante. Somos nós quando adormecemos sobre os problemas que queremos resolver ou quando adormecemos para nos esquecer do que nos aflige agora na arrogância maior de jurarmos que o tempo cura como um esquecimento sem dor alguma. Somos nós na arrogância da absolvição dos nossos pecados quando os citamos em baixa voz para ouvidos cegos e mudos por definição. Só nós nos arrogamos o direito da possibilidade de esquecer a lista que ditamos de cor. A necessidade e a possibilidade são as formas que a nossa natureza assume como a arrogância última e a mais crédula e a mais cruel de todas. A necessidade e a possibilidade são armas de arrogância. A maior arrogância e os actos mais cruéis repousam sobre a necessidade e a possibilidade. E a absolvição dada por nós, uns aos outros.
Somos nós, também somos nós quando falamos disso como se tirássemos férias uns dos outros para nos amarmos mais adiante, para amarmos os outros como a nós mesmos, depois das feridas abertas por combates desgastantes e imorais, depois das cicatrizes fechadas por uma biologia animal, por uma oficina de pequenos concertos e uma indústria de cola tudo. Somos nós quando voltamos ao princípio e somos nós quando nos aproximamos do fim e somos nós quando remediamos, quando recomeçamos no meio de tudo como se acabássemos de nascer uns para os outros e virgens disponíveis para sermos aprendizes da vida, a mesma que maldizemos tantas vezes. Também somos nós.
Somos nós as férias de nós, a arrogância maior de nos vermos cansados de tudo e ao mesmo tempo capazes da arrogância de pensar que nos podemos retemperar até nos podermos ver com outros olhos, uns aos outros, um mês mais adiante. Somos nós quando adormecemos sobre os problemas que queremos resolver ou quando adormecemos para nos esquecer do que nos aflige agora na arrogância maior de jurarmos que o tempo cura como um esquecimento sem dor alguma. Somos nós na arrogância da absolvição dos nossos pecados quando os citamos em baixa voz para ouvidos cegos e mudos por definição. Só nós nos arrogamos o direito da possibilidade de esquecer a lista que ditamos de cor. A necessidade e a possibilidade são as formas que a nossa natureza assume como a arrogância última e a mais crédula e a mais cruel de todas. A necessidade e a possibilidade são armas de arrogância. A maior arrogância e os actos mais cruéis repousam sobre a necessidade e a possibilidade. E a absolvição dada por nós, uns aos outros.
Somos nós, também somos nós quando falamos disso como se tirássemos férias uns dos outros para nos amarmos mais adiante, para amarmos os outros como a nós mesmos, depois das feridas abertas por combates desgastantes e imorais, depois das cicatrizes fechadas por uma biologia animal, por uma oficina de pequenos concertos e uma indústria de cola tudo. Somos nós quando voltamos ao princípio e somos nós quando nos aproximamos do fim e somos nós quando remediamos, quando recomeçamos no meio de tudo como se acabássemos de nascer uns para os outros e virgens disponíveis para sermos aprendizes da vida, a mesma que maldizemos tantas vezes. Também somos nós.
somos nós
4)
Somos nós sentados nas varandas altas vendo todos os outros como formigas laboriosas lá em baixo. Com as mãos firmadas na balaustrada, somos nós, de pé sobre as duas patas traseiras que imaginamos todos os outros incapazes, como formigas de um destino curto ou de uma determinação menor que não é a sua, de cada formiga que não sabe mais que o seu lugar na fila do carreiro para um formigueiro sem emoções. Somos nós quando falamos de nós como um formigueiro de emoções. Somos nós capazes de chorar e de rir de si, por si e para si, como se nenhum outro ser houvesse capaz da tragédia e da comédia. Somos nós capazes de imitar todos os outros seres e de pensar conhecê-los, de os classificar e nomear como se eles não passassem de nomeações, isso mesmo, nomes de coisas. Somos nós, equilibrados sobre as duas patas como se isso nos tornasse outros, únicos e capazes de toda a criação e de toda a compreensão sobre coisas e criaturas, capazes de escrever as escrituras com as mãos livres para a acção inteligente, mesmo se vã. Somos nós. A arrogância de ser o criador, os criadores.
