De fora para dentro

Nas últimas semanas, por mais tempo do que seria desejável, ouvimos falar do sistema educativo por razões que não são as melhores. Num tempo de nova Lei de Bases, revisão curricular e medidas para o apoio aos jovens com necessidades educativas especiais, as vozes que se ouvem não falam disso, mas de dificuldades nas colocações de professores, compadrio em deslocações de professores, etc.
Uma boa parte da paz e do sucesso das escolas do ensino público vive de poucas coisas seguras: a colocação dos professores obedece a critérios claros e objectivos, garantindo que é colocado o profissional mais qualificado entre todos os que se candidatam; há programas estabelecidos que contemplam o necessário para a vida em conhecimentos e competências escolares; os sistemas de aferição e provas de exame são adequados aos programas e servem os seus objectivos de verificação do que se aprendeu e é necessário para novos estudos ou para ingressar numa vida profissional em que a formação subsequente mais direccionada muito depende da formação escolar inicial. E vive principalmente de valores sociais de integração que é preciso incutir pelo exemplo de todos os dias, a começar e a acabar na vida dos responsáveis.
Para estragar, já nos bastam as calamidades e a maldade que todos os dias assaltam a vida social relatadas pela comunicação social e cabe também à escola interpretar e moderar. O pior que nos pode acontecer é termos responsáveis pela educação sem valores, que não possam ser apontados como exemplos de honestidade, respeitadores das regras sociais e das leis, cumpridores das obrigações individuais para com a comunidade.
A interferência nos exames nacionais do ano lectivo passado, as malfeitorias de favorecimento no acesso ao ensino superior para familiares de altos responsáveis, as deslocações de favor e à margem da lei de professores de umas escolas para outras são factos e actos perniciosos ao sistema de valores que o sistema educativo também é. Só nos faltava a notícia desta semana que envolve o próprio Ministro da Educação em incumprimento de obrigações e jogos.
Que pode fazer a escola? Sejam e façam como nós dizemos, não sejam como mostram ser os nossos responsáveis? Nada é pior para a educação de um país do que ser atingida pelo mais fulminante desalento: “Já que ninguém se salva, salve-se quem puder!”


[o aveiro, 15/01/2004]

A professora.

Nos dias mais calmos da vida, saio de casa para a leitura do jornal da manhã, acompanhada de café e água mineral. Aproveito também para desenhar e escrever à mão num caderninho de folhas soltas, fazendo exercícios de salvação dos meus dedos tolhidos pela artrose da idade, pelos teclados das máquinas e na perseguição de ratos que teimo em domesticar.

Assim estava eu escondido nesse meu canto de café, quando ouço gritar o meu nome ou parecido, logo seguido de uma melopeia sobre a Escola José Estêvão. “Já não te lembras de mim? É natural, mas eu sim eu lembro-me bem de ti. Ainda estás na escola, não?” Puxei pela memória dos milhares de rostos que vi na escola e tenho de reconhecer que a cara que me fitava não me é estranha. Devo ter assentido nesse reconhecimento vago. Tanto bastou para ouvir uma reclamação gritada contra a situação, contra as colocações de professores, contra o Ministério, contra a corrupção, contra tudo e todos. Em calão claro, grosseiro. E a história gritada para todo o café: “Concorro todos os anos, já há cinco anos que não sou colocada, não tenho dinheiro, agora estou à espera do rendimento mínimo, …” Finalmente, em tom ligeiramente mais rouco, pediu que lhe emprestasse dois euros. Do pouco dinheiro disponível, dei-lhe a única nota que tinha. Quando ela se foi com o dinheiro, ouvi-a pedir o troco da nota para ir à máquina comprar cigarros. Enquanto saía do café, ainda gritou: “Sei muito bem onde te encontrar, quando tiver o dinheiro”.

Podia vir aqui falar de uma irritação surda contra ela que ia fumar o dinheiro. Mas não me sobrou irritação – só uma funda turbação e muita tristeza. Não só a mim: nenhuma outra fala humana se ouviu durante a altercação.

O que é que é injusto? Sabemos que as crianças não podem sofrer com a administração de ensino por uma pessoa que perdeu a identidade na espiral de desgraça em que se perdeu a professora que nos enfrentou no café. Mas desejamos ardentemente que seja colocada como professora se esse for o seu direito! Só podemos revoltar-nos por não cuidarmos que cada pessoa possa cumprir-se num destino digno e útil. Se tivesse sido professora nos últimos cinco anos, esta mulher seria completamente diferente?

