coberta que fosse

Coberta que fosse
de aves, ficava
num longo dizer

a rapariga. Havia misturado
um perfume a erva brava
e a canela. Nem sei

por que me lembro
do que já queima
os lábios, agora que se dobra

o coração no frio.



[José Carlos Soares; terra de chá, son de poesía]

os dias da semana




inferência, zoo e gavetas.

os dias da semana




na manhã de sábado, o desenho

restauro da pátria

olho para o mais fundo das casas
para os ácaros que vivem no teu cotão

sorvo o ar na imaginação das asas
dos vespeiros que vivem no teu sótão

e restauro-me a olhar-te e respirar-te
sem pensar-te ou acrescentar-te arte
à tua arte.

cruzes canhoto!

Tanto quanto posso lembrar-me da minha infância, a escola primária pública da minha aldeia tinha duas salas expressivamente separadas por muros. Numa das salas, as crianças ficavam de costas para a porta. Na outra, as crianças ficavam viradas para a porta. As grandes janelas, viradas a nascente, ficavam à esquerda das crianças . Sentados em carteiras alinhadas, os estudantes olhavam por vários anos para uma parede em que pontificava um quadro negro. Sobre este quadro negro, uma cruz. Craveiro Lopes ficava de um dos lados da cruz e Oliveira Salazar ficava do outro. Há muitos anos que me interrogo a respeito de algum deles poder ter sido um bom ladrão. [E lembro-me também de um ano em que entrava na igreja - essa outra escola aldeã da minha infância - e via na parede o contra-almirante Américo de DEUS Rodigues Thomaz a velar pela minha educação religiosa, adornado com faixas sobre a farda imaculada, nessa parte da igreja só para os homens eleitores. A maioria, feminina, ocupava a nave central e era poupada à ameaça da Armada.]

Nesse tempo, nem imaginava que houvesse crianças que não fossem católicas apostólicas e romanas. Aprendia então cuidadosamente que os infiéis ou tinham sido derrotados e assassinados ou tinham sido convertidos e já não eram infiéis.

Passados cinquenta anos, nem tudo é diferente. Mas olhamos para o passado de heranças culturais de outro modo e sabemos que há batalhas que se perderam na bruma dos tempos, mesmo quando parecia que as vitórias eram nossas, dos nossos cruzados e eternas.

Ainda nos parece que a maioria da população se reclama de uma matriz católica, mas sabemos e aceitamos que há portugueses de raiz ou visitas bem vindas das mais variadas religiões. E defendemos que, nas salas de visita da democracia portuguesa, todos quantos por cá vivem e trabalham se devem sentir iguais independentemente da raça, do credo, do sexo, .... As primeiras salas de visita são as salas de aula das escolas.

O mediterrâneo lembra-nos todos os dias de que caldo cultural somos feitos e a nossa língua não nos deixa esquecer a herança que recebemos. Por isso, desejamos ardentemente que as iniciativas das comunidades das margens do mediterrâneo tenham sucesso. O nosso futuro depende disso.

Onde falha a Cimeira Euro-Mediterrânica de Barcelona? Lá, claro. E por cá? Cavaco Silva, candidato à Presidência da República, declara-se contra a retirada dos crucifixos das escolas públicas do nosso estado laico. A derrota mediterrânica está a passar por aqui.

[o aveiro;1/12/2005]

A cobrança de pt-nadas.

Passavam os anos e eu mantinha dois números de telefone da rede fixa - um da pt e um outro ligado a outro serviço Para não mudar o número antigo, para não sei o quê. Até que um dia de Junho ou Julho, ao ver que pagava coisas espantosas, tirado dos meus afazeres, dirigi-me à pt que reclamava a presença do assinante que queria ser desligado da máquina.

E lá assinei uns papéis a desligar-me. Mantive o pagamento disponível no banco até porque haveria a pagar o que ainda estivesse por pagar. Pelo sim, pelo não, lá desliguei tudo e avisei que não havia ligação para o número antigo. Abençoados meses sem aquelas contas.