Também somos nós, arrogantes construtores das escolas que nos treinam para seguir a formiga que vai à nossa frente, quando descobrirmos o argumento que segue o argumento escrito pelo que vai à nossa frente e nos deixa o seu património como deixa as suas caganitas a marcar o caminho, o carreiro nos tempos mais escuros. Também somos nós os que sabem treinar os que nos seguem sendo nós, apesar disso ser o contrário da arrogância original e da individualidade felina, feroz, escandalosamente animal, escandalosa por ser humana.
Somos nós sentados nas varandas altas vendo todos os outros como formigas laboriosas lá em baixo. Com as mãos firmadas na balaustrada, somos nós, de pé sobre as duas patas traseiras que imaginamos todos os outros incapazes, como formigas de um destino curto ou de uma determinação menor que não é a sua, de cada formiga que não sabe mais que o seu lugar na fila do carreiro para um formigueiro sem emoções. Somos nós quando falamos de nós como um formigueiro de emoções. Somos nós capazes de chorar e de rir de si, por si e para si, como se nenhum outro ser houvesse capaz da tragédia e da comédia. Somos nós capazes de imitar todos os outros seres e de pensar conhecê-los, de os classificar e nomear como se eles não passassem de nomeações, isso mesmo, nomes de coisas. Somos nós, equilibrados sobre as duas patas como se isso nos tornasse outros, únicos e capazes de toda a criação e de toda a compreensão sobre coisas e criaturas, capazes de escrever as escrituras com as mãos livres para a acção inteligente, mesmo se vã. Somos nós. A arrogância de ser o criador, os criadores.
Também somos nós, arrogantes construtores das escolas que nos treinam para seguir a formiga que vai à nossa frente, quando descobrirmos o argumento que segue o argumento escrito pelo que vai à nossa frente e nos deixa o seu património como deixa as suas caganitas a marcar o caminho, o carreiro nos tempos mais escuros. Também somos nós os que sabem treinar os que nos seguem sendo nós, apesar disso ser o contrário da arrogância original e da individualidade felina, feroz, escandalosamente animal, escandalosa por ser humana.
somos nós
3)
Somos nós quando interpretamos o cheiro do mar e só nós contamos os cheiros, um depois do outro, distintos como agulhas de pinheiro caindo do ar a pique sobre as narinas abertas e ao mesmo tempo fechadas para tudo o resto, para todos os restos, para os restantes há quem diga cheiros que o não são. Haverá cheiros que o não são? Os nossos cheiros constituem-se na nossa arrogância. O que cheira bem é a nossa arrogância a dizê-lo. O que cheira mal é a a nossa arrogância a declará-lo. O que não é cheiro que se cheire é a nossa natureza a nomear uma estranheza, é a nossa arrogância a fechar uma fronteira, a levantar um muro intransponível. Somos nós a não querer cheirar, a não querer meter o nariz onde não fomos chamados.
Somos nós quando nos interrogamos sobre os cheiros que o não são e cheiramos as escondidas dos cheiros que o não são, de que ninguém fala, que ninguém quer cheirar, que ninguém cheira para todos os efeitos. Somos nós quando abrimos o laboratório para fabricar cheiros que ninguém quer cheirar. Somos nós quando somos curiosos até para o que nos ofende o olfacto. Também somos nós.
Somos nós quando interpretamos o cheiro do mar e só nós contamos os cheiros, um depois do outro, distintos como agulhas de pinheiro caindo do ar a pique sobre as narinas abertas e ao mesmo tempo fechadas para tudo o resto, para todos os restos, para os restantes há quem diga cheiros que o não são. Haverá cheiros que o não são? Os nossos cheiros constituem-se na nossa arrogância. O que cheira bem é a nossa arrogância a dizê-lo. O que cheira mal é a a nossa arrogância a declará-lo. O que não é cheiro que se cheire é a nossa natureza a nomear uma estranheza, é a nossa arrogância a fechar uma fronteira, a levantar um muro intransponível. Somos nós a não querer cheirar, a não querer meter o nariz onde não fomos chamados.
