Empilhando lenha

O homem costuma recolher do bosque
os troncos caídos com a tempestade.
Empilha-os nas traseiras da casa.
De cada um recorda
o que o fez cair e onde o recolheu.
Nas noites frias, a contemplar as chamas,
vai queimando o que resta do que ama.



Joan Margarit. A casa da misericórdia. (trad. Rita Custódio e e Àlex Tarradellas). Ovni. 2010.

cada vez que

1
cada vez que o ministro das finanças
vai ao confesso da europa
dar de barato as nossas esperanças

aquela tropa

diz-lhe que o tuga vai no bom caminho
mas na volta  inda antes da desgraçada notícia
já eles estão a duvidar e com jeitinho
recomendam mais aperto e se precisa! mais polícia

2
e por cá quem sempre defendeu a flexibilidade
das leis laborais
coisas finas  de social-mediocricidade
diz agora que a crise não deixa esperar mais

ao menos durante a crise! clamam lá do altar
enquanto ensaiam mais uma volta ao  garrote
ao povo tire-se pão e água qu'inda lhe sobra o ar
há sempre quem esteja pior! não é esse o mote?

3
o teixeira de todos os santos anticonstitucionaliza
manda para o prego da crise as leis e o direito
que vencerá a crise quem antinacionaliza e privatiza!
- pró prego já e  a desbarato tudo o que estiver a jeito

quem dá mais? um patrão feito rico pela flexibilidade
compra e mostra o seu estadão com retrete  e catedral
comprará muçulmanos, cristianos,  igrejas e até a caridade
se fará fundação espírito santo  onde antes houve nome portugal


4
e a gente?

mais submarino
enquanto parece que tudo aguenta
menos submarino
quando passar para as mãos o pelo da venta

será de repente?

diário

um dia destes, mais tarde ou mais cedo(?),
arrumo os meus papéis

[que os há aos montes em volta do computador
o nada da promessa  de ser
sendo em vez dos papéis]

e vou dactilografar um livro de poemas resignados
bastantes para acender uma fogueira
e aquecer as mãos no inferno

até que estas fiquem prontas como garras
capazes dos versos mais ferozes

gravados em lâminas de facas voadoras
prontas a abrir livros antigos que ficaram por ler

e, bem afiadas pelo uso, prontas a degolar
o temporal que  falta
da montureira do tempo já visitado

nem lembra ao diacho

e já nem te lembras da reunião onde

de quem te lembras, ...?

... quando tentas lembrar-te de alguém em especial. E se não comparece à 
chamada dos dedos?
Não te amofines. Se não é quem tu pensas, é alguém que começa então...
a existir.

As cinzas que posso carregar comigo

Como comentário a uma entrada sobre a fala dos olhos que brincam com o fogo de um forno cremátorio, a minha amiga Maria Pedro escrevia, a despropósito, o seguinte:
Caro Professor,
a questão das figuras equivalentes na PAF do 6º ano está mal formulada. O rectângulo e o quadrado não são equivalentes. Se efectuar as medições e calcular a medida ada área, poderá verificá-lo.

Melhores Cumprimentos,
Maria Pedro
Dei-me então ao trabalho de ir a
http://www.gave.min-edu.pt/np3content/?newsId=7&fileName=Provas_2ciclo_mat.pdf
e, cuidadosamente copiar o quadrado e o rectângulo da questão 8 da prova de aferição do 6º ano (que convenhamos só por muita sorte teriam exactamente a mesma área depois de passarem por várias máquinas de desenho e cópia) e dei-me ao trabalho de as juntar num só desenho de cinza

para concluir que o lado do quadrado é a média geométrica das dimensões do rectângulo, como se mostra numa construção (geogebra) que é o melhor que se pode pedir para dizer que não é disparatado esperar que alguém as escolha como figuras equivalentes. As restantes escolhas não seriam colhidas por quem sabe da impossibilidade da quadratura do círculo ou que um triangulo que parece o quadrado dobrado a meio não é equivalente ao quadrado.