Um dia destes, fui assaltado. A factura da pt tinha voltado e, pelas datas, o banco já devia ter liquidado a coisa. Nela constavam o custo de uma assinatura mensal, o custo de um plano de preços e uma taxa municipal de direitos de passagem relativo ao mês de Outubro. Não havia mais cobrança porque não havia qualquer serviço prestado. Fiquei perplexo e fui perguntar o que se passava. Em particular, perguntava como era possível estar a pagar o que não tinha comprado nem tinha sido vendido. A funcionária simpática e eficiente explicou-me com paciência que, em Junho, eu só tinha suspendido o serviço por alguns meses e, como não tinha dito coisa alguma, o serviço tinha voltado a estar disponível automaticamente e eu tinha de pagar, utilizasse ou não. Mais uma vez amaldiçoei as minhas pressas a impedir-me de não ter percebido isso da outra vez. Lembro-me bem de ter insistido então para acabar com a coisa de uma vez por todas.

E vi-me a pedir, de novo, agora a esta funcionária, que me desligasse da máquina definitivamente. Preferia morrer sozinho a continuar vivo ligado à máquina da pt. Mais um papel para eu assinar! A razão "não quero!" não serviu para cortar o cordão umbilical com a pt. O computador não considerava essa possibilidade e eu tinha de justificar o fim destes pagamentos indevidos como se crime fosse, como se recusasse pagar imposto para serviço público.

Finalmente, entregaram-me o papel, com o aviso de que ainda teria de esperar e pagar mais uns sete dias úteis. Cansado, assinei no papel - "Burro Martins" - com a minha bonita caligrafia.

[o aveiro; 24/11/2005]

pregunta derradeira


dime,
camarada, como vén
e como ten ollos a morte
cando quedamos sós?

como esvara
deica o seu silencio atrapado
e nos prohibe?

como,
camarada,
deixar gravado na memoria
o teu tempo de escuma?



[Rafa Villar; son de poesía.
Lisboa e Santiago de Compostela]



a planta da assembleia




bordada na assembleia,
uma teia.

uma grua espreitava


Ali onde menos esperava erguia-se uma nuvem
ameaçadora como uma ferramenta cinzenta
ou uma guilhotina brilhante na nesga de luz.

Enquanto ruía um céu metálico de sabores e gruas
e roldanas, porcas, parafusos e foices de longas curvas,
fêmeas e machos voavam espreitando passos de roscas
acertando noivados, casamentos, amor eterno.

Uma grua galgava o abismo, de braços abertos,
aos ombros, equilibrava a cidade de cordas de aço
retesadas pelos músculos do medo.

E eu, onde menos me esperava, aparecia a espreitar-te
como uma grua pesada se reconstruindo peça a peça.

dia de outono


Senhor: é tempo. O Verão foi muito longo.
Lança a tua sombra sobre os relógios de sol
e solta os ventos sobre as campinas.
Manda que os últimos frutos se arredondem,
dá-lhes inda dois dias mais meridionais,
leva-os à perfeição e faze entrar
a última doçura no vinho pesado.

Quem agora não tem casa, já não vai construí-la.
Quem agora está só, longo tempo o será.
Fará vigílias, e lerá, escreverá longas cartas
e vagueará, de cá para lá, nas alamedas,
agitado, quando o vento arrasta as folhas


[ Rilke; o livro das imagens; 1902 (P. Quintela)]

esquecimento



Como sombras em volta assim quero ver as pessoas dos dias que me reconhecem,
esquecer os pormenores de todos os rostos, de todos os braços, de todos os olhos

para perceber cada detalhe dos teus sorrisos magoados pelas minhas faltas medrosas
ou pelas presenças que são mais veladas ausências ou oscilações de desordem interior

projectadas como sombras no paredão de que me afasto até aos dezassete passos
de olhos vendados e gritar fogo! para o pelotão que anseia fuzilar-me por descuido.