Somos nós quando nos interrogamos sobre os cheiros que o não são e cheiramos as escondidas dos cheiros que o não são, de que ninguém fala, que ninguém quer cheirar, que ninguém cheira para todos os efeitos. Somos nós quando abrimos o laboratório para fabricar cheiros que ninguém quer cheirar. Somos nós quando somos curiosos até para o que nos ofende o olfacto. Também somos nós.
somos nós
2)
Somos nós quando ordenamos o nosso mundo em gestos que o representam. Quando aprendemos os gestos que ordenam a nossa compreensão e ensinamos uma forma de ver e de olhar, ou uma forma de dar a ver ou dar ao nosso olhar. Os nossos que são nós olham as coisas como se o fizessem pelos nossos olhos procurando uma visão igual à que espalhámos como nossa. A nossa visão do mundo é a nossa arrogância, a nossa natureza, a natureza que nos separa dos outros.
E somos nós quando olhamos alguma coisa, algum objecto estranho, como visão de outro mundo e nos atrai olhar para ele. E nos arrojamos ao desejo de subjugar a visão a outra visão mais global, como um novo continente que pode ser nosso por mergulharmos nele e sermos parte dele. O nosso olhar multifacetado a reconhecer na cabeça do insecto humano mais olhos que corpo, mais visão que mão, mais visão que linguagem, mais visão que uma unidade feita dos pequenos reconhecimentos no nosso território de conhecimentos em redor, em redil.
Somos nós quando ordenamos o nosso mundo em gestos que o representam. Quando aprendemos os gestos que ordenam a nossa compreensão e ensinamos uma forma de ver e de olhar, ou uma forma de dar a ver ou dar ao nosso olhar. Os nossos que são nós olham as coisas como se o fizessem pelos nossos olhos procurando uma visão igual à que espalhámos como nossa. A nossa visão do mundo é a nossa arrogância, a nossa natureza, a natureza que nos separa dos outros.
E somos nós quando olhamos alguma coisa, algum objecto estranho, como visão de outro mundo e nos atrai olhar para ele. E nos arrojamos ao desejo de subjugar a visão a outra visão mais global, como um novo continente que pode ser nosso por mergulharmos nele e sermos parte dele. O nosso olhar multifacetado a reconhecer na cabeça do insecto humano mais olhos que corpo, mais visão que mão, mais visão que linguagem, mais visão que uma unidade feita dos pequenos reconhecimentos no nosso território de conhecimentos em redor, em redil.
somos nós
1)
Somos nós quando aprendemos a balbuciar e somos nós quando imaginamos a nossa fala e imaginamos o nosso pensamento único ou superior quando não entendemos a linguagem dos outros e presumimos que lhes foi retirada a linguagem porque não têm pensamento que se exprima por palavras que entendamos. Não há pensamento sem linguagem inteligível para nós ou por nós. Nós temos o dom da nossa fala. A nossa fala somos nós e a nossa arrogância. A nossa fala é a nossa primeira natureza.
E somos nós quando nos arrogamos à coragem de aceitar outras linguagens e a derrota de as estudarmos até nos parecer que os outros, antes separados de nós, são agora como nós, diferentes nós. Também.
(...)
Somos nós quando aprendemos a balbuciar e somos nós quando imaginamos a nossa fala e imaginamos o nosso pensamento único ou superior quando não entendemos a linguagem dos outros e presumimos que lhes foi retirada a linguagem porque não têm pensamento que se exprima por palavras que entendamos. Não há pensamento sem linguagem inteligível para nós ou por nós. Nós temos o dom da nossa fala. A nossa fala somos nós e a nossa arrogância. A nossa fala é a nossa primeira natureza.
E somos nós quando nos arrogamos à coragem de aceitar outras linguagens e a derrota de as estudarmos até nos parecer que os outros, antes separados de nós, são agora como nós, diferentes nós. Também.
(...)
somos nós
0)
Nós damo-nos muita importância. A nossa arrogância é a nossa natureza , não é a nossa segunda natureza. A nossa arrogância somos nós, separados de todos os outros, para sermos e sentirmos a nossa diferença dos que nos parecem iguais.
E somos nós quando nos arrogamos à coragem de aceitar a derrota e sermos os outros numa comunidade de comuns, na comunhão pública de ideias e gostos, nos restos que escorrem do cadinho da fusão. Somos nós, sem rota, derrotados somos nós. Também.
(...)
