As listas ordenadas
As perguntas não se fizeram esperar. Logo que o Ministério da Educação tornou acessíveis os dados dos exames deste ano, começaram as perguntas sobre as listas ordenadas das escolas. Pela primeira vez, o Ministério forneceu os dados para a comunicação social ao mesmo tempo que para o público em geral. E este facto acrescentou ainda mais controvérsia à controvérsia de sempre em torno dos resultados dos exames nacionais. Redacções houve que imediatamente publicaram as suas listas, enquanto outros reclamaram tempo para tratar os dados e publicar análises mais trabalhadas.
Pudemos passar os olhos por duas das listas publicadas. À procura de sinais, lemos os critérios e sigo os meus dedos linha a linha até encontrar uma ou outra escola. Guardo de memória algumas escolas que possam ser comparadas, por exemplo, as da mesma cidade. Os quadros de professores e as culturas profissionais são muito semelhantes, embora possam variar as instalações e as pessoas - professores e estudantes.
O exemplo de qualquer escola dá para olhar com olhos de ver. A Escola José Estêvão ocupa a posição 95 na lista publicada no DN/JN, e, na lista da SIC, ocupa a posição 39. Tudo depende das disciplinas cujas notas contribuem para a ordenação. E é claro que tudo depende do número de alunos que realizam os exames em cada disciplina, o que é o mesmo que dizer que tudo depende do número de alunos que a escola leva a exame. O que faz toda a diferença: uma escola que leve a exame só os melhores alunos ocupará um melhor lugar na lista ordenada. Porque ninguém pergunta quantos alunos se excluem da lista ao longo do ciclo de ensino. Perguntam-me muitas vezes: Então as escolas deixam ir a exame alunos que não estão preparados para concluir o ciclo de estudos? E a resposta não pode ser sim ou não. Eles podem estar em condições de concluir um ciclo de estudos sem que isso signifique prestarem obrigatoriamente boas provas de exame. Eles podem estar preparados para uma boa prova de exame sem que estejam preparados para concluir um ciclo de estudos.
Parece complicado? Não é. Para as escolas, pais e professores que se ocuparam do crescimento em graça e sabedoria das crianças e jovens nada disto é estranho. Mas quem mais quer saber das pessoas quando as pode substituir pelos seus números? Estes números, agora publicados, são muito relevantes e ajudam muito quem precisa de compreender para actuar. Mas não são tudo. E isso é tudo.
[o aveiro; 1/11/2007]
Pudemos passar os olhos por duas das listas publicadas. À procura de sinais, lemos os critérios e sigo os meus dedos linha a linha até encontrar uma ou outra escola. Guardo de memória algumas escolas que possam ser comparadas, por exemplo, as da mesma cidade. Os quadros de professores e as culturas profissionais são muito semelhantes, embora possam variar as instalações e as pessoas - professores e estudantes.
O exemplo de qualquer escola dá para olhar com olhos de ver. A Escola José Estêvão ocupa a posição 95 na lista publicada no DN/JN, e, na lista da SIC, ocupa a posição 39. Tudo depende das disciplinas cujas notas contribuem para a ordenação. E é claro que tudo depende do número de alunos que realizam os exames em cada disciplina, o que é o mesmo que dizer que tudo depende do número de alunos que a escola leva a exame. O que faz toda a diferença: uma escola que leve a exame só os melhores alunos ocupará um melhor lugar na lista ordenada. Porque ninguém pergunta quantos alunos se excluem da lista ao longo do ciclo de ensino. Perguntam-me muitas vezes: Então as escolas deixam ir a exame alunos que não estão preparados para concluir o ciclo de estudos? E a resposta não pode ser sim ou não. Eles podem estar em condições de concluir um ciclo de estudos sem que isso signifique prestarem obrigatoriamente boas provas de exame. Eles podem estar preparados para uma boa prova de exame sem que estejam preparados para concluir um ciclo de estudos.