Espero ser salvo do torpor da ferrugem, dobrar uma esquina corroída em salmoira.

ali




escada




diana




diana




desenhos de évora




desenhos de évora




desenhos de évora




desenhos de évora




desenhos de évora




desenhos de évora




Pormenorçamento

Todos ficamos envolvidos nas discussões sobre um orçamento de estado quando este desce do do governo ao parlamento com vista a receber o voto do partido do governo e a condenação dos restantes partidos.

No fundamental, o orçamento do Partido Socialista é o orçamento dos partidos à direita e estes, garantido que está o seu orçamento, podem votar contra para afirmar-se como ainda mais radicais defensores dos interesses do grande capital e não desdenhando um ainda maior ataque aos papeis que cabem ao estado social moderno. Aliás, o melhor para os partidos da direita será ver o estado social exaurido e atacado por quem se reclame de esquerda.

Para cada ideia de sociedade e de estado, até mesmo para cada classe social ou para cada grande grupo de interesses, há um orçamento. Há muitos orçamentos na discussão de cada orçamento de estado. Para a esquerda, o orçamento baseado nas grandes obras públicas e no aprofundamento de todos as vias que conduziram o estado e o país até este buraco não pode ser aprovado. O orçamento do PS não aposta nas pessoas, na sua qualificação e no que sejam competências humanas em acção. Aposta antes em actos inaugurais de uma nova era de grandes obras e eventos para movimentar capitais no sentido do costume, do estado para os do costume, continuando a aprofundar o abismo entre os mais ricos e os mais pobres.

Este é o orçamento que nos permite sair da crise? - é a pergunta destes dias. Não sabemos responder. Para quem nunca esteve em crise, banca entre outros, o orçamento do PS ainda lhes garante mais umas coroas... e de louro, por terem visto subir os seus lucros aproveitando o presente da crise dos outros. Para o estado social, o orçamento vem dizer que a sua crise deve ser aprofundada. Os pobres e desfavorecidos, desempregados, etc irão ver as suas condições de vida prejudicadas porque é sobre a sua pobreza que um futuro radioso vai ser construído. Para esses, o orçamento vem aprofundar-lhes a crise do presente em nome de um futuro que lhes escapa.

Ao ler o orçamento, assalta-me uma curiosa comichão com o cuidado extremo posto nos artigos que se referem à Caixa Geral de Aposentações, com cuidadosas notas sobre inscrições dos titulares de cargos dirigentes. Quem fica a dever à Caixa? Certamente que não são os que descontaram toda a sua longa e normal vida activa e carreira retributiva! Finda a resistência ao cerco, imaginemos como vai ser o saque.

[o aveiro; 17/11/2005]

ensina-me a chorar

Ensina-me a chorar que eu bem preciso,
nem imaginas quanto, de lágrimas verdadeiras.

Deixa-me mergulhar em tuas mãos lavadeiras
e entranha-me do cheiro das tuas faltas de siso .