Nós damo-nos muita importância. A nossa arrogância é a nossa natureza , não é a nossa segunda natureza. A nossa arrogância somos nós, separados de todos os outros, para sermos e sentirmos a nossa diferença dos que nos parecem iguais.
E somos nós quando nos arrogamos à coragem de aceitar a derrota e sermos os outros numa comunidade de comuns, na comunhão pública de ideias e gostos, nos restos que escorrem do cadinho da fusão. Somos nós, sem rota, derrotados somos nós. Também.
(...)
silogismo?
Desde o princípio dos tempos, Deus tudo escolheu para nós, até as nossas gravatas.
[E.M. Cioran, Silogismos da amargura. Letra livre, Lisboa: 2009]
oferta de JCSoares
[E.M. Cioran, Silogismos da amargura. Letra livre, Lisboa: 2009]
oferta de JCSoares
Zurbarán
(...)
Pensativa substância, a pintura
paralisa de luz a arquitectura.
(...)
A sala inteira silenciosa reza
uma oração que exalta uma certeza.
(...)
Nunca a linha vestiu peso mais grosso
nem a alma pano vivo em carne e osso.
(...)
Gira em tua eternidade a disciplina
de uma circunferência cristalina.
(A la pintura. Rafael Alberti. José Bento)
Pensativa substância, a pintura
paralisa de luz a arquitectura.
(...)
A sala inteira silenciosa reza
uma oração que exalta uma certeza.
(...)
Nunca a linha vestiu peso mais grosso
nem a alma pano vivo em carne e osso.
(...)
Gira em tua eternidade a disciplina
de uma circunferência cristalina.
(A la pintura. Rafael Alberti. José Bento)
40 anos de casados
o josé telefonou para me dizer: fazemos 40 anos de casados. temos de nos encontrar. num dia de julho. nas ruas de leça. que dizes?
respondi: encontrarei o dia.
respondi: encontrarei o dia.
mundo com pernas
manuel tem dificuldade em acompanhar o mundo com pernas para andar. sempre gostou de andar de gatas, porque gosta do amarelo dos olhos dos gatos e das garras afiadas que sempre estiveram nas patas felpudas que o acariciam ronronando promessas. mas o mundo? só percebe o mundo sem pernas, não imagina o mundo com pernas nem sabe o que poderá ser o mundo de pernas para o ar. o manuel tem dificuldade em olhar a simplicidade sem garras e patas felpudas que escondam as garras da intimidade que um mundo com pernas para andar torna difícil demais. para o manuel há um nível de dificuldade inadmissível e um nível de simplicidade admissível. apontou no seu caderno de notas ou de noites de andar às gatas e sabe que, para ele, não há coisa alguma. o que não está referido no seu caderno de notas não existe, simplesmente não é. foi a mãe quem lhe disse isso mesmo e a mãe deu-lhe o primeiro gato para que ele pudesse acreditar em tudo o que ela soubesse balbuciar. mundo com pernas para andar? nah.
todos os dias
vejo-a na sombra.
um sorriso em contra-luz
fora de uma porta aberta ao sol
nem eu sei como a encontro
que eu não vejo mais que uma sombra
que assoma e desaparece
na mancha de uma sombra maior
um sorriso em contra-luz
fora de uma porta aberta ao sol
nem eu sei como a encontro
que eu não vejo mais que uma sombra
que assoma e desaparece
na mancha de uma sombra maior
a CABEÇa perdida
às três.
ainda me lembro disso. não era nada natural a maneira como ela pegava no gato. arnaldo comentava a antiga atitude de atirar os gatos ao poço. ninguém ligava e continuava toda a gente a beber a água daqueles poços cheios de gatos podres. o menino puxou de duas pequenas pedras bem redondas que trazia no bolso e atirou-as, primeiro uma e depois outra para o poço. viam-se as circunferências concêntricas se repetindo à superfície e lá no fundo dois olhos brilhantes e fixos como estrelas. voltámos as costas a todas as imagens e caminhámos para aqui, onde nada se reflecte. assim concluiu arnaldo a sua narração sombria. todos se calaram.
eunice desaparecera já há um bocado. voltou depois com arnaldo pela mão. este tinha perdido a cabeça. e tropeçava em todos os móveis. eunice, ao passar pela mesa do conde, poisou a cabeça perdida do arnaldo e disse: tem nome, chama-se arnaldo e não dá por outro nome. não te esqueças. o conde disse: eu sei.