Parece complicado? Não é. Para as escolas, pais e professores que se ocuparam do crescimento em graça e sabedoria das crianças e jovens nada disto é estranho. Mas quem mais quer saber das pessoas quando as pode substituir pelos seus números? Estes números, agora publicados, são muito relevantes e ajudam muito quem precisa de compreender para actuar. Mas não são tudo. E isso é tudo.
[o aveiro; 1/11/2007]
estreita a passagem
estreita a passagem entre penhascos um rio
deixa que me lembre em contraluz os teus dedos
apontando mais adiante uma agitação um desvario
o silêncio das ausências que há em todos os segredos
deixa que me lembre de algum sermão que seja rouco
na tua voz ditado para a nave nua onde ninguém pára a ouvir
como não se ouve um murmúrio que ainda está para vir
ou o sussurro de quem perdeu os dons e ficou mudo e louco
por um ai tu te esgueiras para não seres mais que lenda
aquela que até da vida se escapa por um fio
uma mão não mais que uma mão de través uma fenda
estreita a passagem entre penhascos um rio
deixa que me lembre em contraluz os teus dedos
apontando mais adiante uma agitação um desvario
o silêncio das ausências que há em todos os segredos
deixa que me lembre de algum sermão que seja rouco
na tua voz ditado para a nave nua onde ninguém pára a ouvir
como não se ouve um murmúrio que ainda está para vir
ou o sussurro de quem perdeu os dons e ficou mudo e louco
por um ai tu te esgueiras para não seres mais que lenda
aquela que até da vida se escapa por um fio
uma mão não mais que uma mão de través uma fenda
estreita a passagem entre penhascos um rio
um dia depois e...
Um dia depois e não somos quem éramos
que importa termos sido tão intensamente
se ontem ou hoje ou amanhã o nosso lugar
é uma onda de vento que quase não se sente.
Se fizemos do nosso corpo uma embalagem
e nela cabem as fotografias que fomos rasgando
o corpo pode ficar ou levar-se a si em viagem
que quem não souber onde somos saberá quando.
que importa termos sido tão intensamente
se ontem ou hoje ou amanhã o nosso lugar
é uma onda de vento que quase não se sente.
Se fizemos do nosso corpo uma embalagem
e nela cabem as fotografias que fomos rasgando
o corpo pode ficar ou levar-se a si em viagem
que quem não souber onde somos saberá quando.
uma noite,...
Uma noite, ao dobrar uma esquina do corredor da casa, vi o gato de botas na mão a sair do quarto da minha namorada. Por momentos, ele olhou-me e pareceu-me que se ria enquanto me desafiava, levando a mão direita a uma espécie de florete que lhe pendia do cinto largo. Não pensei duas vezes e foi o meu pontapé certeiro que o levou dali para fora pela janela aberta. Muito depois, já eu me deitara quando dei por mim a descansar a consciência com o que se ouve sobre as sete vidas dos gatos.
Pela manhã acordei de um sono pesado com um grito horrível.
Antes de me levantar já tinha percebido que o rabo de fora da minha namorada já tinha gasto as sete vidas antes de voar pela janela da noite passada.
Pela manhã acordei de um sono pesado com um grito horrível.
Antes de me levantar já tinha percebido que o rabo de fora da minha namorada já tinha gasto as sete vidas antes de voar pela janela da noite passada.
