Quem somos quando chegamos?

As pessoas comuns existem desde que sejam chamadas pelo nome. A existência confirma-se no chamamento feito por um familiar, por um vizinho, por um companheiro de trabalho. Termos um dia ouvido dizer um nome, chega para garantir a existência de alguém que nunca vimos. Para alguns de nós, tal existência depende da fé em quem diz, em quem nomeia. Sem distinguir a realidade da ficção, a existência de um ser pode não passar de um enredo de poucas palavras ditas por uma autoridade.

Cada pessoa escolhe as autoridades que podem nomear. Assim passamos de geração em geração, pela fala dos mais velhos, a existência deste ou daquele ser. Mesmo depois de reconhecermos a falta de documentos de prova, há pessoas e seres que existem por terem sido nomeados por alguém a quem reconhecemos autoridade para o conhecimento e sua transmissão. Há palavras que valem mais que mil documentos. Algumas dessas palavras ouvidas foram escritas e até gravadas numa voz serena a convencer-nos da existência do inexistente.

As autoridades modernas, reconhecidas pela maioria, acrescentam imagens às palavras e criam documentos complexos. Acabamos a aceitar que o que nos mostram existe e é importante a ponto de merecer ser apresentado a milhares ou milhões de pessoas. Por esta via, passam a existir pessoas importantes e poderosas ainda que não existam. E são essas que afinal existem mais vezes ou que aparecem mais vezes. A partir de certa altura, deixamos de ter a certeza se são manequins que estão em todas as montras por onde passamos ou se somos nós que passamos pela montra onde os manequins se repetem em cenas da ficção de vida que lhes foi atribuída.

Perdidas de vista as pessoas, ficámos apanhados por personagens. Olhamos, sem ver, as pessoas que conhecemos enquanto se preparam para serem personagens das televisões. Apareço ou morro? - perguntam umas às outras.

Quem entra neste combate, morre. Ou desaparece em parte, sempre.

Como um cortejo de tragédias e inexistências que queremos esquecer, morre o velho ano velho. E há os que vão nascer ou renascer. Como saber quem chegamos a ser em 2008? Somos o que fazemos? Ou o que fazem de nós?



[o aveiro; 29/12/2007]

Tu as bien fait de partir, Arthur Rimbaud!

Tes dix-huit ans réfractaires à l'amitié, à la malveillance, à la sottise des poètes de Paris ainsi qu'au ronronnement d'abeille stérile de ta famille ardennaise un peu folle, tu as bien fait de les éparpiller aux vents du large, de les jeter sous le couteau de leur précoce guillotine. Tu as eu raison d'abandonner le boulevard des paresseux, les estaminets des pisse-lyres, pour l'enfer des bêtes, pour le commerce des rusés et le bonjour des simples.

Cet élan absurde du corps et de l'âme, ce boulet de canon qui atteint sa cible en la faisant éclater, oui, c'est bien là la vie d'un homme! On ne peut pas, au sortir de l'enfance, indéfiniment étrangler son prochain. Si les volcans changent peu de place, leur lave parcourt le grand vide du monde et lui apporte des vertus qui chantent dans ses plaies.

Tu as bien fait de partir, Arthur Rimbaud! Nous sommes quelques-uns à croire sans preuve le bonheur possible avec toi.


René Char

Char

Petite pluie réjouit le feuillage et passe sans se nommer. Nous pourrions être des chiens commandés par des serpents, ou taire ce que nous sommes.


René Char

nestes dias,

Nestes dias, procuramos uma floresta. Lembro-me de ter visto folhas caídas e de ter ouvido as folhas levantadas pelo bater das asas. Nestes dias, as árvores levantam angustiadas braços esguios; a floresta parece uma multidão de árvores desoladas e vencidas, sozinhas. As duas mais altas esticam uma faixa entre elas e gritam ao vento cortante uma maldição. Nestes dias, as árvores farejam as tempestades antes dos cães vadios.

luz de dezembro

oiro de dezembro

luz de dezembro

sala de leitura

desenho, logo existe

desenho, logo existe

à maneira de almada

Nos Jerónimos, há nove dias, um repórter de televisão perguntava a um operário do cenário o que pensava ele sobre qualquer coisa. Ele respondia que, se não fosse para a televisão, podia ouvir-se o que ele pensava. Nada pode ser mais claro sobre o acontecimento histórico do dia seguinte em que os gestores da europa de risco assinaram um papel, sob um fundo construído para o momento de um espectáculo. Pouca gente já conhece o enredo da telenovela, da qual vai ser transmitido a bicha das assinaturas, o cenário. Vagamente nos disseram que se tratava da carta dos direitos dos cidadãos europeus, omitindo que cidadãos europeus da primeira linha tinham votado contra a primeira coisa alterada e piorada para que políticos de hoje dispensem as consultas populares que ontem exigiram ou prometeram caso fossem eleitos.