Acharia já pouco natural, mas enfim não disparatado, que me colocassem uma dúvida dessas no
http://geometrias.blogspot.com

Natural é que coloquem todas as dúvidas e reclamações ao GAVE, gabinete do ME do governo do meu país democrático, sendo certo que o meu voto não contribuíu para tornar possível esse (des)governo.
Não percebo eu porque mereço comentários destes a uma reflexão melancólica sobre as minhas próprias cinzas no lado esquerdo para onde me virei no intuito de esmagar o meu coração. E fico triste.
Ou mereço e só eu não percebo porquê. Até porque não me pronunciei sobre qualquer questão em particular desta ou doutra prova de aferição. Há professores para fazer esses comentários detalhados sobre as questões referidas ao que fazem na sua arte de ensinar. Eu sou professor do 3º ciclo e do secundário e muito honradamente me esforço nesse sentido, sem me arrogar a mais que isso.
De qualquer modo, aqui fica uma ilustração interessante: duas pás de cinza sobre o assunto das minhas cinzas.

A fala dos olhos que brincam com o fogo

Ele levanta os olhos para dizer:
- A continuar assim, ainda vais morrer sozinha!
Ela, sem olhar, disse:
- Porquê? Vais deixar-me?
Ele concluíu:
- Não! Morro  antes de ti e tu é que vais despejar-me as cinzas.

E, sem mais palavras, deitaram-se rindo como de costume.

olhar para o chão

dei por mim a olhar para trás e não quero ser o que olha para trás de si que é o lugar do rasto, de rastos. de resto, a vida que interessa está presente. ou não está e nem existe. quando dou um passo em frente dou um passo em frente e nada mais que isso. ainda agora passei pelo que vejo a olhar para trás. ou já lá não está o que fui e olhar para trás significa ver o que não esperava ver? não olho para trás, não olho para a frente. hoje decidi olhar para o chão à minha frente. ando nisto há muitos anos e não vejo mal algum nisso a não ser a frustração de não achar o que resta depois da passagem dos outros. ou será que os que passam nada deixam que possa ver-se? a minha mãe também olhava para o chão meticulosamente e também não achava a passagem dos outros nem seguia rastos ou qualquer pista. por vezes via que ela parava e cuidadosamente arrancava do chão ervas daninhas para que secassem e fossem passadeiras dos passos seus e dos outros. eu não sei quais são as ervas daninhas e o chão não me devolve mais que um eco do meu olhar ignorante e

asilo

lá fui vivendo enquanto as mais vulgares
palavras entretanto expulsas dos versos
pediam asilo em línguas estrangeiras

canto da véspera

não projectei o plano do passado e não projecto o plano do futuro:
sobrevivo num separador plano de presente
qual brinquedo macambúzio

em vez do canto do tempo ouço
a tempestade longínqua
vinda da véspera como um tremor

nos alicerces

ela sabe.

o homem empurra uma carroça carregada com estrume. a mulher inda ao longe e já saúda em alta voz ti manel ti manel como vai? para onde leva a sua vida? o homem responde em voz baixa levo a vida a enterrar. e a mulher sem o ouvir sempre acrescenta pois ti manel faz bem em enterrar o seu esterco. o homem murmura mal ela sabe que eu estou mesmo a mudar de casa e eu mais o que a carroça leva é tudo o que tenho e cabe na cova que antes abri no lagoaceiro mal ela sabe. já a par com a carroça a mulher faz-se ouvir para só ele ouvir a nossa vida é uma merda manel. ela sabe.

durante a tarde

agora toma a minha mão direita na tua mão esquerda
e dá-lhe o puxão que ela aguarda ou deseja:

rasga-a de mim pelo pulso
rente à pulseira e algema
que a prende a ti

de memória



  1. fala-me de preciosas pedras de cristais de sal nas lágrimas da alegria
    de um dos meus dias que seja recordação de alguma noite tua
    uma luz devastada
    e crua



  2. se pudesses ver e ouvir
    se pudesses falar
    ou desenhar ao menos um gesto no ar
    e eu sentisse que na tua memória
    de olhos fechados
    um dedo teu realmente
    me reconhecera

    como quando a tua noite
    era o meu dia



  3. sou velho demais para perguntar



  4. esquecido de tudo lembro-me da tua voz
    e de ouvir-te falar de pedras preciosas ou de cristais de sal em lágrimas de alegria

    e um ou outro detalhe uma porta de ferro uma grande chave ferrugenta um livro escrito em braille a mão que tacteia a fala por golfadas de urgência

escutar, olhar e... parar?