mais os mesmos
Todos sabemos que a maior parte dos programas de ensino são nacionais. Todos sabemos que os professores têm todos a mesma formação superior, mais coisa menos coisa. Todos sabemos que as escolas fazem planificações do trabalho lectivo de modos muito semelhantes. Todos sabemos que os professores ensinam as mesmas coisas e que os alunos que aprendem alguma coisa aprendem a mesma coisa. Todos sabemos que os jovens portugueses são, na generalidade, muito parecidos, com acesso a produtos culturais massificados e transmitidos pelas centrais mundiais que uniformizam gostos, atitudes e valores. Todos sabemos que as formas de vida da generalidade das famílias são parecidas no que toca ao tempo disponível para os filhos. Todos sabemos quais são os hábitos gerais de leitura juvenil e sabemos os números a esse respeito recentemente publicados. Todos sabemos que as notícias garantem que o país está a equilibrar as finanças públicas e que o défice está controlado. Todos sabemos que não sabemos o que isso quer dizer a não ser que os nossos consumos se reduzem por medo e por pouco tempo. Todos sabemos que a taxa do desemprego não parou de subir, mesmo quando nos dizem que desceu. Todos sabemos que não sabemos como é que as famílias tocadas pelo desemprego de longa duração sobrevivem e todos sabemos qual é o cheiro da pobreza. Todos sabemos que os jovens dormem pouco e chegam estafados à escola diurna para confirmarem que não rendem. E todos sabemos que quem frequenta a escola nocturna lá chega estafado pelo trabalho que não rende e é natural que a escola não renda. Todos sabemos que, no nosso mundo, para a escola vai quem não trabalha e para o trabalho vai quem não estuda. Todos sabemos que fazemos parte da europa e que dela pinga a ajuda que nós precisamos mesmo quando não sabemos de que ajuda precisamos. Todos sabemos, porque nos disseram, que nós precisamos de estar actualizados e que a nossa capacidade de competir vem de termos tecnologia, mesmo que a não saibamos usar de forma inteligente e a favor da nossa humanidade. Todos sabemos que é muito importante sermos presidência europeia e termos conseguido o tratado porreiro mesmo sem sabermos ler nem escrever o que quer que seja sobre o tratado. Todos sabemos que não sabemos o que fazer de nós mesmos para não sermos mais os mesmos e sermos... os outros portugueses que prometemos aprender a ser.
[o aveiro, 25/10/2007]
[o aveiro, 25/10/2007]
a roda
Sei que quando o mundo roda,
a ele preso, também tu rodas
e se tu rodas, contigo, o mundo roda
Mas não sei quem inventou a roda...
... a saia, também não.
a ele preso, também tu rodas
e se tu rodas, contigo, o mundo roda
Mas não sei quem inventou a roda...
... a saia, também não.
as pequenas parcelas
Olho em volta. Rodando sobre os calcanhares, olho a toda a volta. Tento ver tudo. Mas sei que não vejo tudo o que quero. Há pormenores que me escapam, sei de alguns detalhes que de mim são escondidos e até sei que, em troca, detalhes há que se agigantam mesmo debaixo do meu nariz, pequenas parcelas que, em pontas de pés, acenam a chamar a atenção do meu olhar.
Há paisagens de que reconheço os detalhes. E de tal modo que estes perdem sentido se os tiramos da paisagem em que os vemos. Quando assim acontece, o meu maior interesse está no jogo do máximo prazer: reconstruir a paisagem com o máximo de detalhe, com todos os detalhes. Por conhecer bem a paisagem, sei reconstrui-la tanto a partir de poucas como de milhentas pequenas parcelas, fazendo variar a densidade do olhar.
O pior para mim são os detalhes que se agigantam a meus olhos como taipais sem que saiba de onde chegam, nem para onde vão ou onde querem chegar. E a discussão política local, a decisão política a que preciso de dar uma atenção fina aparece-me mais como uma sucessão de casos do que como uma paisagem que vamos pintando, retocando ou restaurando. Queria a paisagem em que cada caso fosse caso consistente com a paisagem da nossa vida colectiva ou erro a evitar.
A vida política local está cheia de passado e de decisões regionais ou nacionais que nos tolhem os passos. De certo modo, o nosso presente de dúvidas tem de sobreviver sob uma chantagem permanente de compromissos vindos de outros tempos ou de outros lugares. Se procuramos dar um lugar ou uma paisagem política a um caso ou outro, ficamos a saber que não há nada a fazer ou há a resignação que sobra para o caso em estudo. E não depende de nós. Haverá outros casos em que, por serem casamentos já consumados, apelam à revogação dos compromissos dos planos e companhia e com carácter de urgência.
Dou por mim a pensar que sempre que apoio uma decisão para um osso - caso descarnado - estou a dar um passo, antes de outro e outro, no vazio da queda para um abismo cheio de casos fechados em si mesmos, cuja soma quer ser a verdade toda da política. Por vezes, dou por mim a olhar a vida comum como um caso sério, caso e casa de estranhos.
