maio findo

um rio passava por mim

se me lembro de águas revoltas que corriam
é porque já não correm ou sou eu que as não vejo

e em vez da água corrente nas mãos
ouço um estampido uma chicotada no ar
à passagem do comboio fantasma

na alta ponte sobre a fenda do corgo.

os anos de chumbo em exame

1. Professor de uma escola secundária pública, da casa onde durmo até à escola onde vivo, quaisquer que sejam as ruas que tome para caminho, sinto-me acompanhado pelas persianas corridas das janelas das escolas concorrentes que se foram instalando nos apartamentos em volta das três escolas secundárias públicas. Escrevo concorrentes, porque cada uma delas tem em comum com alguma das escolas públicas (e comigo, claro!), os alunos, os programas de ensino e, finalmente, os resultados.
Nada me move contra a iniciativa privada em geral e, muito menos, contra a iniciativa que emprega jovens licenciados em ensino disto ou daquilo que não arranjam trabalho nas escolas públicas e privadas. E não tenho qualquer dúvida em afirmar que cada pai ou cada mãe (ou ambos) tem o direito de decidir que ajudas dar aos seus, quando e como. (E deve ou não haver restrições sobre a liberdade de ensino?)
Constatando que os alunos são os mesmos, tenho de reconhecer que os nossos resultados conjuntos são muito fracos. E isso é muito preocupante para mim. A ajuda que os pais e os encarregados de educação estão a dar às escolas públicas é um investimento com fraco retorno em geral, tanto quanto à matemática diz respeito.
2. De um modo geral, temos aceitado como verdadeiros os argumentos sobre o poder regulador dos exames. De facto, há dados que nos garantem que sem exame nacional não seriam abordados todos os temas dos programas nacionais na generalidade do território. Se é importante garantir o acesso de todos os jovens aos grandes temas, o exame é importante.
E é sobre as disciplinas sujeitas a exame nacional e de cujo aproveitamento depende o acesso a cursos muito procurados que se concentram os esforços dos jovens e das suas famílias. O esforço dos jovens aparece concentrado sobre estas disciplinas, mas ninguém parece ter razões para celebrar grandes êxitos sobre tanto trabalho. O poder dos exames é afinal pequeno e não se traduz em resultados muito relevantes, apesar de terem levado à mobilização real de muitos recursos e esforços, dentro e fora das escolas.
3. Nas escolas privadas, em que os pais atribuem à instituição um mandato exigente, aceite pelos jovens com elevadas expectativas de sucesso escolar, os resultados dos grupos de trabalho também não entusiasmam. Para grupos reduzidos de alunos com grande investimento em tempo de leccionação, apoio e acompanhamento do estudo, uma média de catorze é mau resultado. Pior ainda se atentarmos no que ouvimos aos responsáveis, pais, alunos e professores, que põem a tónica mais na preparação dos exames que no desenvolvimento de competências, em conhecimento e em cultura.
4. Em Portugal, a natureza das provas é de conhecimento público. Os programas dos exames são os programas nacionais das disciplinas, mas o tipo de questionamento é patente em provas de exame de anos passados e em momentos de transição é mesmo publicitado especificamente com exemplos de perguntas, aos quais se acrescentam respostas esperadas e até critérios a ser seguidos por professores correctores. Está claro que é reconhecido não haver qualquer surpresa no programa de exame face à floresta de indicações que não há quem denuncie como floresta de enganos.
5. Parece que surpresa só há uma: a dos maus resultados nos exames e mais nenhuma. E é falsa esta surpresa já que nos acompanha desde há muitos anos. Li textos das décadas de 40 e 50 do século passado, relativos ao ensino da elite durante o regime fascista, que podiam ser escritos sobre o presente no que aos erros e à má fortuna dos resultados se referem.
6. O que é que está a acontecer? Sendo uma falsa surpresa, tantas vezes repetida, já devia ter merecido uma atenção que, trocada por miúdos, se tivesse transformado em medidas de política que atendessem a uma multiplicidade de necessidades e se desenvolvessem por largos períodos, com uma perseverança tal que as adaptações, sempre necessárias, aparecessem como consistentes partes da política a seguir e não como acidentais marcas das mudanças de directores gerais, ministros ou governos.
7. Falta o exame das políticas? Não resolve. Chumbar governos da alternância também não resolve, como se tem visto. Então?

[a página da educação;Junho de 2006]

a lágrima que corre

A nascente do rio não é mais que um fio de água, uma lágrima.

[Se os dias passam por mim, eu fico para trás. Esforço-me por ser eu a passar pelos dias até que sejam eles a perseguir-me, domésticos dias de enfado. Ouço os meus dias, olhando para o passado. Complacente com o passado, responsável por ele e sem os "ai, se eu soubesse o que sei hoje...". Habituei-me a ser tudo o que fui e a não ser ex-isto, ex-benquisto, ex-malquisto,... Sou tudo o que fui, somado ao que sou. O futuro é a nascente de perguntas a que vou respondendo.]