A pessoa que me enfrentou no café deixou-me diferente, tocado pelo seu assomo de arrogância trágica. Como uma mágica unidade estatística saltou dos relatórios dos governos. Para não me deixar indiferente.


[o aveiro; 8/1/2004]

Bom Ano

Para todos os que se interessarem por isso, a minha vida só depende da vontade dos outros em viver bem o ano de 2004. Vivam bem, pois! Se não precisarem de fazer por isso por vocês mesmos, façam-no por mim. Eu mereço alguma compaixão. Cada um de nós merece.

Para mim, isto é coisa da idade, o que conta é que está passsado. 2003 já cá canta e não vai constar da minha pedra tumular.

As minhas fotografias são todas a preto e branco, mesmo quando não parecem. Umas vezes, vejo o negativo; outras vejo pelo positivo. Ainda consigo fazer revelações. Não há qualquer angústia em saber. Também não me amofino quando finjo que não sei.



uma resposta possível

Na minha caixa de correio, apareceu um pedido de divulgação de um texto que circula por épocas como sendo de ontem, cujas ideias são agora atribuídas a Cristovão Buarque. Desta vez, recebi a mensagem de Armando Herculano (de Vila do Conde?). Não me lembro do conteúdo exacto das anteriores divulgações nem posso garantir que tenha sempre sido atribuído ao mesmo autor. Mas só faço bem em divulgar o dito cujo.
Aqui vai:



Durante o debate em uma Universidade, nos Estados Unidos, o ex-governador do Distrito Federal e atual Ministro da Educação, CRISTOVÃO BUARQUE, foi questionado sobre o que pensava da internacionalização da Amazônia. O jovem americano introduziu sua pergunta dizendo que esperava a resposta de um humanista e não de um brasileiro. Esta foi a resposta do Sr. Cristóvão Buarque:

"De fato, como brasileiro eu simplesmente falaria contra a internacionalização da Amazônia. Por mais que nossos governos não tenham o devido cuidado com esse patrimônio, ele é nosso.

Como humanista, sentindo o risco da degradação ambiental que sofre a Amazônia, posso imaginar a sua internacionalização, como também de tudo o mais que tem importância para a humanidade.

Se a Amazônia, sob uma ética humanista, deve ser internacionalizada, internacionalizemos também as reservas de petróleo do mundo inteiro. O petróleo é tão importante para o bem-estar da humanidade quanto a Amazônia para o nosso futuro. Apesar disso, os donos das reservas sentem-se no direito de aumentar ou diminuir a extração de petróleo e subir ou não o seu preço.

Da mesma forma, o capital financeiro dos países ricos deveria ser internacionalizado. Se a Amazônia é uma reserva para todos os seres humanos, ela não pode ser queimada pela vontade de um dono, ou de um país. Queimar a Amazônia é tão grave quanto o desemprego provocado pelas decisões arbitrárias dos especuladores globais. Não podemos deixar que as reservas financeiras sirvam para queimar países inteiros na volúpia da especulação.

Antes mesmo da Amazônia, eu gostaria de ver a internacionalização de todos os grandes museus do mundo. O Louvre não deve pertencer apenas à França. Cada museu do mundo é guardião das mais belas peças produzidas pelo gênio humano. Não se pode deixar esse patrimônio cultural, como o patrimônio natural amazônico, seja manipulado e destruído pelo gosto de um proprietário ou de um país. Não faz muito, um milionário japonês, decidiu enterrar com ele, um quadro de um grande mestre. Antes disso, aquele quadro deveria ter sido internacionalizado.

Durante este encontro, as Nações Unidas estão realizando o Fórum do Milênio, mas alguns presidentes de países tiveram dificuldades em comparecer por constrangimentos na fronteira dos EUA. Por isso, eu acho que Nova York, como sede das Nações Unidas, deve ser internacionalizada. Pelo menos Manhatan deveria pertencer a toda a Humanidade. Assim como Paris, Veneza, Roma, Londres, Rio de Janeiro, Brasília, Recife, cada cidade, com sua beleza específica,sua historia do mundo, deveria pertencer ao mundo inteiro.

Se os EUA querem internacionalizar a Amazônia, pelo risco de deixá-la nas mãos de brasileiros, internacionalizemos todos os arsenais nucleares dos EUA. Até porque eles já demonstraram que são capazes de usar essas armas, provocando uma destruição milhares de vezes maior do que as lamentáveis queimadas feitas nas florestas do Brasil.

