escalada
limpaste as mãos e o farelo agora seco colado
como reboco ou casca grossa descasca-se
ainda uma pevide se vê, sobressai entre os fios de cor
de rosa da abóbora menina da lavagem aos porcos
não sabem eles que o teu jeito vem do convívio
com os porcos que te deram a conhecer as vantagens
evidentes que os humanos e os porcos têm
sobre todos os outros animais por serem porcos
e omnívoros mesmo em tempo de paz e de fartura
eles não podem compreender que tenhas chegado
aonde chegaste e perguntam-se que raio de linha
tomaste para lá chegar e não vais ser tu a dizer-lhes
que mandaste fechar o ramal mal passaste para o lado
de cá onde refocilam ministros como tu
caras de cu.
nem podes dizer
é a minha derrota
porque hás-de ser tu a limpar-me o pó
e a chorar comigo a minha dor ao perder-
-te.
a minha mãe lia as cartas
e gostava de nos ler uma passagem:
para o ano que vem a família inteira vai
a fátima a pé mal eu chegue de viagem
quando se zangava a minha mãe dizia
até a nossa senhora o desgraçado mente!
mas tu vais olá se vais até de rastos vais à cova d'iria,
em nome do pai, do filho e de toda a gente
nem posso dizer
é a tua derrota
porque hei-de ser eu a limpar-te o pó
e a chorar contigo a tua dor ao perder-
-me.
As paredes lavadas
Procuro o lado da paz em Timor Leste e procuro distinguir algum lado da disputa que dispense as tribulações da gente. Procuro desesperadamente um lugar onde uma verdade mesmo que desinteressante paire. Sei bem que a paz não se encontra seguindo as pegadas dos interesses dos deuses, porque o seu descanso é o desassossego dos homens de fé. Sei bem como é difícil esperar por sinais, porque os sinais estão todos misturados e há quem agite os seus fantasmas e os misture aos sinais do outro mundo. Chegam-nos de novo imagens de homens que afiam catanas ociosas em campos de batalha adiada. Se me fosse dado ver as catanas que desbravam caminhos nas matas para semear, plantar e colher as novidades estaria a ver os campos da paz.
Procuro o lado da paz na Palestina e procuro distinguir algum lugar na disputa que dispense as tribulações da gente. Que dispense as humilhações, as aflições, a morte, o desamparo que é a eternidade feita em pó por conflitos sem fim. Sei bem que a paz não se encontra seguindo as pegadas dos interesses dos deuses, porque o seu descanso é o desassossego dos homens de fé. Onde a falta de tudo se respira no pó que se vê em vez do ar, vimos as metralhadoras a tricotar os dias e as noites e a destruição de edifícios a sangrar o tempo. De onde vem o cimento que nos arranha a garganta? De que nadas se fazem milhares de balas?
Procuro o lado da paz. Vasculho os caixotes de lixo atómico em Israel, Irão, Paquistão, .... Vasculho os lugares das pilhagens no Iraque ou no Afeganistão, para levantar, até à altura dos olhos da humanidade, fantasmas da nossa comum civilização que se soltem do seu passado e amaldiçoem a estupidez humana. E, em vez disso, há professores engravatados a explicar-me a inevitabilidade de um jogo de guerra em que a estupidez vence como mal menor. Está na moda, como gravata. o nó corredio da forca.
Procuro afincadamente um lugar livre. Chegam-me pequenos farrapos da guerra e da paz, como se nem existissem num dilema de hoje. Porque o dia inteiro é dedicado ao outro mundo, ... e à nossa pátria de olhos perdidos em outra pátria... expatriada para a Alemanha.
As notícias ganham pernas. Há quem diga que um pontapé certeiro pode parar o mundo. Em volta da terra parada, o abismo engole-nos a todos.
[o aveiro; 15/06/2006]
quanto mais olho
olho para ti
olho por ti
olho em redor
olho por olho
quanto mais olho menos vejo.
escolhos
trambolhos
repolhos
aos molhos
quanto mais olhos menos
o cálice de calma
Quando saio de casa, fico mergulhado numa amargura quente. Posso andar de um lado para o outro, saindo de uma rua para entrar noutra, com a sensação de passear por corredores de um forno onde estou a arder lenta, mas seguramente. Só os corredores da escola me refrescam a alma. Se me sentar? Não me sento pelo sim e pelo não.
Para esquecer os dias demasiado claros, fecho-me descendo todas as persianas da casa e fingindo, sempre que possível, que cá dentro o dia não é vida e que a noite não tardará a substituir a tarde. Tento trabalhar de pé, tento escrever de pé com o computador elevado sobre um cavalete.