Os políticos do poder pensam sossegar-nos quando dizem que esta carta é mais pobre que a nossa constituição. Mas se a carta de direitos dos europeus é mais pobre em direitos que a nossa constituição, será que estão a pensar em alguns cortes nos nossos direitos? Porque se esforçam eles para não falar do conteúdo da coisa?

Destes feitos históricos, sobram os cenários, os fatos, os vestidos, as canetas, a forma como se senta, a cor das meias, os olhares, os bocejos, os passos, o instantâneo de um pé de orelha, a luz, o azul, as estrelas, a canção do mar, ... O feito histórico está na fotografia frente ao cenário, é o discurso em louvor do momento e das assinaturas do acordo: esse oculto.

Pelas televisões, os doentes acamados seguiram a história a ser feita, fato a fato, por senhores dos passos e assinaturas treinadas para estas ocasiões de prata. Dos transistores, os ouvintes que se distraíram pensam que ouviram uma missinha mal cantada, sussurrada por um crente agnóstico, a partir do Mosteiro dos Jerónimos.

As pessoas comuns, que passam sem parar, lembram-se de deputados europeus mal educados a quem o Sócrates convenceu com imensa piada que defende isto em vez daquilo e o Sócrates que nós conhecemos defende o que é melhor para os portugueses que é o que, em cada momento, é melhor para que os rios continuem a nascer no mar. E lembram-se do operário que, sem dizer, disse o que toda a gente pensa.


[o aveiro; 20/12/2007]

desenho, logo existe

desenhei, logo existe


voltaram as reuniões, em todo o seu esplendor.

publicidade paga

Neste segundo semestre de 2007, Portugal tornou-se o país de todas as cimeiras. Não só por ter assumido a presidência da União Europeia.

Logo por sorte ou por azar a cimeira ibero-americana deu pano para mangas. Com o “Porque não te calas?” em castelhano real, os nossos Presidente e Primeiro ganharam altura e tempo aos nossos olhos presos até prejudicarem a atenção aos problemas com emigrantes portugueses na Venezuela.

Já no âmbito da presidência europeia, foram tantas as conferências e cimeiras que chegamos a pensar que, depois do tratado de Roma, são de Lisboa todos os grandes documentos de tal modo se colam virtudes e importância aos papéis europeus começados e acabados em Lisboa.

Alguém se lembra das promessas europeias da Lisboa de Guterres? Ninguém se lembra dos compromissos de Lisboa tão saudados e adiados. Portugal associa o nome da sua capital até a compromissos porreiros sobre futuras assinaturas comprometedoras, emendas, corrigendas, dito por não dito.

Outros países europeus que receberam grandes conferências para convenções e acordos associaram tais eventos a pequenas cidades mais ou menos desconhecidas. Tratados e acordos verdadeiramente importantes (para o bem e para o mal) são conhecidos por estranhos nomes.

A cimeira Europa-África trouxe a Portugal os chefes dos estados africanos, parte deles déspotas terríveis, alguns recauchutados ainda com tripas no lugar do coração, reconhecidos criminosos com passaporte diplomático, etc. Neste grande mercado de influências, os direitos humanos ficaram guardados à vista dentro de uma mala diplomática.

Jornais portugueses publicaram anúncios de página inteira em que um ditador promove as suas ideias contrárias a convenções internacionais e às instituições de justiça e direito internacional que os governos europeus assinaram e promovem. Esta campanha publicitária paralela associada à cobertura da cimeira - o teor das notícias sem teor combinado com a ostentação simbólica de movimentações em circuito fechado - leva-nos a pensar que, afinal, talvez tudo, mesmo tudo, não passe de publicidade paga.