Pode alguma coisa ser o que não se vê?
[o aveiro, 18/10/2007]
Há paisagens de que reconheço os detalhes. E de tal modo que estes perdem sentido se os tiramos da paisagem em que os vemos. Quando assim acontece, o meu maior interesse está no jogo do máximo prazer: reconstruir a paisagem com o máximo de detalhe, com todos os detalhes. Por conhecer bem a paisagem, sei reconstrui-la tanto a partir de poucas como de milhentas pequenas parcelas, fazendo variar a densidade do olhar.
O pior para mim são os detalhes que se agigantam a meus olhos como taipais sem que saiba de onde chegam, nem para onde vão ou onde querem chegar. E a discussão política local, a decisão política a que preciso de dar uma atenção fina aparece-me mais como uma sucessão de casos do que como uma paisagem que vamos pintando, retocando ou restaurando. Queria a paisagem em que cada caso fosse caso consistente com a paisagem da nossa vida colectiva ou erro a evitar.
A vida política local está cheia de passado e de decisões regionais ou nacionais que nos tolhem os passos. De certo modo, o nosso presente de dúvidas tem de sobreviver sob uma chantagem permanente de compromissos vindos de outros tempos ou de outros lugares. Se procuramos dar um lugar ou uma paisagem política a um caso ou outro, ficamos a saber que não há nada a fazer ou há a resignação que sobra para o caso em estudo. E não depende de nós. Haverá outros casos em que, por serem casamentos já consumados, apelam à revogação dos compromissos dos planos e companhia e com carácter de urgência.
Dou por mim a pensar que sempre que apoio uma decisão para um osso - caso descarnado - estou a dar um passo, antes de outro e outro, no vazio da queda para um abismo cheio de casos fechados em si mesmos, cuja soma quer ser a verdade toda da política. Por vezes, dou por mim a olhar a vida comum como um caso sério, caso e casa de estranhos.
Pode alguma coisa ser o que não se vê?
[o aveiro, 18/10/2007]
curso de mudanças subterrâneas
Cada governo ou cada partido ou cada ministro sabe que não pode pedir para o seu tempo médio de vida (enquanto ministro da democracia portuguesa) a possibilidade de executar mudanças sustentáveis e verificar, por resultados escolares consequentes, o alcance das suas políticas. Cada ministro sabe que estará reformado ou morto antes de se conhecer o impacto de uma ou outra das suas decisões de política educativa.
A revisão participada do currículo, iniciada por um governo do partido socialista, foi um processo longo por ter chamado à participação efectiva todos os parceiros sociais, mais ou menos organizados e com interesses contraditórios (mutuamente exclusivos em muitos casos), e pela ambição de definir adaptações aos perfis de competências do ensino secundário a exigir adaptações nas ofertas de ensino e de organização das escolas, muito além de simples adptações de programas de ensino. Os responsáveis governamentais por tais decisões políticas puderam assistir ao arranque do seu programa de mudanças. A proposta original não passou completa para a acção e, mesmo já transformada em acção, veio a ser alterada por medidas avulsas dos ministros que se seguiram, sem que os documentos técnicos tivessem recebido adaptação.
Uma revisão participada, lenta, constitui uma fonte de legitimação das mudanças pela sociedade, procura um sentido social para a mudança que seja consentida pelos agentes educativos que acompanham a sua génese e evolução. Uma boa parte da formação para uma mudança por parte dos professores e outros agentes fica consolidada, ao menos como necessidade sentida, na fase preparatória.
Reforma alguma se compadece de poderes que almejam principiá-las e vir a colher frutos. Em democracia, os poderosos têm contrato a termo certo. Mas incapazes de cumprir os seus nobres papéis de executantes honestos das grandes políticas de regime, os políticos de ocasião anseiam por arranhar uma eternidade de circunstância.