ciência prática

No último mês, convivemos mais uma vez com a estupidez boçal dos mandantes das praxes estudantis. Sei que faltaram às aulas, sei que houve quem fosse obrigado a faltar a aulas, sei que há quem ache tudo isso normal e até desculpe as faltas às aulas, sei que se embebedaram repetidamente, sei que houve festas "de acolhimento" que duraram noites inteiras de uma semana, sei que houve mesmo quem achasse intrigante a insatisfação dos vizinhos das festas. Vi os bandos pelas ruas da cidade e também vi a manada em frente da Reitoria. Não me conformo com o regresso das trevas.
E, a respeito das praxes, ouvi (e li n'O Público de 7/11 ) o Ministro da Ciência afirmar que as escolas do ensino superior "não devem ser escolas de submissão e de iniciação a práticas fascistas" e que é "absolutamente contra aquilo que se designa, com algum humor sádico e machista, por praxes académicas, como se nos devêssemos rir disso". Acrescentava que essas praxes "são uma escola de falta de democracia e fascismo" e que "devia haver uma atitude de menos complacência por parte de todos, nas universidades e fora delas".
Sabemos bem como a Universidade tolera a actividade das hordas praxistas. E é intolerável essa atitude que acaba por legitimar a um certo nível as palhaçadas que, por vezes, acabam em verdadeiros crimes (sem culpados?). Afirmou o Ministro que é preciso "aplicar a lei e exigir o seu cumprimento dentro das universidades", que não se podem aceitar assédio e humilhações em sítio algum e que "não há paraísos para a humilhação ou para práticas fascistas" e que, se os houver, "esses paraísos não podem estar dentro do ensino superior". Mariano Gago afiança que irá tomar "o máximo de medidas que seja possível" e pede "que aqueles que sejam vítimas se queixem", pois ""se o não fizerem estarão a ser cúmplices dessa barbaridade".
Somos solidários com a revolta do Ministro e com as vítimas. Sem aceitar que haja patrocinadores para esta vida selvagem nem a cumplicidade das autoridades das academias e das cidades, tenho de lamentar que, para falar disto, seja preciso haver novas vítimas capazes da denúncia.
Não são públicas e notórias estas demonstrações dos velhíssimos veteranos da parvoíce juvenil? Um dia ainda vamos ser espantados pelo espancamento dos veteranos às mãos de jovens cansados de tanta humilhação e cansados do estado descansado.

[o aveiro; 10/11/2005]

mel

Esta manhã meu irmão procurava
qualquer coisa nas gavetas; remexeu
no armário, nos bolsos dos casacos,
dos capotes e de cabeça e mãos
na cómoda tirou tudo para fora.
Virou do avesso até a cozinha.
Passava de um quarto para outro
sem me ligar.
Quando começou a revistar a minha cama
perguntei-lhe: que procuras?
Não sei. Primeiro procurava um prego,
a seguir um botão, depois queria fazer café
e agora preciso que me digas alguma coisa,
nem que seja uma tolice.


[cantèda vintitrè; mel;
tonino guerra, mário rui oliveira]

prova de vida

De vez em quando, vejo o mundo aperfeiçoar-se. São pequenas coisas, fragilíssimos gestos os que me reconciliam com a vida e me lembram a exacta medida das humanas falhas.

Fiz parte de um pequeno grupo que concebeu e discutiu com professores os programas de matemática. Há poucos processos que tenham merecido tantos debates como esse. Anos passados nesse trabalho e de reflexão sobre ele, podemos ver-nos reflectidos em parte nas opiniões que se fizeram ouvir, ver estabelecidas novas formas democráticas de autoria e autoridade.
Apesar da qualidade da discussão, reconhecemos que poucas vezes sentimos a necessidade do debate fora das multidões que aderem tecnicamente aos argumentos a favor e contra as decisões programáticas. Na falta de melhor participação cidadã, comparamos com o que foi antes de nós e aceitamos as limitações como sendo coisa inevitável.
Convencidos sobre a fatalidade das limitações e munidos com a arrogância de quem não espera aprender em discussões sobre as adaptações do geral a este ou aquele subsistema específico, aceitámos adequar programas gerais de ensino ao ensino recorrente, ao ensino profissional ou à educação e formação. Nem nós, nem outro além de nós se lembrou de ouvir uma ou outra comunidade sobre quaisquer aspectos da nossa acção.
Essa acção influencia a vida toda de muitas pessoas em cada comunidade. Não estranhei que toda a decisão fosse feita longe de todas as ribaltas de discussão pública.

Nem imaginava que podia ser de outro modo, até que me convidaram para moderador e provocador de um debate sobre educação e formação na Murtosa. No Centro Recreativo Murtoense, na sequência de outros encontros e debates sobre variados assuntos em espaços associativos, vi-me cercado de pessoas com projecto, interessadas em levantar pontos de vista sobre o ensino e sobre a formação como quem levanta pesos e o mundo em ombros, capazes de acrescentar cor local, sabedoria e experiência ao saber de teoria feito.