O pior disto tudo é que as folhas rabiscadas por dezenas de estudantes esperam dedos ágeis e laboriosos que cumpram as ordens de uma cabeça que veja as dores pelas costas. Parece que acontece o menos provável ou que não acontece e é a cabeça doente quem inventa tudo. Logo agora que nem tempo há, dores nas costas?
O mais entusiasmante ainda foi o fisioterapeuta que, na manhã de segunda, soltou expressões de júbilo quando eu obedeci, sem saber como, a alguma das suas ordens com um movimento de um milímetro que existiu sem que dele eu tomasse conhecimento. Ali se fazem perguntas sem resposta à vista, porque não sabemos bem se é dor ou outra coisa o que sentimos Naquele mundo, cada movimento infinitesimal é saudado com expressões combativas como "bravo!". O que é verdade é que mal saí desse combate, ainda antes de chegar à escola procurava um novo analgésico pelo caminho, antes de voltar a assumir o meu ar mais empertigado e feliz.
Na terça de manhã, saudei cada pequeno esforço dos jovens estudantes espapaçados com expressões de entusiasmo típicas de um fisioterapeuta treinador e aceitei uma soma irritante de pequenas falhas de disciplina individual com uma surpreendente calma. Sem compreender tanta canseira que, pouco depois das oito da manhã, abranda os movimentos juvenis à entrada para a sala de aula. Terão dores nas costas? Nâo.
Sou eu que tenho as costas largas!
[o aveiro; 8/06/2006]
sábado, domingo e segunda...
mergulham-me na maior vergonha:
por andar de pé e ninguém dar por isso;
por me ter vergado até ficar sentado, sem poder.
sem poder?
como sempre, sem poder.
são os doidos de aveiro que
16 horas do próximo domingo
no AVEIRENSE
o espectáculo MAL VISTOS do FITEI
que é para maiores de 16 anos...
FITEI? AVEIRENSE?
O que é que acontece para que isto tenha acontecido?
são os doidos de aveiro
que nos fazem sentir mal
MAL VISTOS em Aveiro
Visões Úteis
XXIX FITEI - Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica
Mal vistos de Gemma Rodríguez -
Prémio Maria Teresa Léon 2002
Aveiro - 4 de Junho - 16 horas -Teatro Aveirense
"A globalização é claustrofóbica. A deslocalização não sai do mesmo sítio. O mundo é uma exclusão. A democracia é apertada. As empresas são sorvedouros. A vida é uma tristeza. Quem ler a peça de Gemma Rodriguez arrisca-se a isto mesmo: a encontrar personagens medíocres porque banais, situações absurdas porque verdadeiras, acontecimentos parados que são como são. É a vida, dizia um personagem de uma outra peça."
Francisco Louçã
in Prefácio à edição de Mal Vistos
O ministro ministra
Uma mulher foi lendo. Chegou aqui de testa franzida por não perceber. E o que escreve sentiu-se na obrigação de escrever como último gesto de fuzilado: Bem se vê que não é professora ou não é portuguesa.
O presente? - ouviu-se a pergunta sumida. Ministro, ministras, ministra - respondeu um aluno surdo a todos os apelos à calma.
[o aveiro; 1/06/2006]
formas de olhar
deus passou por mim agarrado a uma bengala e eu
não saí do meu sofá para o ajudar a atravessar a rua
porque
se deus anda por aí a fazer de velho pelintra
é porque gosta de ser velho e pelintra
como eu sou mesmo que não goste
que ele pode ser tudo o que quiser e até o que não quiser
pode ser
maio findo
se me lembro de águas revoltas que corriam
é porque já não correm ou sou eu que as não vejo
e em vez da água corrente nas mãos
ouço um estampido uma chicotada no ar
à passagem do comboio fantasma
na alta ponte sobre a fenda do corgo.
os anos de chumbo em exame
Nada me move contra a iniciativa privada em geral e, muito menos, contra a iniciativa que emprega jovens licenciados em ensino disto ou daquilo que não arranjam trabalho nas escolas públicas e privadas. E não tenho qualquer dúvida em afirmar que cada pai ou cada mãe (ou ambos) tem o direito de decidir que ajudas dar aos seus, quando e como. (E deve ou não haver restrições sobre a liberdade de ensino?)
Constatando que os alunos são os mesmos, tenho de reconhecer que os nossos resultados conjuntos são muito fracos. E isso é muito preocupante para mim. A ajuda que os pais e os encarregados de educação estão a dar às escolas públicas é um investimento com fraco retorno em geral, tanto quanto à matemática diz respeito.