A actual nova ministra actua nessa revisão curricular participada, ainda não completamente transformada em acção. Grande parte dos documentos reguladores da organização de oferta educativa e dos programas de ensino mantêm-se aparentemente em vigor. Mas, ao arrepio da lei escrita, este ministério tem conseguido realizar uma clandestina revolução curricular e organizacional. Estão a ser postas em prática por via autoritária muitas medidas que não passaram nas negociações da revisão participada e sem constarem em papel timbrado. Recados e telefonemas das direcções e secretarias fizeram nascer de quase nada cursos profissionais e transformaram os, até há pouco, cursos tecnológicos de futuro em coisa nenhuma do presente. Sem qualquer ligação às empresas das suas regiões e sem quaisquer acordos protocolares, previstos em lei, as escolas públicas ganharam cursos profissionais e os estudantes que tinham pedido a sua matrícula em cursos tecnológicos acabaram matriculados em cursos profissionais com currículos diferentes, em alguns casos, mesmo com novas disciplinas em que não se inscreveram. E tudo feito sem que aos professores fossem dadas quaisquer oportunidades de formação para os programas que conheceram em Agosto e leccionaram a partir de Setembro.
Estes falsos cursos profissionais têm falsos aspirantes a profisisonais. Professores impreparados para programas práticos e para avaliações subordinadas ao desempenho profissional que nem sequer está no centro das preocupações já que não há empresas de serviços, comerciais ou industriais envolvidas como ambiente, presente ou futuro, de algum desempenho.
Mesmo que a razão prática nos diga haver justiça na aproximação ao trabalho, nada sobrevive em adversativa ideológica, em recusa ao trabalho de hoje, ao estudo. E nada sobrevive no ambiente de desregulação completa da profissão de professor. Profissão, sim! Mas que profissão? Com quantas ferramentas trabalha um professor? Com quais e com quantas pessoas trabalha um professor?
[a página de educação; Novembro de 2007]
A revisão participada do currículo, iniciada por um governo do partido socialista, foi um processo longo por ter chamado à participação efectiva todos os parceiros sociais, mais ou menos organizados e com interesses contraditórios (mutuamente exclusivos em muitos casos), e pela ambição de definir adaptações aos perfis de competências do ensino secundário a exigir adaptações nas ofertas de ensino e de organização das escolas, muito além de simples adptações de programas de ensino. Os responsáveis governamentais por tais decisões políticas puderam assistir ao arranque do seu programa de mudanças. A proposta original não passou completa para a acção e, mesmo já transformada em acção, veio a ser alterada por medidas avulsas dos ministros que se seguiram, sem que os documentos técnicos tivessem recebido adaptação.
Uma revisão participada, lenta, constitui uma fonte de legitimação das mudanças pela sociedade, procura um sentido social para a mudança que seja consentida pelos agentes educativos que acompanham a sua génese e evolução. Uma boa parte da formação para uma mudança por parte dos professores e outros agentes fica consolidada, ao menos como necessidade sentida, na fase preparatória.
Reforma alguma se compadece de poderes que almejam principiá-las e vir a colher frutos. Em democracia, os poderosos têm contrato a termo certo. Mas incapazes de cumprir os seus nobres papéis de executantes honestos das grandes políticas de regime, os políticos de ocasião anseiam por arranhar uma eternidade de circunstância.
A actual nova ministra actua nessa revisão curricular participada, ainda não completamente transformada em acção. Grande parte dos documentos reguladores da organização de oferta educativa e dos programas de ensino mantêm-se aparentemente em vigor. Mas, ao arrepio da lei escrita, este ministério tem conseguido realizar uma clandestina revolução curricular e organizacional. Estão a ser postas em prática por via autoritária muitas medidas que não passaram nas negociações da revisão participada e sem constarem em papel timbrado. Recados e telefonemas das direcções e secretarias fizeram nascer de quase nada cursos profissionais e transformaram os, até há pouco, cursos tecnológicos de futuro em coisa nenhuma do presente. Sem qualquer ligação às empresas das suas regiões e sem quaisquer acordos protocolares, previstos em lei, as escolas públicas ganharam cursos profissionais e os estudantes que tinham pedido a sua matrícula em cursos tecnológicos acabaram matriculados em cursos profissionais com currículos diferentes, em alguns casos, mesmo com novas disciplinas em que não se inscreveram. E tudo feito sem que aos professores fossem dadas quaisquer oportunidades de formação para os programas que conheceram em Agosto e leccionaram a partir de Setembro.