Ao surpreender-se a si mesma em vida comunitária, a vida não pára de nos surpreender e, se encontra fresta aberta, cria um ensinamento maior que o anunciado no gesto de toca a reunir. Bolos e cafés, sala com história, pessoas com memória. E boas falas.




[o aveiro; 3/11/2005]

reunião de desenhos




arte postal




Arranquei uma folha de papel
manteiga do meu livrinho diário.
No verso, colei um selo de 30 cêntimos
depois de escrever um nome e seu lugar,
como endereço possível.
Para saber se os melhores
correios do mundo entregam a folha
sã e salva, espero.
Ela espera sem saber.

reunião de desenhos




reunião de desenhos




a reunião reunião começou ainda a tarde era uma criança luminosa.
quando acabou já o dia se tinha perdido numa escuridão outonal
e eu, abandonado, perdera a mão em luta num postal quase ilustrado.

olha




olha como o céu vela por ti:
como um véu sombrio te esconde
dos inimigos vizinhos e mesmo de ti
bem podes perguntar porque estás aí ou onde

sabes que subiste para lugar nenhum
e aí ficaste sentada do lado direito
do mais simples espírito e estreito
bocal que entoa três vozes sendo um

Banca!

Os discursos políticos falam de crise geral. A solução para todos os males está na redução do défice e na criação de incentivos ou benefícios atractivos para o investimento e para os empresários. Dizem-nos que se não adoptamos novas empresas, não resolvemos os problemas de emprego. Há empresários sem empresa. Esperam lucros de negócios e não razoáveis retornos de uma empresa saudável, desempregados que aceitem trabalho sem estabilidade e com salários baixos, que não se cobrem os impostos devidos, que subsidiemos a implantação do negócio e que não haja castigo quando, apesar de todas as ofertas, abandonarem a mão de obra desesperada por novo noivado. Na aldeia global, a elevada rotação dos produtos e serviços afluem a uma arena de comércio que não se esgota na satisfação das necessidades por acesso aos bens essenciais e cria necessidades artificiais.

A esta situação económica desequilibrada, difícil e em crise - trabalho e necessidade, salário e produto - ou propiciada por ela, opõe-se o florescimento das movimentações financeiras, optimistas, em delírio por não corresponderem, na sua imensa maioria, a quaisquer equivalentes em produtos verdadeiros. Nunca houve tantas operações financeiras como actualmente e nunca os bancos e similares deram tanto lucro. Muitos dos empreendimentos produtivos foram abandonados e trocados por deambulações e orgias financeiras. O dinheiro, que antes crescia pela troca de mercadorias, cresce agora mesmo quando não há quaisquer mercadorias, bens culturais ou trabalho incorporados na troca. Mesmo quando nada mais há além de dinheiro nesta virtual riqueza das nações.

Apesar dos lucros astronómicos, os bancos requerem privilégios fiscais e mesmo dispensas de pagamento de algumas taxas. E o governo dá. Quando a cupidez é muita e saltam fora da legalidade já de si tão favorável, alguma alma os há-de informar da eventualidade da busca de ponta de crimeada. Até o Banco de Portugal, que controla suspeitas movimentações de capitais, não dá por nada. Olha como mudo, denuncia calado.

Não é português um banco (ou instituição financeira) sem antigo ministro, secretário de estado ou similar na sua administração. Mesmo banco estrangeiro, com negócios ligados ao estado ou coisas públicas, não escapa a administrador político luso. Ética legal em acção!

[o aveiro; 27/10/2005]

os outros




de ti tu sabes tudo pensas tu de ti tudo ou nada de ti é o que parece de ti:
é como tudo na vida de ti tu de ti sobram nenhuns outros, estes.

no oriente

No Oriente, a matemática está na sua pátria.
Na Europa, degenerou em simples técnica.

Novalis

A culpa dos simples

Olho as tuas mãos enquanto lês. Vejo nítidos os tendões dos dedos que batem furiosos as teclas do piano sensível da mesa. E até há pouco a mesa parecia a lisa praia em que as tuas mãos descansavam. Sei que tentas reconhecer a voz de quem escreve o que agora lês. Vejo-te incrédulo, enquanto tentas controlar uma revolta que os dedos nervosos não escondem.