Nos seus debates, os atuais candidatos a presidência dos EUA tem defendido a idéia de internacionalizar as reservas florestais do mundo em troca da dívida. Comecemos usando essa dívida para garantir que cada criança do Mundo tenha possibilidade de COMER e de ir a escola. Internacionalizemos as crianças tratando-as, todas elas, não importando o país onde nasceram, como patrimônio que merece cuidados do mundo inteiro. Ainda mais do que merece a Amazônia. Quando os dirigentes tratarem as crianças pobres do mundo como um patrimônio da Humanidade, eles não deixarão que elas trabalhem quando deveriam estudar, que morram quando deveriam viver.

Como humanista, aceito defender a internacionalização do mundo. Mas, enquanto o mundo me tratar como brasileiro, lutarei para que a Amazônia seja nossa. Só nossa!".

O Postal de Ano Novo

Quando eu era pequeno, na minha aldeia, a caixa vermelha do correio estava pendurada na parede exterior da loja de fazendas do meu tio-avô Claudino. Nunca cheguei a enfiar lá qualquer carta. Também não chegava à caixa. O meu tio vendia os envelopes, os selos e os postais e, em caso de necessidade, escrevia as cartas.

O carteiro vinha de Vagos de bicicleta com o grande saco preso no quadro. Se vinha carta e não havia gente na casa, a carta era metida por debaixo da porta da sala do Senhor. Mas a maior parte das vezes, o carteiro parava na estrada, chamava pelo nome quem andasse no campo e entregava a carta e o recado ali mesmo. As mulheres de mãos embrulhadas nos aventais esperavam o carteiro para lhe entregar cartas, documentos, ordens para aforros, dinheiro para enviar vales postais a este ou àquele, etc. Nesse tempo, em Vagos, não havia balcões de serviços como há hoje. Havia os correios.

A recolha e distribuição postal pelas aldeias e vilas de todos os pontos do território tem de ser assegurada como um serviço público, uma obrigação. Por pouco lucrativa que seja a prestação do serviço em regiões deprimidas e isoladas, nenhum argumento na base do lucro ou do prejuízo pode pô-lo em causa. O mesmo para a energia, transportes, telecomunicações, … As concessões do Estado para estes serviços essenciais tem de ser feita com salvaguarda da igualdade dos cidadãos no acesso aos bens e serviços essenciais.

Nas últimas semanas, ouvimos falar do encerramento de estações dos correios no interior do país. É claro que, como se percebe pela memória da minha infância, não tenho nenhuma objecção a que o serviço seja assegurado em combinação com outros serviços. Os centros cívicos das freguesias acrescentam animação comunitária com a prestação de serviços como a venda de selos, internet, multibanco, aforros, etc.
Estranho é que se oiça falar de iniciativa dos CTT com ameaça de fechar esta ou aquela estação por não ser rentável. Isso é intolerável e se a empresa concessionária o fizer, o Estado pode caducar a concessão rentabilíssima de ser a empresa Correios de … Portugal.
Ouvi alguns autarcas falar disso e do protocolo entre a ANAFRE e os Correios de Portugal, algumas reclamações dos trabalhadores dos correios e nada mais.

Não ouvi o Governo. Talvez não tenha recebido o postal de alarme… deste Ano Novo, por ter deixado despedir o carteiro.


[o aveiro; 31/12/2004]

Perto ... Irão

Era preciso escolher a época e ter sorte.

No meio de uma clareira, os homens amontoavam areia ou terra do pinhal, algum barro e às vezes palha. E acrescentavam água na cratera que abriam no topo. Depois amassavam a mistura. Enchiam-se baldes que se despejavam dentro de uma forma paralelipipédica aberta dos dois lados. Compactava-se e tirava-se a forma. Ali ficava a promessa de adobe. Punha-se a forma ao lado, enchia-se daquela massa de que é feita a terra húmida, comprimia-se. Quando se retirava a forma, havia uma nova promessa de adobe ao lado da anterior. Enchia-se a clareira de filas de promessas de adobes. Deixava-se a secar ao sol.

Quando o sol era mesmo muito, tapavam-se as promessas com bicas dos pinheiros ou alguma palha que, para o efeito, se levava até à clareira aberta. Naquela espécie de eira grande, os pedaços de terra barrenta tinham de secar sem abrirem rachas. [Lembro-me de uma reportagem em que as crianças trabalhavam no fabrico de qualquer coisa parecido com os adobes da minha infância]

A última vez em que a minha família se juntou na tarefa de fabricar adobes foi, se não me engano, para a casa do meu irmão mais velho. As construções que foram acrescentadas depois já são em betão, cimento e tijolos.