Estes falsos cursos profissionais têm falsos aspirantes a profisisonais. Professores impreparados para programas práticos e para avaliações subordinadas ao desempenho profissional que nem sequer está no centro das preocupações já que não há empresas de serviços, comerciais ou industriais envolvidas como ambiente, presente ou futuro, de algum desempenho.
Mesmo que a razão prática nos diga haver justiça na aproximação ao trabalho, nada sobrevive em adversativa ideológica, em recusa ao trabalho de hoje, ao estudo. E nada sobrevive no ambiente de desregulação completa da profissão de professor. Profissão, sim! Mas que profissão? Com quantas ferramentas trabalha um professor? Com quais e com quantas pessoas trabalha um professor?
[a página de educação; Novembro de 2007]
em busca do tempo passado
Um homem dava o braço a uma mulher e insistia em mostrar-lhe onde tinha feito a tropa. Mas não lembrava bem o caminho nem o nome do seu regimento. Ouvia dizer que tudo tinha acabado ou estava prestes a acabar. De qualquer modo, o que ele via hoje não era o que tinha visto há 40, 50 ou mais anos atrás e estava perdido, tanto para si como para a mulher que, sem querer, começava a duvidar de todas as histórias de tropa fandanga e juventudo que ele lhe contara.
Confirmei todas as mudanças e guiei a sua memória até ao parque e ao quartel, confirmando que os dois quartéis jão não albergavam tropas e que, se ele queria ver onde tinha sido jovem militar, tinha feito bem em voltar agora. Ainda vinha a tempo de ver a guarita de onde espreitara ... o quê?
O que se via então daquela guarita? O que teria ele visto?
há quem pense
há quem pense estar acima da lei
e há quem pense que acima
da lei estão aqueles que adiam o dia
de serem apanhados nas malhas
da lei que redigiram para intimamente
a conhecer e melhor a trair
e a justiça seja cega para não descobrir
e há quem pense que acima
da lei estão aqueles que adiam o dia
de serem apanhados nas malhas
da lei que redigiram para intimamente
a conhecer e melhor a trair
e a justiça seja cega para não descobrir
os lados opostos
A propósito de documentos e propostas a precisar de aprovação na Assembleia Municipal, confrontei-me com as duas dúvidas que, mesmo sem dar por elas, sempre viveram comigo.
Uma delas é também uma inquietação e tem a ver com a natureza do voto na democracia representativa. Embora todo o articulado das grandes leis aponte no sentido do voto individual (e intransmissível) e rogue a consciência como única substância da decisão em Assembleia, onde, como tal, vive o eleito, sabemos que, para além da consciência individual, pesa uma pertença a um grupo, a um quadro de ideias ou de doutrrina que incorporou o eleito e tende a impor-se como fundamento de voto. Se defendemos a consciência individual como garante da afirmação da liberdade individual não é menos certo que é garantida a cada eleito a liberdade de optar por votar de acordo com o seu grupo. Aceitamos uma falha no exercício radical da liberdade? Devemos reprovar os eleitos que não exprimem no voto o sentido das suas intervenções? Que sabemos nós dos outros? Capaz para defender quem seja amordaçado, torno-me incapaz de reprovar quem decide optar pelo interesse do seu grupo na hora do voto. Respeitar tal decisão não é também dar liberdade à liberdade individual? Inquieta-me saber que me torno compassivo com alguma coisa que não quero para mim próprio. Deixando que haja dúvida, desmonto armadilhas morais?