[o aveiro; 13/12/2007]

Árvore de Natal


Numa escola, as árvores de natal podem ser bem estranhas. Podem.

resto de vida

A viúva apressava-se a enterrar o defunto
marido que já desenterrado o amante
a esperava à mesa com o vinho e o presunto

restos da vida de antes para outra mais adiante.


Já o viúvo morto tomando alento voava céu alto
em avião fretado ou asas de ir ao outro mundo
na pressa de respirar a nuvem sem parede nem fundo

esquece a viúva a magra pensão o sobressalto.

a última palavra

No sábado passado, em família, fomos ao(s) concerto(s) de encerramento de “Sons em Trânsito”. No regresso, o músico da família comentava a natureza da adesão que cada um dos concertos reclamara e obtivera. Como se o público tivesse estado dividido em duas partes, uma para a adesão ao primeiro concerto, outra para o segundo. O monólogo separava as propostas estéticas em categorias tais que só públicos diferentes poderiam aderir realmente a uma e a outra. O monólogo argumentava especialidades a separar as sensibilidades e exigia alguma razão científica e literária como suporte de adesão. Fui pensando no que teria sido a adesão a uma e a outra das propostas ou aos seus vários andamentos, já que ambas oscilaram entre registos distintos, da adesão imediata ao corte por via de referências inacessíveis.
A discussão sobre a adesão a propostas estéticas é a discussão sobre a adesão a qualquer proposta. Há níveis de adesão distintos uns dos outros; a adesão de uns pode ser mais fundada em critérios estéticos ou científicos, podendo chamar para si uma razão para a emoção que explica a emoção. O chamamento de pareceres técnicos e científicos para apoiar uma determinada decisão serve mesmo, muitas vezes, como almofada de consciência em decisões onde prevalecem imperativos morais. Parece estranho? Muitas das decisões que pisam o risco do sustentável em termos da humanidade e da terra onde se reuniram as condições para a sua criação, chamam uma particular razão científica em seu apoio, sempre que a razão científica geral desaconselha. A razão científica particular releva sempre do interesse particular e da ordem do imoral: “se não for eu a fazer, outro fará pior!”
A discussão sobre o aeroporto para Lisboa é exemplar a este respeito. O conjunto, ainda numerável, de pareceres científicos que apoiam decisões diferentes para um mesmo problema são da ordem da machadada. Já assim tinha acontecido com a localização das unidades de incineração e, por isso, Sócrates pode reclamar uma vitória a dois tempos. A ciência apoia mas não toma decisões, os políticos decisores somam razões para colher adesões à sua decisão.
A forma como aderimos e apoiamos ou rejeitamos pode afinal ser muito variada. Mas será que há adesões (ou rejeições) melhores que outras? E haverá um“a última palavra”?

Concertos desconcertantes!


[o aveiro; 6/12/2007]

dos impostos

A toda a volta, a nossa vista pode demorar-se em montras. A nossa necessidade é reconhecida pelo grande catálogo que se abre para mostrar todas as formas de a satisfazer. Nem escolhemos. Estendemos a mão e a mercadoria encaminha-se até uma passadeira rolante que passa por nós. Ou assim parece.

Serviços, produtos industriais e agrícolas, bens de cultura, serviços religiosos e espirituais, moral, maus e bons costumes são mercadorias e cada um de nós produz alguma coisa para o mercado e cada um de nós procura alguma coisa que com certeza há no grande mercado global.

Aprendemos a maravilha deste mundo seguindo ao longo da montra sem princípio e sem fim. Pode mesmo acontecer que não possamos comprar o que queremos ou nem sequer o que precisamos, mas sabemos que tudo o que podemos querer está em alguma prateleira do grande mercado. Como é que tudo isto funciona? Localmente vimos todos os nossos defeitos e parece que, a partir de nós, nada pode funcionar bem. Mas sabemos que, globalmente, tudo parece que funciona. E há quem sossegue com as aparências.

Quando paramos para pensar no processo, percebemos como o sistema é complexo. Basta pensar na diversidade de mercadorias e na composição de cada mercadoria. A compra de uma mercadoria (serviço, produto, bem,...) efectua-se contra um pagamento. Uma parte significativa do valor a pagar parece não ser trabalho incorporado, nem matéria prima, nem lucro do investidor. São taxas, impostos e similares.