O que te perturba é sentires-te parte do grupo dos simples que, sabendo da imperfeição das pessoas, não deixam de se revoltar contra os erros, as injustiças, a corrupção, ... O que te perturba é leres o que os teus amigos não se cansam de escrever, acusando-te do crime de denunciar uma crise geral de valores do ponto de vista da moral, da ética e da justiça. Chegam mesmo a ameaçar-te com a possibilidade de se virarem contra ti os teus escrúpulos morais e éticos, já que estão convencidos que não és senão um náufrago mais entre outros em cruzeiro pelo mar da lama num barco de luxo. Tu estás perplexo porque eles pensam isso de ti. Será que, por não aceitares as manobras dos crimes financeiros e a contabilidade imaginativa, virás a ser um criminoso de colarinho branco? Será que, por usares colarinhos brancos, vais acabar por lucrar com algum negócio menos limpo ou com acesso ilegítimo a cargos ou favores?

E começas a rever o filme do passado da tua vida para descortinar alguma coisa menos correcta ou mesmo reprovável que tenhas feito sem pensar e que eles dirão que é da mesma natureza e gravidade de actos criminosos.

Estás a sentir que alguns dos teus amigos estão quase a convencer-te a não criticar a acção política do ponto de vista da moral e dos bons costumes, dizendo-te que sabem que tu sabes não ser perfeito.

Os dedos tensos batem na mesa. Quando a batida dos teus dedos se torna solta, sei que venceste a batalha interior contra quem usa a tua imperfeição simples e a ignorância do futuro como argumento para desculpar os crimes deste passado presente..

Há adeptos que gritam. Mais pelas derrotas dos clubes que não podem nem sabem perder do que pelas vitórias dos que nem sonham ganhar. Descansarão quando degolarem algum bode expiatório. E tu?

Escrevo por ti e por mim. Sobre futebol? Ou sobre política?


[o aveiro; 21/10/2005]

Perder e... achar.

1.
"Trata-se de uma mulher que perdeu uma agulha na cozinha e a procura na varanda da sua casa. Acorre então o jovem que pretende ajudá-la, e pergunta: Que procura? - Uma agulha. Caíu-me na cozinha. Logo o inexperiente jovem se espanta muito e quer saber porque a procura ela na varanda. - Porque na cozinha está escuro - responde a mulher."

Citada por Herberto Helder, esta parábola vem ter comigo uma e outra vez. Há muitos anos, encaminhou-me a desaprender o que se tinha tornado incompreensível e insuportável para que aprendesse outras coisas e retomasse a respiração vital que tinha sido interrompida por uma dúvida do tamanho da vida.

Nestas últimas semanas, a parábola voltou a instalar os seus arraiais na minha cabeça e a guiar os meus passos e decisões. A necessidade de procurar alguma verdade perdida pareceu-me a busca de agulha perdida em palheiro escondido por um manto artificial de escuridão política. E dei por mim a procurar uma nascente de luz numa varanda virada para a vida comum. Em vez da verdade? Não. Como verdade humana que importa.

2.
Num livro de divulgação matemática, Paulos refere-se ao espanto de um jovem perante um Rabi que tem sempre uma parábola adequada para cada assunto, para cada pergunta ou inquietação.

E é verdade que Paulos põe na boca do Rabi uma parábola muito interessante para reagir ao espanto do jovem. Trata-se da surpresa de um guerreiro recrutador que, ao percorrer as ruas de uma aldeia, dá com uma sucessão de alvos desenhados nas portas dos celeiros. O espantoso é que em cada alvo há uma seta espetada exactamente no seu centro. Quando procura o extraordinário atirador (certamente para o recrutar), descobre que se trata de um jovem muito especial que atira setas às portas e depois desenha em volta uma roda centrada na seta espetada.
Depois de mais essa parábola, o Rabi da história de Paulos conclui para o seu jovem admirador que não é verdade que tenha uma parábola para cada assunto, mas que distingue os assuntos para os quais conhece uma parábola. E só fala desses.