ainda me lembro disso. não era nada natural a maneira como ela pegava no gato. arnaldo comentava a antiga atitude de atirar os gatos ao poço. ninguém ligava e continuava toda a gente a beber a água daqueles poços cheios de gatos podres. o menino puxou de duas pequenas pedras bem redondas que trazia no bolso e atirou-as, primeiro uma e depois outra para o poço. viam-se as circunferências concêntricas se repetindo à superfície e lá no fundo dois olhos brilhantes e fixos como estrelas. voltámos as costas a todas as imagens e caminhámos para aqui, onde nada se reflecte. assim concluiu arnaldo a sua narração sombria. todos se calaram.
eunice desaparecera já há um bocado. voltou depois com arnaldo pela mão. este tinha perdido a cabeça. e tropeçava em todos os móveis. eunice, ao passar pela mesa do conde, poisou a cabeça perdida do arnaldo e disse: tem nome, chama-se arnaldo e não dá por outro nome. não te esqueças. o conde disse: eu sei.
a CABEÇa perdida
ás duas.
afinal quem é você? - perguntou eunice. eu era camponês em abravezes, mas perdi as terras. disseram-me que iam construir uma escola na terra que eu tinha passado a vida a estrumar. fiquei marcado para o resto da vida. quer ver? mesmo aqui ao lado do mamilo direito. está a ver? - arnaldo sem parar - abandonei tudo e vim enriquecer para a cidade dos prazeres. eunice teve tempo de dizer qualquer coisa como fez bem antes de arnaldo continuar a sua história. agora já não acredito em nada. antes de vir para a cidade ainda acreditava em alguma coisa - peregrinei por santuários, escrevi versos a nossa senhora e estive até em frente de um rio que de mim corria, decidido a afogar a minha alma para que ela não perdesse a fé. tudo iso se passou em rio de moínhos quando eu caiava as paredes em grossas gotas. acrditava nas pessoas? - atreveu-se eunice a perguntar. arnaldo, sem parecer ouvi-la, continuou: eu não acredito, simplesmente não acredito. para mim as pessoas valem pelo que fazem e eu vejo fazer, pelo que dizem quando as ouço dizer, pelo que procuram com o olhar e eu vejo olhar. não sei para que servem os ideais. ser feliz é ter as mãos atadas enquanto contamos a nossa história e ela nos vai desatando, não acha? eu nem sei se a história que contam de mim é aquela que quero ouvir. de qualquer modo, não podem iludir o que contam de mim, que matei a minha família, que não quis lutar para conservar o meu pedaço de terra, que busquei a paz onde ela existia. que mal tem procurar a beleza entre as ruínas da beleza? que mal pode ter roer as unhas depois de ter limpado o esterco dos porcos? toda a vida antes desta vida me deeram ordens sem sentido, como podiam esperar que eu me defendesse e lutasse? ainda não percebi porque é que o meu irmão pegou na forquilha e foi ver as tripas do presidente do município. diga-me, eunice, que beleza podia esperar ele desse gesto? sabem que dizem que ele as lavou, muito bem lavadas, as pôs em vinho e alho e estava a comê-las quando a polícia veio buscar-nos? e eu a pensar que eram do porco da comadre etelvina. devo confessar que ainda agorinha senti o cheirinho desse tempo. para onde eu não quero voltar. você fala demais - disse o homem de bata branca que se aproximava, brandindo o que parecia um bisturi. eunice levantou-se e disse: gostava d eter uma bata branca como a sua. meninos está a acabar o recreio - ouviu-se ao longe. corriam, em fila, como um regato evitando as pedras. passado algum tempo, entrou uma imagem de cera com a cabeça a ardeer e os lavradores e o arnaldo, presentes na acção de fomração, entoaram em coro o hino da lavoura.