Há quem diga que essa factura devia ser paga pelo produtor ou o prestador do serviço e não devia ser mostrada ao cliente final. Mas todos sabemos que uma parte significativa do valor das mercadorias vem da organização social e económica que garante as condições para a sua produção - no que respeita à educação e aos cuidados de saúde dos produtores, investigação em ciência e tecnologia, produção e transporte de energia - e para o seu transporte até ao comprador - estradas, caminhos de ferro, portos, aeroportos, ....

E sabemos também que, em cada nível de decisão sobre impostos, devemos ser capazes de esclarecer e provar a justeza e a necessidade da cobrança. Só depois? Com obra feita?

As últimas sessões da Assembleia Municipal de Aveiro trataram dos impostos. Cada um de nós é parte nessa decisão. Não é?


[o aveiro; 29/11/2007]

a casa na água da noite

o forno da casa

o estendal à chuva

Há duas semanas, o céu dos Açores desabou. Não posso dizer que tenha sido apanhado de surpresa. Até recebi a pancada de água com algum prazer. De certo modo, senti algum conforto ao receber por lá a água de que sentia a falta por cá. As máquinas que me acompanharam na descida daquela rua de Angra é que não gostaram. Mais tarde conheci o desagrado das máquinas, ao ver como elas se despediam do emprego alegando justa e húmida causa.

Habituei-me a esperar as estações do ano como me lembro delas e custa-me ver quando elas se aproximam de nós a fazer-se passar pelas outras.

Por isso, quando chegou a manhã de segunda feira, mal levantado do chão da noite onde tinha adormecido, agradeci ao manda chuva aquele escuro céu de mágoa. Quando saí de casa, já me apoiava à bengala que, quando não suporta o peso dos meus passos, se abre ao peso da água que cai. Sem precisar do guarda-chuva, cheguei à escola com todos os sentidos em alerta para não perder o instante da água. O vento não nos roubara o céu escuro e o cheiro do ar dizia-nos que a água do alto ansiava juntar-se à terra de água. E aquela mágoa feita dor finíssima, descendo do ombro até ao dedo que apavorado adormece, anuncia aos quatro ventos a tempestade.

Não me valeu de grande coisa a intenção da atenção. Não dei por ela quando ela começou a cair. Quando ela chegou, estava eu a prestar atenção às pessoas que aparecem em cada dia e em todos os dias, aparentemente as mesmas e sempre diferentes a reclamar a parte que lhes cabe na vida dos outros.

Saí mais tarde para a rua, o chapéu aberto contra o céu fundente. Para sentir o bafo húmido do dia, para molhar as mãos no ar, para ouvir o céu pingar e resvalar até às pontas das varetas do (ex)guarda-sol. Gosto de sentir a água na cara, de a saber a andar por aí em volta a dar peso à poeira que, ainda no último domingo, levitava à luz como se fosse poalha de ouro.

Sem corantes, sabores ou cheiros, de água simples se faz uma chuva de prazer e paz. De palavras de água, também. Mas também sei que de ácidos e ácidas palavras se formam nuvens e se fazem armas de chuva.

Não hão-de ser algumas gotas de chuva ácida a tirar-me o prazer do ar da minha rua.


[o aveiro; 22/11/2007]

o estendal

Vejo poucos estendais quando passo nas ruas de Aveiro, como se a roupa lavada desta aldeia tenha sido escondida em vãos de escada, ou quem sabe, em tambores de milhares de máquinas de lavar e de secar roupas. O número de máquinas é prova de desenvolvimento e progresso da cidade? Ver poucos estendais nesta cidade de vento à solta é prova de parolice de novos-ricos e isso nada tem a ver com desenvolvimento e progresso. Tem a ver com compra e venda de um bem escasso, de energia eléctrica num país doentiamente dependente do estrangeiro, e incapaz de criar formas alternativas para a produção de energia eléctrica.

Não me parece que a esta situação sejam alheias decisões políticas, urbanísticas. E não me admiraria muito que entre os entusiastas das varandas livres de roupas voadoras estejam alguns dos que falam a favor da energia eólica, da poupança da energia e de outras coisas que o actual senso comum não dispensa.

