o largo dos leõs



pois! os olhos vazios de vida são,
sob sombrias abas de um chapéu,
luzeiros brancos em campo de tiro

anjos suicidas em treino de asas.

a arte dos poetas

Por mais fantásticos que os contos sejam
a arte do poeta os faz reais.

citado por Goethe

largo dos leões



As grandes ceias fazem as noites longas, de que não sobra notícia.
Na memória uma palavra aqui, outra ali. Hoje ainda me lembro de uma ou duas. Para amanhã?

A caneta maquinal regista no papel manteigueiro os gestos dos dedos.

ali perto


irmandade das almas - VI

Citemos tudo! - citou um irmão libertino. Aí está bem citado o que um marxista-leninista não cita nunca. Esse é outro princípio violador. Pode ser que para esclarecer assuntos que nos preocupam, marxistas-leninistas, tenhamos de nos socorrer de outras fontes. Quando na cozinha estiver escuro, procuremos na varanda o que está na cozinha! - disse o irmão Busca-pólos. João Gordo rejubilava: Cada um cite o que quiser, mas que não caiamos na recitação abusiva dos clássicos. Nada de religião na nossa mesa! E, a propósito, citou Karl Marx: A miséria religiosa é, por um lado, a expressão da miséria real e, por outro, o protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura acabrunhada, o sentimento de um mundo sem coração, tanto como é o espírito dos tempos privados de espírito. Ela é o ópio do povo. A supressão da religião da religião como felicidade ilusória do povo é uma exigência para a sua felicidade real. A exigência de renunciar às ilusões sobre o seu estado é a exigência de renunciar a um estado que tem necessidade de ilusões. A crítica da religião é a crítica do vale de lágrimas, do qual a religião é a auréola. Todos se espantaram com a memória de João G.
Não será uma citação a cair bem sobre a religião da nossa irmandade - o marxismo-leninismo - que nos abrasou a alma? Ai! Se o Marx nos visse agora! Tão religiosos que nós éramos! - inflamou-se o irmão Juvenal.
Isso tudo é muito importante, mas como é que vamos orgnaizar o estudo? Não temos hábitos de estudo! Nós estudámos o marxismo-leninismo à medida do que nos era exigido pelo Partido e das encomendas de sermões de vulgarização do marxismo. Quantas vezes vulgarização abusiva! E agora? Liberdade de leitura, de estudo, mas de quê? - afligiu-se com razão a irmã do Conde Ferreira.
Ora! podes sempre começar por ler os clássicos!Foi o caminho que eu segui depois de ter sido despedido de militante do partido dos cómicos românticos - gaguejou o irmão Caramelo de Contrabando. Ao que o irmão João G. retorquiu ironicamente: E se te fosses lixar! Isso é um conselho de velho: Cita o que quiseres mas só depois de teres lido os clássicos? Deus meu! Haja pachorra! O irmão Caramelo en+mendou logo, fez mesmo uma autocrítica ainda que raquítica. E rematou: Cada um leia o que quiser, o que mais o divirta, mas com o dever de dar contas das suas leituras aos irmãos da Mesa. Valeu? Caramelo ainda acrescentou, de cor, uma listinha bem interessante de leituras divertidas que afinal tinha feito. E logo ali se aprovou um programa de transfusões de leituras.
Irmão Domingo de Páscoa falou para pôr à consideração da Mesa: Acho também que devemos escrever até as parvoíces libertinas e passá-las no nosso círculo. A maior parte de nós está traumatizada pela escrita no PCRasuas e nunca mais escreveu uma linha que fosse. Para vencermos esta incapacidade, devíamos fazer promessa de trocarmos impressões por escrito. E devíamos começar por escrever estas coisas que temos vindo a chocalhar a Mesa inocente!
E assim ficou estabelecido pelo irmão Organizado: Estamos de acordo. O irmão Domingo de Páscoa fará a acta deste sonho!

cítara

Levanto-me então da plateia e, por entre metralhadoras esculpidas, conto de novo a parábola da agulha que me obceca. Desentranhei-a de um velho manual.
Trata-se de uma mulher que perdeu uma agulha na cozinha e a procura na varanda da sua casa. Acorre então o jovem que pretende ajudá-la, e pergunta: Que procura? - Uma agulha. Caíu-me na cozinha. Logo o inexperiente jovem se espanta muito e quer saber porque a procura ela na varanda. - Porque na cozinha está escuro - responde a mulher.
A parábola ajudará a desaprender alguma coisa e então será possível aprender outra coisa.