afinal quem é você? - perguntou eunice. eu era camponês em abravezes, mas perdi as terras. disseram-me que iam construir uma escola na terra que eu tinha passado a vida a estrumar. fiquei marcado para o resto da vida. quer ver? mesmo aqui ao lado do mamilo direito. está a ver? - arnaldo sem parar - abandonei tudo e vim enriquecer para a cidade dos prazeres. eunice teve tempo de dizer qualquer coisa como fez bem antes de arnaldo continuar a sua história. agora já não acredito em nada. antes de vir para a cidade ainda acreditava em alguma coisa - peregrinei por santuários, escrevi versos a nossa senhora e estive até em frente de um rio que de mim corria, decidido a afogar a minha alma para que ela não perdesse a fé. tudo iso se passou em rio de moínhos quando eu caiava as paredes em grossas gotas. acrditava nas pessoas? - atreveu-se eunice a perguntar. arnaldo, sem parecer ouvi-la, continuou: eu não acredito, simplesmente não acredito. para mim as pessoas valem pelo que fazem e eu vejo fazer, pelo que dizem quando as ouço dizer, pelo que procuram com o olhar e eu vejo olhar. não sei para que servem os ideais. ser feliz é ter as mãos atadas enquanto contamos a nossa história e ela nos vai desatando, não acha? eu nem sei se a história que contam de mim é aquela que quero ouvir. de qualquer modo, não podem iludir o que contam de mim, que matei a minha família, que não quis lutar para conservar o meu pedaço de terra, que busquei a paz onde ela existia. que mal tem procurar a beleza entre as ruínas da beleza? que mal pode ter roer as unhas depois de ter limpado o esterco dos porcos? toda a vida antes desta vida me deeram ordens sem sentido, como podiam esperar que eu me defendesse e lutasse? ainda não percebi porque é que o meu irmão pegou na forquilha e foi ver as tripas do presidente do município. diga-me, eunice, que beleza podia esperar ele desse gesto? sabem que dizem que ele as lavou, muito bem lavadas, as pôs em vinho e alho e estava a comê-las quando a polícia veio buscar-nos? e eu a pensar que eram do porco da comadre etelvina. devo confessar que ainda agorinha senti o cheirinho desse tempo. para onde eu não quero voltar. você fala demais - disse o homem de bata branca que se aproximava, brandindo o que parecia um bisturi. eunice levantou-se e disse: gostava d eter uma bata branca como a sua. meninos está a acabar o recreio - ouviu-se ao longe. corriam, em fila, como um regato evitando as pedras. passado algum tempo, entrou uma imagem de cera com a cabeça a ardeer e os lavradores e o arnaldo, presentes na acção de fomração, entoaram em coro o hino da lavoura.
a CABEÇa perdida
à uma.
arnaldo virou-se para a mulher e disse: tire os olhos do pato! e não se debruce tanto! a mulher tinha nome e disse-o, em voz demasiado alta: chamo-me eunice de brito e tenho nove anos. arnaldo pendurou o enfado nos olhos e bocejou: aahahaahmanhã vai chooooover mais do que hoooooje. não se sabe porquê, mas o homem que acabara de chegar dirigia-se à mesa ao lado da rainha da prússia, sentou-se ao colo do conde de alenquer e gritou para o garçon que pairava acima das conversas e sempre atento aos desejos dos comensais: traga-me o lagostim mais suado. o garçon não respondeu. então o conde, sem deixar de cofiar o bigoe com a perna da lagosta, endireitou ligeiramente o olhar e, mal alvejou o garçon com os seus olhos aguados e frios, disse secamente: o menino quer lagostim mais suado. o garçon não ligou e abadonou a cena a caminho do hospital em que agoniza a sua amante marquesa de fonte seca que lhe vai deixar o título e uma carta de recomendação para o regente. há-de dizer-lhe com voz moribunda que não houve dias suficientes para pensar nisso antes da febre que a prostrou e que a invenção da bicicleta foi a sua morte. o garçon gritou-lhe para o ouvido: tenho nome, chamo-me alexandre da macedónia e soube hoje que sou seu filho. o médico chamou o cangalheiro e recomendou, em voz baixa, que não aplicasse a cruz no caixão daquela infeliz que tinha dormido com o seu próprio filho. disse o cangalheiro: que mal tem? também eu dormi com os meus filhos até à idade de irem para a a tropa. o médico deu de ombros e foi tratar da menina mercedes que se hospeda em sua casa nos dias feriados, para ser tratada do melhor de tudo. o menino do conde saltou do colo e, depois de beijar a rainha da prússia, correu em direcção à retrete. arnaldo pegou na mão de eunice e perguntou-lhe se ela se importava de tomar conhecimento da sua relação com o conde. disse ela: bem pelo contrário, meu marido é bem atraente e faz-lhe bem mudar de par. arnaldo espantou-se: mas você é de brito, como pode ser de alenquer? ela resmungou: alenquer é a terra do avô do meu marido. ele não sabe onde é, mas eu sei que já lá dormi com um chaufeur russo, de nome miucha. eu conheço-o - lembrou-se arnaldo, - era meu meio-irmão por parte d meu avô. como pode ser? - perguntou eunice, muiot coraada. pode, mas isso já não interessa, ontem matei a minha família toda, não quero mais ouvir falar dela - disse o arnaldo e olhou para o conde. este, absorto, mergulhava os olhos num pequena bacia de água. o menino do conde aproximou-se da bacia de água, pegou nos olhos, limpou-os a um guardanapo cuidadosamente guardou-os no bolso. ouviu: a luz voltou! com o dedo, o conde limpava os buracos dos olhos como quem limpa o nariz.