Não me chega que os responsáveis se mostrem politicamente correctos em geral (e são-no muitas vezes ao mostrarem-se favoráveis a políticas de que não são decisores) enquanto tomam decisões erradas e contraditórias com a necessidade da poupança de energia e de favorecer a produção alternativa de energia ou, ainda mais simplesmente, a utilização de energias renováveis para a … secagem de roupa, por exemplo.

Vejo poucos estendais na cidade de Aveiro. Vejo poucas pistas cicláveis fora da cidade e ainda menos caminhos exclusivamente pedonais, cuidados e sinalizados, para os aveirenses que, quotidianamente, passam marchando esforçadamente. Procuro carreiros que levem os caminhantes por aí fora, atraídos por bosques e parques, pela beira-rio, pelas beiras dos braços da ria. Mas se não vejo carreiros, nem quem reze por sua intenção, vejo quem seja capaz de lhes encomendar a alma falando de futuras estradas onde elas estão.

Algumas medidas importantes para melhorar a qualidade de vida dos cidadãos de Aveiro não custam fortunas nem são impopulares. O que lhes falta para atrair a acção dos responsáveis?

Dêem-me carreiros e estendais, passeios em volta e roupa ao vento. Poupem-me o retrocesso à idade da idolatria das máquinas.


[o aveiro; 15/11/2007]

a chuva dos dias

deixei que ela caísse em mim
como se a esperasse
desde há muito tempo
e ela tardasse

ensopado, esperei a morte
enquanto me dissolvia

mas o dia seguinte acordou-me
e ainda existia
só um pouco encolhido no tamanho
sem poder evitar a alergia

que me desata a alma em tempestades de ranho.

os dias que faltam

Tenho ouvido falar muito sobre o estatuto dos alunos. Governo, partido do governo e parte da oposição falam sobre o assunto aparentemente com alguma paixão política. Mas em tais termos que dou por mim a pensar que é como se ninguém quisesse saber dos verdadeiros problemas actuais que enfrentamos e antes estivessem todos interessados em descansar clientelas - de interesses, partidárias, ideológicas, ... não consigo perceber bem.

Do estatuto dos alunos, o assunto dominante é feito de faltas que se podem dar e de efeitos das faltas que se dão. Um dos dilemas aparentes a separar a direita da esquerda é sobre isso.

Do estatuto do aluno ou outro qualquer regulamento aplicável a pessoas que requerem serviços do estado com mobilização de recursos da sociedade não devia constar especificação sobre o direito de faltar. Não é normal esperar que falte às marcações quem pediu os serviços. E não é normal que se diga quantas vezes pode faltar sem consequências de maior. Como não é normal esperar que o agente prestador do serviço falte e muito menos se estabeleça quantas vezes pode ele faltar sem problemas. Pode ser preciso e inevitável ao requerente e ao agente faltar a uma marcação. Mas isso deve ser objecto de tratamento e apreciação dos responsáveis dos jovens e dos serviços, caso a caso, falta a falta.

Sobre este assunto, as garantias estão na exigência dos cidadãos quanto ao direito de base do respeito pela sua vida individual e quanto à qualidade dos serviços que tornam a vida social democrática possível, de cada um e de todos.

A minha mãe nunca me falava de faltas que se dão e só de faltas que se cometem. Eu sei que me apetecia faltar, que queria abandonar as coisas de que não gostava no momento. Mas a voz da razão de outros lembrava-me todos os dias que, ainda que mal feito e desajeitado, os outros contavam com a minha contribuição infinitesimal. Não me lembro de faltas sem consequências, nem me lembro de reprimendas quando tinha mesmo de faltar.

Os alunos que dão faltas às aulas e a quem os pais faltam, faltam ao respeito a toda a gente. Temos de conquistar o seu respeito, dando-nos ao respeito. O governo deve dar meios às escolas (autoridade, por exemplo) para tratar deles e acompanhá-los até à saída desta vida se a recusarem persistentemente. Os professores, que conhecem os alunos que cometem faltas contra eles, precisam de saber o que acontece ao jovem se sair da escola como jovem e problema. As instituições e os agentes educativos precisam de saber o que o estado está decidido a fazer para além de mandar para debaixo de um tapete de palavras os jovens e os pais que dão faltas uns aos outros.


[o aveiro; 8/11/2007]

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