Se posso não ter razão, que mal há em perdê-la? Só que os dias recentes não falaram da razão que há em fazer prevalecer a preservação do ambiente, tal como ele existe, sobre as estradas desbravadas pelo desenvolvimento. Achincalhar os "ambientalistas" todos pode retirar chão à minha razão, mas não belisca a razão. Dizem que quem tem sensibilidade apurada para as questões do ambiente se coloca fora do círculo virtuoso dos que querem o desenvolvimento necessário ao futuro de todos. É por ouvir o passado do futuro presente que nos asfixia que eu os vejo mais presos em círculo vicioso dos que entram na rotunda com saída para o abismo. Os dados disponíveis e as previsões científicas não servem para cautelas e caldos de galinha. A ciência que interessa ou a ciência dos interesses desenvolvimentistas é aquela que há-de fazer o milagre de resolver mais adiante os problemas que criamos ontem e hoje, desafiando limites. A sustentabilidade que defendem tem por base um desafio que já não é sustentável. Contra tanta sede de beber a água quase toda e misturar a que sobra ao pó de cimento, só nos resta defender o absurdo do marasmo.
Todos os desenvolvimentistas esperam uma aberta, uma pausa na defesa da fragilidade da nossa terra povoada por bichos, para nela fazer lugares de estacionamento e pequenos desfiles de automóveis entre estacionamentos humanos.

Sabemos que eles sabem que os problemas do ambiente não se vão resolver se abrirmos a estrada e edificarmos a casa que sobra contra a ria e... construirmos a central nuclear que sobra e sorve a água toda do rio que corre e... seca até que a foz seja um fio de água, uma lágrima.

[o aveiro; 25/05/2006]

AMSTERDAM

Eu sabia que os telejornais acompanhavam o assutno,
a par e passo, a cores ou a preto e branco mas não
tnha tempo para ver televisão nem para comprar jornais.

Corria de museu para museu, ingenuamente procurava
apanhar um retrato vivo da cidade, comprava batatas
fritas na rua para não perder tempo em restaurantes
e nunca me cansava.

À noite tinha jazz, com muito sumo de laranja, quase
sempre no ''Mistery Club'' até à meia noite e cinco,
pontualmente, para apanhar o último eléctrico com
destino a Amstel Station.

Quando cheguei e me perguntaram se tinha tido medo
dos terroristas fui obrigado a responder que não -
dos polícias, sim, tenho medo: São espantosamente
novos, louros, corpulentos e passeiam-se na rua
com a arrogância de quem se sabe impune.


Universário; José do Carmo Francisco

desenharam, logo existem.




© Estudantes da Escola José Estêvão (11º D e E).

hoje, de longe

hoje,
de longe
chegam cartas curiosas:
alguém pergunta se eu adormeci dentro da casca
ou se me escondi zangado.

[ninguém me escreve, confesso.]

e eu, como sempre sem saber o que responder,
viro-me para o lado contrário de mim
e adormeço de novo sem querer lembrar as tempestades
que inventei quando desafiava instante a instante
uma felicidade que nem era minha
para ser de ninguém
para não ser


e secar a pontada desta dor de não saber
se algum dia

desenharam, logo existem.




© Estudantes da Escola José Estêvão (11º D e E).

caracol




© AM

a corda que puxa os cordelinhos.

Olho para a corda receoso. Cada uma das minhas mãos prende uma ponta da corda. A corda prepara-se para me fazer saltar. Sei que vou saltar. Ainda que contrariado, sei que vou saltar. Ainda pensei em iludir a necessidade de saltar o desafio da corda caminhando sobre ela como um palhaço funâmbulo que se equilibra sobre uma corda pousada no chão. Mas desisti de mim assim e procurei coordenar o movimento dos braços com os pequenos saltos dos pés. Animo a corda para me animar. Sei que se me distrair, a corda interrompe o seu voo e eu transpareço na sombra das paredes como o saltimbanco desengonçado que perde as linhas com que se cose.

Olha para as sombras na parede. Podia ter previsto aquele movimento das pedras vivas em seu tabuleiro vital. Um peão que avança para proteger uma raínha e um cavalo que tropeça em seu trote e morre à passagem de um bispo com os olhos marejados de lágrimas minerais. Os países dividem-se em pequenos quadrados e nós quedamo-nos a ver os movimentos das peças de uns quadrados para outros. Podemos prever as escaladas da violência e nada podemos fazer porque vimos o jogo tal qual se nos apresenta instante a instante, sem sermos capazes de ver a mão que mexe os cordelinhos e movimenta as peças de xadrez. Se olhássemos para fora do tabuleiro, víamos como as mãos dos manipuladores abrem e fecham frentes de combate. Umas vezes, o mundo é um tabuleiro e há um jogo para ser jogado. Outras, é o teatro da guerra a ser representado por actores de segunda, às ordens de um encenador histérico como um macaco preso no seu próprio circo de feras.

A guerra que se trava pode parecer um ajuste de contas entre quadrilhas. E é sempre isso, mesmo quando ela quer parecer uma guerra da civilização contra a barbárie ou da barbárie contra a civilização. Nas guerras não há maneiras. Há as boas maneiras da guerra; terroristas, bandidos e senhores da guerra usam luvas, são bons pais de família e amigos dos seus amigos. Não sei se é o medo que nos distrai dos sinais. E decidimos ignorar um gesto e outro até que eles somam os nossos medos e bombardeiam os nossos sonhos de paz.

Distraídos, acabamos por saltar a corda. Distraídos, ignoramos os sinais. Somos apanhados distraídos. Pelas guerras iraquianas, pelas guerras brasileiras, pelas guerras da selva, pelas guerras... Muito tarde reconheceremos uma só guerra em todas as guerras.

[o aveiro; 18/05/2006]

desenharam, logo existem.




© Estudantes da Escola José Estêvão (11º D e E).

as duas pastas

Trago sempre duas pastas dentífricas dentro da pasta onde guardo também alguma roupa interior e lenços de assoar. Nunca me foram úteis a...