Não sei porquê, as notícias sobre o sismo no Irão e, particularmente, as fotografias e notícias da destruição da cidadela de Bam, lembraram-me os adobes da minha aldeia. Ao ver as casas que desabaram agora como castelos de areia, dei por mim a admirar as construções antiquíssimas que se aguentaram desde a idade média talvez por serem feitas de adobe, de areia.

E dei por mim a ser iraniano, vagueando entre os adobes estilhaçados por uma revolta da terra. E vi-me na minha pequena cidade com menos habitantes do que Bam, sobrevivente numa falha do tempo com os olhos vazados pelo desespero de ter visto morrer tantas pessoas quantas as que cabem na minha cidade.


Não escolhemos estas épocas de sofrimento. Para não as viver é preciso ter a sorte de estar noutro lugar.

Não podemos fugir do sofrimento. Cheiramos a morte que não foi possível evitar.

Hoje recomendamos:

1. António Aurélio Fernandes recomendou vivamente o filme "Invasões Bárbaras" de Denys Arcand, de que me tinha distraído. Para quem é de Aveiro, o filme pode ser visto no Cinema Milenium Oita. Pode ler alguma coisa (em português) sobre o filme, por exemplo, RESENHAS E ARTIGOS em omelete.com.br - , onde pode encontrar também um pedacinho de video para amostra.
Há muita informação disponível na net sobre o filme.

2. Recebi hoje uma chamada de atenção que me levou a visitar o dito cujo . Aqui o recomendo vivamente por várias razões que se prendem com Aveiro, a propriamente dita.

o desenho


que pátria é a dos "portriotas"?

Os biquinhos delicodoces do nosso primeiro ao falar dos nossos compatriotas em missão no Iraque são deliciosas imagens a proclamar uma inocência infantil na defesa da paz. Os apelos delicodoces para a união de todos no apoio à intervenção portuguesa no Iraque, com menção ao aval das Nações Unidas, foram deliciosos cantos de sereia no chuveiro.
Sabe-se que agora que nem Portugal foi tido ou achado nos acordos feitos e que o governo português não se preocupa coisa alguma com o aval das Nações Unidas. Basta ler o texto dos acordos dos Ministérios da Defesa e da Administração Interna com o Reino Unido que o Público divulgou hoje: Defesa e Administração Interna Negociaram em Londres Acordo Secreto Sobre as Condições da GNR no Iraque , para sabermos que Portugal não existe como estado nos conifdenciais memorandos de entendimento deste nosso governo formado por lacaios de potências estrangeiras.

Ninguém nos salva da vergonha de nos sabermos representados por quem não tem pátria ( "No "Memorando de Entendimento" (MOU) confidencial assinado a 10 de Outubro, para a participação da Guarda Nacional Republicana (GNR) na "Força de Estabilização no Iraque" (IZSFOR), Portugal é o único país a não ser referido como Estado, mas como "ministério da Administração Interna do Governo de Portugal". Todos os outros países sem excepção - Dinamarca, Holanda, Itália, Lituânia, Noruega, Nova Zelândia, República Checa e Roménia são apresentados como Estado: Reino ou República." )

Ler este destaque e os com ele relacionados, dá-nos uma ideia da baixa política e da capacidade de mentir dos nossos responsáveis que escondem os seus verdadeiros propósitos e objectivos sob variadíssimas capas de verniz (ou hipocrisia?). Já não há verniz que preste - estoira todas as semanas. Não seria melhor que estoirasse de vez? Não seria melhor que … despissem os seus vestidos de fantasia, tirassem a máscara e se mostrassem em todo o seu esplendor? O que nos revela o Memorando de Entendimento secreto?

Marinão

A boa notícia é que o projecto da Marina da Barra recebeu um chumbo. A má notícia é que a última palavra, se houver recurso da empresa promotora ( e vai haver, não é?) cabe ao ministro Amílcar Theias que é tudo menos independente face ao promotor da coisa. Um artigo do "Independente" levanta esse conflito de interesses. Pode ler essa notícia - Marina da Barra -, publicada em GAIA - Grupo de Acção e Intervenção Ambiental . Vale a pena seguir com atenção os movimentos dos promotores da coisa e apoiar os movimentos contra a coisa. Particularmente, vale a pena seguir a polémica que está estabelecida entre os responsáveis autárquicos de Ílhavo e Aveiro.

O Pato Donald

António Aurélio Fernandes recomenda a leitura de O Pato Donald, de Fernando Rosas que vem no "Público" da véspera de Natal.
Quem não recomenda?

as duas pastas

Trago sempre duas pastas dentífricas dentro da pasta onde guardo também alguma roupa interior e lenços de assoar. Nunca me foram úteis a...