A outra inquietação tem a ver com os raciocínios plausíveis e as recomendações de sentido das palavras que podem significar coisas diferentes. Dou por mim, a opor-me ao excesso de rigor que pretende tirar dos argumentos as palavras de múltiplos sentidos, bem como ao excesso de precisão. Os articulados não existem independentes das pessoas que os lêem, a quem se aplicam e que os aplicam... O regulamento escrito regula e pode ajudar, mas não resolve o problema humano. Recomendamos leituras integrais e isso significa ter sempre todos os artigos presentes e não só aquele que radicalmente dirime o conflito de interesses, para além do contexto dos interesses em jogo. E mandamos tudo para o saco do bom-senso dos técnicos e responsáveis políticos. E se eles não tiverem esse bom-senso que nem sabemos bem o que é? O bom-senso é tanto deles como nosso - eis o que eles (e nós) precisam saber. Quando faltar a uns, que aos outros sobre o bom-senso de puxar o alarme e ir à luta.
[o aveiro, 11/10/2007]
Uma delas é também uma inquietação e tem a ver com a natureza do voto na democracia representativa. Embora todo o articulado das grandes leis aponte no sentido do voto individual (e intransmissível) e rogue a consciência como única substância da decisão em Assembleia, onde, como tal, vive o eleito, sabemos que, para além da consciência individual, pesa uma pertença a um grupo, a um quadro de ideias ou de doutrrina que incorporou o eleito e tende a impor-se como fundamento de voto. Se defendemos a consciência individual como garante da afirmação da liberdade individual não é menos certo que é garantida a cada eleito a liberdade de optar por votar de acordo com o seu grupo. Aceitamos uma falha no exercício radical da liberdade? Devemos reprovar os eleitos que não exprimem no voto o sentido das suas intervenções? Que sabemos nós dos outros? Capaz para defender quem seja amordaçado, torno-me incapaz de reprovar quem decide optar pelo interesse do seu grupo na hora do voto. Respeitar tal decisão não é também dar liberdade à liberdade individual? Inquieta-me saber que me torno compassivo com alguma coisa que não quero para mim próprio. Deixando que haja dúvida, desmonto armadilhas morais?
A outra inquietação tem a ver com os raciocínios plausíveis e as recomendações de sentido das palavras que podem significar coisas diferentes. Dou por mim, a opor-me ao excesso de rigor que pretende tirar dos argumentos as palavras de múltiplos sentidos, bem como ao excesso de precisão. Os articulados não existem independentes das pessoas que os lêem, a quem se aplicam e que os aplicam... O regulamento escrito regula e pode ajudar, mas não resolve o problema humano. Recomendamos leituras integrais e isso significa ter sempre todos os artigos presentes e não só aquele que radicalmente dirime o conflito de interesses, para além do contexto dos interesses em jogo. E mandamos tudo para o saco do bom-senso dos técnicos e responsáveis políticos. E se eles não tiverem esse bom-senso que nem sabemos bem o que é? O bom-senso é tanto deles como nosso - eis o que eles (e nós) precisam saber. Quando faltar a uns, que aos outros sobre o bom-senso de puxar o alarme e ir à luta.
[o aveiro, 11/10/2007]
a república
para mim
a república sempre foi
aquela gaja boa muito mais velha que eu
meio destapada pela bandeira
passados estes anos todos
embasbaca-me saber que ela está na mesma
enquanto eu ... enfim.
a república sempre foi
aquela gaja boa muito mais velha que eu
meio destapada pela bandeira
passados estes anos todos
embasbaca-me saber que ela está na mesma
enquanto eu ... enfim.
o outono
bem que o ouvia quando ele chegava
arrastando pés pesados e folhas caídas
como quem levanta as cores maduras pelos cabelos
enquanto saboreia a última luz da tarde
por isso é que eu sei o que é ouvir mal
arrastando pés pesados e folhas caídas
como quem levanta as cores maduras pelos cabelos
enquanto saboreia a última luz da tarde
por isso é que eu sei o que é ouvir mal
escrito e feito.
Sentado nesta varanda de vendavais, imagina-se a ler um romance. Mais capaz de ler do que escrever, o escritor falhado tenta apanhar o fio da trama. Se um romance é sempre uma teia de relações, bem sabemos todos que há uma aranha que tece a teia e a cada vibração sonha uma vítima. Cada um de nós sonha uma teia para não estar só.