[o primeiro de três episódios publicados em Decotes, número um, de não sei que ano do século passado]
arnaldo virou-se para a mulher e disse: tire os olhos do pato! e não se debruce tanto! a mulher tinha nome e disse-o, em voz demasiado alta: chamo-me eunice de brito e tenho nove anos. arnaldo pendurou o enfado nos olhos e bocejou: aahahaahmanhã vai chooooover mais do que hoooooje. não se sabe porquê, mas o homem que acabara de chegar dirigia-se à mesa ao lado da rainha da prússia, sentou-se ao colo do conde de alenquer e gritou para o garçon que pairava acima das conversas e sempre atento aos desejos dos comensais: traga-me o lagostim mais suado. o garçon não respondeu. então o conde, sem deixar de cofiar o bigoe com a perna da lagosta, endireitou ligeiramente o olhar e, mal alvejou o garçon com os seus olhos aguados e frios, disse secamente: o menino quer lagostim mais suado. o garçon não ligou e abadonou a cena a caminho do hospital em que agoniza a sua amante marquesa de fonte seca que lhe vai deixar o título e uma carta de recomendação para o regente. há-de dizer-lhe com voz moribunda que não houve dias suficientes para pensar nisso antes da febre que a prostrou e que a invenção da bicicleta foi a sua morte. o garçon gritou-lhe para o ouvido: tenho nome, chamo-me alexandre da macedónia e soube hoje que sou seu filho. o médico chamou o cangalheiro e recomendou, em voz baixa, que não aplicasse a cruz no caixão daquela infeliz que tinha dormido com o seu próprio filho. disse o cangalheiro: que mal tem? também eu dormi com os meus filhos até à idade de irem para a a tropa. o médico deu de ombros e foi tratar da menina mercedes que se hospeda em sua casa nos dias feriados, para ser tratada do melhor de tudo. o menino do conde saltou do colo e, depois de beijar a rainha da prússia, correu em direcção à retrete. arnaldo pegou na mão de eunice e perguntou-lhe se ela se importava de tomar conhecimento da sua relação com o conde. disse ela: bem pelo contrário, meu marido é bem atraente e faz-lhe bem mudar de par. arnaldo espantou-se: mas você é de brito, como pode ser de alenquer? ela resmungou: alenquer é a terra do avô do meu marido. ele não sabe onde é, mas eu sei que já lá dormi com um chaufeur russo, de nome miucha. eu conheço-o - lembrou-se arnaldo, - era meu meio-irmão por parte d meu avô. como pode ser? - perguntou eunice, muiot coraada. pode, mas isso já não interessa, ontem matei a minha família toda, não quero mais ouvir falar dela - disse o arnaldo e olhou para o conde. este, absorto, mergulhava os olhos num pequena bacia de água. o menino do conde aproximou-se da bacia de água, pegou nos olhos, limpou-os a um guardanapo cuidadosamente guardou-os no bolso. ouviu: a luz voltou! com o dedo, o conde limpava os buracos dos olhos como quem limpa o nariz.
[o primeiro de três episódios publicados em Decotes, número um, de não sei que ano do século passado]
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