Herberto Helder

irmandade das almas - V

A linguagem do sonho é outra
Uma preocupação é a da linguagem, da língua falada e escrita.- Disse o irmão Bocas.
E, desentaramelando a língua, continuou:
Os partidos todos têm o discurso do poder, de sedução para apoio à manutenção ou conquista do poder. E mesmo quando dizem coisas diferentes dizem a mesma coisa. O receptor não distingue os diferentes discursos doss partidos de esuqerda, porque, da informação, o que permanece nas massas não é esta ou aquela "nuance", mas a estrutura do discurso, a sua organização, as ideias-base em que assenta a informação. E todos os partidos ditos de "esquerda" (e os de "direita"? não?) utilizam uma só estrutura lógica de linguagem, de discurso, organizam silogismos partindo das mesmas premissas e tirnado conclusões que só em pequenas aparências são diferentes, assentam sempre nos pressupostos fundamentais de que servem o povo, a classe operária, que a sua preocupação é com a situação das camadas desfavorecidas, que defendem o 25 de abril e que aunto a conclusões exprimem o sentir de amplas camadas e a necessidade do socialismo. Do lado do povo, que recebe a informação, não há diferença entre um discurso de sedução de um partido ou doutro. Assim, a primeira coisa que temos de ter presente é que não há ideias diferentes para fora sem linguagens diferentes. Temos de realizar, no campo da língua, um trabalho violador. - Concluíu o irmão Bocas.
João G. ria-se pelos olhos, lembrando-se daqueles artigos inflamados da bandeira rubra em que, das mesmas premissas, se tiravam conclusões diferentes em semanas diferentes. Que o João G. engolia logicamente e por devoção.
A irmã Marta D. referiu essas viragens bem explicadas que comiam os militantes, porque na política vencia a lógica, os argumentos válidos, quando se sabe que um argumento pode ser válido tendo tráfico ou tolice em cada uma das premissas ou na conclusão. E, pessimista, Mart D. aproveitou para dizer que os irmãos, cheios desses vícios de discurso, não iriam conseugir romper com essa língua passada.
E foi então que João G. disse:
Língua passada é bom! Coma-se e seja tudo pelas almas!
Irmão Organizado referiu, a propósito:
Nós, comunistas e irmãos, temos que experimentar. Esforcemos as meninges que ainda acabamos por conseguir. Se nos deixarmos ficar quietos é que não daremos nem um passo.
Todos os irmãos concordaram com esta filosofia de "estar quieto ser o contrário de andar". Um filósofo irmão, perdido no princípio do século passado e da filosofia, aproveitou para recitar o capítulo da unidade dos contrários, ao mesmo tempo que referia a necessidade de ter, no nosso estudo, referências que não podiam deixar de ser a classe operária e a sua doutrina, o marxismo-leninismo.
O irmão Domingo de Ramos apoiou esta coisa das referências e esclareceu que, dentre o material a adquirir para a Mesa, se devia dar prioridade a uma bússola que indicasse a esta irmandade pequeno-burguesa não o norte magnético mas o norte da classe operária e do marxismo-leninismo e que rebentasse caso a Mesa se desviasse desse admirável norte romântico.

[Já todos tinham saído quando, mais para si mesma, Marta D. denunciou Domingos de R. como vendedor de bússolas, manifestos e outros catecismos. E é para que conste que não consta da acta da sessão que aqui o comentário vem referido, em nota de rodapé.]

estava a pagar quando acordei

mandei lavar
as camisolas ocas

na lavandaria
encontraram nelas coladas
os ombros de porcelana
da tua alma

pediram-me contas
e eu paguei.