O herói quis contar a sua vida de uma forma muito peculiar. Como se tivesse querido apagar-se, o herói descreve uma paisagem, uma nebulosa de gestos de uma multidão que se move à sua volta. Talvez tenha desisitido de ter vida própria e diz-nos que a sua vida é a vida dos outros. Pede ao leitor os olhos para ver.
A azáfama dos passos em volta faz de personagem e a realidade até pode ser uma azáfama tonta. Será que o autor faz figura de corpo presente e escreve para abençoar uma azáfama de formigas perdidas num labirinto? De nada soube e só sabe por lhe terem contado ou porque apontou num caderno de merceeiro, uma a uma, as andanças que vendeu fiado para ser desapontado a dedo como instigador.. O autor terá inventado um alvo voador para ser em vez dele?
O romance faz perguntas. A verdade pode estar escrita a várias mãos independentes que buscaram contar, sob um nome único, várias contas de um rosário de penitentes. Ou numa única mão de bonecreiro manipulador que dá fala às várias vozes e se comove até às lágrimas do pormenor quando na fala faz as vezes das crianças, dos jovens, dos velhinhos. Sinais exteriores de extravagância estão espalhados por todo o romance até iluminarem o dono do dom da fala em cena.
Fazem perguntas ao romance. E o romance desata um nó de garganta, um soluço perturbado, uma dor de alma. Conta-nos como são feitos os dias: da manhã das migalhas a todos quantos vão comer na mão à tarde peregrina que tudo colhe e tudo doa... a quem doer. Assim se fez um dia para vestir uma voz de povo e outro para ser voz de um dono, um dia de cada vez ou todos num só dia - disse o cuidadoso romance ao ouvido da novela que por ali passava, toda aperaltada.
Novela? - chamou ele, com voz doce. Novelo? - perguntou ela.
[o aveiro; 4/09/2007]
O herói quis contar a sua vida de uma forma muito peculiar. Como se tivesse querido apagar-se, o herói descreve uma paisagem, uma nebulosa de gestos de uma multidão que se move à sua volta. Talvez tenha desisitido de ter vida própria e diz-nos que a sua vida é a vida dos outros. Pede ao leitor os olhos para ver.
A azáfama dos passos em volta faz de personagem e a realidade até pode ser uma azáfama tonta. Será que o autor faz figura de corpo presente e escreve para abençoar uma azáfama de formigas perdidas num labirinto? De nada soube e só sabe por lhe terem contado ou porque apontou num caderno de merceeiro, uma a uma, as andanças que vendeu fiado para ser desapontado a dedo como instigador.. O autor terá inventado um alvo voador para ser em vez dele?
O romance faz perguntas. A verdade pode estar escrita a várias mãos independentes que buscaram contar, sob um nome único, várias contas de um rosário de penitentes. Ou numa única mão de bonecreiro manipulador que dá fala às várias vozes e se comove até às lágrimas do pormenor quando na fala faz as vezes das crianças, dos jovens, dos velhinhos. Sinais exteriores de extravagância estão espalhados por todo o romance até iluminarem o dono do dom da fala em cena.
Fazem perguntas ao romance. E o romance desata um nó de garganta, um soluço perturbado, uma dor de alma. Conta-nos como são feitos os dias: da manhã das migalhas a todos quantos vão comer na mão à tarde peregrina que tudo colhe e tudo doa... a quem doer. Assim se fez um dia para vestir uma voz de povo e outro para ser voz de um dono, um dia de cada vez ou todos num só dia - disse o cuidadoso romance ao ouvido da novela que por ali passava, toda aperaltada.
Novela? - chamou ele, com voz doce. Novelo? - perguntou ela.
[o aveiro; 4/09/2007]
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Nenhum de nós sabe quanto custa um abraço. Com gosto, pagamos todos os abraços solidários sem contarmos os tostões. Não regateamos o preço d...
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eu bem me disse que estava a ser parvo por pensar que só com os meus dentes chegavam para morder até o futuro e n...