Nós sabemos que as escutas sofisticadas são importantes na detecção, perseguição da grande criminalidade económica (e organizada) e da corrupção. Sob autorização de um juíz, à guarda de investigadores tutelados por um juíz que é então garante dos direitos individuais, da honra das pessoas envolvidas, etc.
Todos sabem que este sistema só pode funcionar se for rápido e eficaz pelos efeitos. Todos sabemos já que a melhor forma que o crime tem para combater as escutas é esvaziar os sacos de escutas na praça, misturando a vida privada de uns com a vida criminosa de outros, fazendo com que os crimes apareçam equiparados a conversas da treta.
E, desse modo, torpedear o trabalho da justiça, enredar tudo na teia recursiva que as aranhas do direito tecem. Tudo ao monte é o esconderijo ideal de cada crime. E a vulgaridade? Como é que se pára? Onde pairam os direitos e as garantias dos simples? E o julgamento seguido de prisão efectiva dos criminosos? Quantos andam por aí? Quantos são? Ninguém sabe, apesar de todas campanhas ninguém sabe e toda a gente sabe ou pensa que sabe, prendendo este ou aquele com a imaginação de quem não gosta e libertando outros e aqueloutros com a imaginação de quem gosta. Como é que se trava para parar e pensar?

Há quem diga que isto é preciso. De outro modo não se denunciam os crimes. Há mesmo quem defenda os julgamentos da opinião pública. Conhecem alguém que tenha sido condenado por algum crime julgado na praça pública? Uma parte destes criminosos vive de aparecer e ser citado muitas vezes e não do secretismo antigo.O secretismo de hoje é alguma coisa mais do nível do sincretismo global.


SINCRETISMO. Significa, originariamente, união dos cretenses contra o inimigo comum, porque habitualmente estavam desunidos. No século XVII, porém, pensando que o temo procedia do verbo misturar, passou ele a significar mescla de doutrinas derivadas de diversa proveniência: católica, luterana, calvinista. A partir daí, o conceito alargou-se a toda a forma de mistura – por justaposição, composição, sobreposição ou fusão – de doutrinas, de ritos, de imagens, de símbolos. (1)

(1) ENCICLOPÉDIA LUSO-BRASILEIRA DE CULTURA. Lisboa: Verbo, [s. d. p.]

dos impostos

quando alguém fala de aumentar os impostos a pagar pela banca, os banqueiros argumentam que isso não pode ser feito.
até porque diminui várias coisas a começar pela competitividade entre eles no mercado mundial.
só que não há competitividade de jeito se os estados garantirem os depósitos nos bancos e até mesmo, por essa insuspeitada via, transformarem a sua actividade arriscada em nada de arriscado.
sem necessitarem de cobrir os seus riscos, os bancos estão transformados em cobradores de lucros, permitindo que, mesmo em situações de crise e bancarrota, se distribuam prémios entre os gestores jogadores e apostadores activos na criação de crise e ruína.
que também não podem ser tributados para não amolecer a actividade frenética dos magnifícos criadores de crises financeiras ou a competitividade entre eles.

mas, para a sociedade reganhar credibilidade financeira, os banqueiros clamam agora pelo aumentos dos impostos sobre os outros, sinal necessário para o acesso ao crédito internacional a juros convenientes ao capital financeiro (inter)nacional.
dito de outro modo, podemos baixar a competitividade de quem trabalha (de quem produz capital por incorporação de factores de produção ou de trabalho) desde que mantenhamos a credibilidade e a competitividade de quem cria o dinheiro virtual, capital especulativo - esse que não incorpora qualquer valor ou trabalho produtivo.
dizem que não é bem assim que as coisas se passam e, que para haver jogo, temos de considerar altamente útil e produtivo o trabalho não tanto dos jogadores, mas da banca, desses que jogam com o dinheiro dos outros.
mesmo quando corre mal o jogo do capital virtual, o estado cobre as apostas com o dinheiro real da sociedade, com impostos dos que trabalham.
as crises financeiras ensinam-nos que a parte do capital com trabalho produtivo incorporado está longe de ser igual ao todo que a imaginação gananciosa dos banqueiros e jogadores acrescenta ou cria e, ao mesmo tempo, retira do jogo dos impostos de cada país.

a vida real tornou-se um jogo arriscado e perigoso para os que não usam máscara e têm rosto e suor.
triste e amargurado é o fado de quem trabalha. graça tinha o fado canalha no tempo em que o fadista lia as letras do artista. só que agora há a grande canalhice e há fados tristes para quem vê vencer letras ao balcão da pulhice. e fados há, em que os grandes canalhas, sobre a denúncia podem cantam que é calhandrice.

as duas pastas

Trago sempre duas pastas dentífricas dentro da pasta onde guardo também alguma roupa interior e lenços de assoar. Nunca me foram úteis a...