irmandade das almas - IV

A verdade e a mentira são miscíveis e a mistura é mal-cheirosa.
Bons argumentos, válidos argumentos carregados de verdades servem, em política, para apresentar boas mentiras como se fossem boas verdades. As melhores fundamentações de coisas erradas (e tantas há) é isso da mistura da verdade com a mentira. Mistura mal cheirosa, mas só para olfactos muito apurados ou desconfiados. Quantas vezes comemos disso? Afirmemos! Mas não tentemos dar uma forma acabada, completa. Afirmemos abertamente. De forma aberta: para servir a verdade. Boa! Não tentemos cercar a mentira de muita verdade e muita citação para dela fazer verdade! E deixemos que se desconfie da verdade! Mesmo desta. Irmãos! Sejamos francos! Sejamos fracos!
Nesta altura, o irmão Foz do Marulho foi interrompido por aplausos entusiasmados e gritos de apoio.
E continuou:
Em especial, recomendo que não usemos os clássicos como armas (bem citados e bem cortados) para apoiar isto, aquilo ou o contrário. Nem falemos em nome de quem não somos (por exemplo, nunca falemos em nome da classe operária) para que as nossas opiniões ganhem respeito. As opiniões são nossas. Que as coma quem quiser! A árvore que dá fruto, o melhor fruto possível, não o preparou para quem o vai comer, mas para si mesma, para a sua própria reprodução. Se alguma ideia produzirmos é para nos reproduzirmos. Ora bem! E mais nada! Viva a Mesa!
De novo, o irmão se viu interrompido pelos gritos de euforia dos irmãos. Pediu calma, antes de continuar:
Falando em nome da classe operária, mentimos. Falemos da classe operária, sobre ela, dela, das ideias que lhe atribuem, dos que dizem representá-la, dos que falam em nome dela, de ... Sejamos tagarelas, para quebrar a solidão. Mas nunca usemos a classe operária para dar peso às ideias. Porque as ideias não têm peso.

estar preso

A respeito de outras vidas (Matemática, claro!), uma colegamiga de Trás-os -Montes escreve:

Quando se risca uma linha (no chão) em torno de alguém este julga que está preso...

citando o Diário de Miguel Torga.

a maldade

Dou por mim a pescar na memória. Pequenas coisas, palavras cortantes, interjeições maldosas, pedras no sapato, areias nos olhos,... aqueles actos e factos desvalorizados um a um á medida que foram acontecendo. E que, neste momento, teimam em amontoar-se à porta dos meus olhos. Dou por mim a pescar na memória o dia em que a operação (est)ética foi feita sem que eu tivesse dado por ela.

Falo de mim e dos amigos que vou perdendo de vista. Falo de mim e das pessoas que me habituei a admirar por esta ou aquela razão num ou noutro momento: coragem física e capacidade de sacrifício, conhecimento, sabedoria, capacidade, humor, competência, acção, pensamento, estudo. Muitos deles nem os conheci pessoalmente, mas uma frase certeira que escreveram ou disseram fez com que olhasse para eles como pessoas admiráveis.

Sou muito influenciável, devo confessar. E atribuo sentido e valor às frases certeiras, às palavras da sabedoria, a livros. Mesmo quando não concordo com as ideias, atribuo cor e vida própria às pessoas por essa via das palavras e da sageza que me ponho a adivinhar. Até que passo a esperar a concordância entre as palavras e os actos, consistência entre as palavras de ontem e as de hoje, coerência entre a sabedoria e a educação. Quanto maior a admiração intelectual, tanto maior se torna então a minha exigência. Ingénua, eu sei.

Eis porque é para mim muito mais doloroso assistir ao espectáculo do debate entre Carrilho e Carmona do que aos espectáculos em que entram avelinos, valentins e isaltinos. É dramático ver um intelectual, professor e ex-ministro da cultura descer por avenidas que dão para o largo da decadência e que a televisão não se coibiu de mostrar variadas vezes para aumentar o nosso desconforto e vergonha.

Dou por mim a pescar na memória antigos debates, a tentar vislumbrar o lugar do tempo em que o atoleiro quebrou a casca do seu ovo. O tempo em que as estaladelas fenderam a porcelana da cultura cívica.

E sobra-me uma imensa pena de mim mesmo, ao perceber que há quem tenha expulsado as suas ideias e educação, para não dizer os seus ideais, para um campo de refugiados longe do campo da acção onde quer exercer influência e poder. Para quem, o poder?

[o aveiro; 21/9/2005]

as duas pastas

Trago sempre duas pastas dentífricas dentro da pasta onde guardo também alguma roupa interior e lenços de assoar. Nunca me foram úteis a...