3.
Sem mais lições do que essas, mais uma semana passou. E tudo que era bom querer, para sabermos e saborearmos como verdade de todos e para todos, soube a pouco.


[o aveiro; 13/10/2005]


Nota:
Um amigo enviou-me uma mensagem a lembrar-me que eu lhe tinha apresentado o livro em que a segunda parábola aparece e que eu me tinha enganado. O autor que eu identifiquei como Halmos, na minha citação de cabeça, é de facto Paulos. Já encontrei o meu livro: Era uma vez um número de John Allen Paulos, editado em português e em Portugal pela Bizâncio, em 2002. Obrigado.

Tenho de procurar o texto completo do Herberto Helder para confirmar. Essa eu sei-a de cor mesmo. Saberei? A velhice não perdoa. Fiquei para aqui a tentar lembrar-me de um soneto do Antero e já não veio todo. Mudei e levei de vencida um longo poema de Gonçalves Crespo (?). Não está tão mal como ameaçava.

esta hora

Hubo un tiempo en que mis íunicas pasiones eran la pobreza y la lluvia.

Ahora siento la pureza de los limites y mi pasión no existiría si supiese su nobre.

(...)

Esta hora no existe, esta ciudad no existe, yo no veo estos álamos, su geometría en el rocío.

Sin embargo, éstos son los álamos extinguidos, vértigo de mi infancia.

Ah jardines, ah números.




[Ainda. Gamoneda]

o círculo

corro para ti e em redor de ti
corres para mim de mim em redor

riscas, palmilhamos uma volta de roda,
uma revolução, uma queda sem asas


se não é um salto alto em altura
que me afasta de ti no meu primeiro voo

sei que quem pode dar-me mais amargura
é quem limpa o nariz onde eu me assoo.

Dos limites

Como todos devem ter percebido, sou um bom candidato a deputado municipal por um bom programa.

De resto, a educação marca-me limites. Ninguém me verá a prejudicar a recuperação de pessoas em dificuldade.
Sou professor há muitos anos, nada do que é humano me é estranho, não tenho a presunção de adivinhar o futuro de cada pessoa e muito menos posso aceitar tratamentos desumanos e degradantes para pessoas que não reagem em dada circunstância de acordo com o que se podia prever a partir do que demonstraram antes.

Pronto... final.

O homem só

Tento perceber o que faz o homem. O que faz um homem quando está só no espaço que habita? Há quem diga que prefere não comer a levantar-se do sofá onde sempre esteve deitado. Ao contrário, há quem diga que sozinho se desdobra em actividade a fazer as comidas que gosta e que não quer fazer quando há mais gente, para não habituar mal a entourage ou para que ninguém saiba que ele é capaz de comer aquelas m.... Há quem diga que um homem só nunca está só e que come bem, com parcimónia e acompanha a comida com um pequeno copo de bom vinho ou uma adequada infusão. Há quem diga que não há homens sós, como não há mulheres sós.

Mas sozinho, o que faz o homem? Aproveita para chorar?

a cultura


quando a cultura se debate
entre ser
qualquer coisa para vender
e ter
qualquer coisa para vender

eu rabisco cornos e asas
que nem se compram nem se vendem

nem por mim nem a ninguém

postal do pedagógico


eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que tem de haver uma razão para aceitarmos ser como somos quem somos sendo outros e estes mesmos nem mais ar nem mais fogo nem mais água nem

tem de haver uma razão para não querermos estar nas reuniões e tem de haver uma outra para sabermos que o tempo está a passar-se sem sermos atraiçoados por uma vida súbita que nos devolvesse o olhar a um outro lugar longe destes dedos vagabundos que deslizam por um postal no outro lado do frio glacial que aqui me faz gritar por me saber capaz de uma dor que não o é por já não sentir coisa alguma fora das palavras por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer

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