2. De um modo geral, temos aceitado como verdadeiros os argumentos sobre o poder regulador dos exames. De facto, há dados que nos garantem que sem exame nacional não seriam abordados todos os temas dos programas nacionais na generalidade do território. Se é importante garantir o acesso de todos os jovens aos grandes temas, o exame é importante.
E é sobre as disciplinas sujeitas a exame nacional e de cujo aproveitamento depende o acesso a cursos muito procurados que se concentram os esforços dos jovens e das suas famílias. O esforço dos jovens aparece concentrado sobre estas disciplinas, mas ninguém parece ter razões para celebrar grandes êxitos sobre tanto trabalho. O poder dos exames é afinal pequeno e não se traduz em resultados muito relevantes, apesar de terem levado à mobilização real de muitos recursos e esforços, dentro e fora das escolas.
3. Nas escolas privadas, em que os pais atribuem à instituição um mandato exigente, aceite pelos jovens com elevadas expectativas de sucesso escolar, os resultados dos grupos de trabalho também não entusiasmam. Para grupos reduzidos de alunos com grande investimento em tempo de leccionação, apoio e acompanhamento do estudo, uma média de catorze é mau resultado. Pior ainda se atentarmos no que ouvimos aos responsáveis, pais, alunos e professores, que põem a tónica mais na preparação dos exames que no desenvolvimento de competências, em conhecimento e em cultura.
4. Em Portugal, a natureza das provas é de conhecimento público. Os programas dos exames são os programas nacionais das disciplinas, mas o tipo de questionamento é patente em provas de exame de anos passados e em momentos de transição é mesmo publicitado especificamente com exemplos de perguntas, aos quais se acrescentam respostas esperadas e até critérios a ser seguidos por professores correctores. Está claro que é reconhecido não haver qualquer surpresa no programa de exame face à floresta de indicações que não há quem denuncie como floresta de enganos.
5. Parece que surpresa só há uma: a dos maus resultados nos exames e mais nenhuma. E é falsa esta surpresa já que nos acompanha desde há muitos anos. Li textos das décadas de 40 e 50 do século passado, relativos ao ensino da elite durante o regime fascista, que podiam ser escritos sobre o presente no que aos erros e à má fortuna dos resultados se referem.
6. O que é que está a acontecer? Sendo uma falsa surpresa, tantas vezes repetida, já devia ter merecido uma atenção que, trocada por miúdos, se tivesse transformado em medidas de política que atendessem a uma multiplicidade de necessidades e se desenvolvessem por largos períodos, com uma perseverança tal que as adaptações, sempre necessárias, aparecessem como consistentes partes da política a seguir e não como acidentais marcas das mudanças de directores gerais, ministros ou governos.
7. Falta o exame das políticas? Não resolve. Chumbar governos da alternância também não resolve, como se tem visto. Então?
[a página da educação;Junho de 2006]
a lágrima que corre
[Se os dias passam por mim, eu fico para trás. Esforço-me por ser eu a passar pelos dias até que sejam eles a perseguir-me, domésticos dias de enfado. Ouço os meus dias, olhando para o passado. Complacente com o passado, responsável por ele e sem os "ai, se eu soubesse o que sei hoje...". Habituei-me a ser tudo o que fui e a não ser ex-isto, ex-benquisto, ex-malquisto,... Sou tudo o que fui, somado ao que sou. O futuro é a nascente de perguntas a que vou respondendo.]
Se posso não ter razão, que mal há em perdê-la? Só que os dias recentes não falaram da razão que há em fazer prevalecer a preservação do ambiente, tal como ele existe, sobre as estradas desbravadas pelo desenvolvimento. Achincalhar os "ambientalistas" todos pode retirar chão à minha razão, mas não belisca a razão. Dizem que quem tem sensibilidade apurada para as questões do ambiente se coloca fora do círculo virtuoso dos que querem o desenvolvimento necessário ao futuro de todos. É por ouvir o passado do futuro presente que nos asfixia que eu os vejo mais presos em círculo vicioso dos que entram na rotunda com saída para o abismo. Os dados disponíveis e as previsões científicas não servem para cautelas e caldos de galinha. A ciência que interessa ou a ciência dos interesses desenvolvimentistas é aquela que há-de fazer o milagre de resolver mais adiante os problemas que criamos ontem e hoje, desafiando limites. A sustentabilidade que defendem tem por base um desafio que já não é sustentável. Contra tanta sede de beber a água quase toda e misturar a que sobra ao pó de cimento, só nos resta defender o absurdo do marasmo.
Todos os desenvolvimentistas esperam uma aberta, uma pausa na defesa da fragilidade da nossa terra povoada por bichos, para nela fazer lugares de estacionamento e pequenos desfiles de automóveis entre estacionamentos humanos.
Sabemos que eles sabem que os problemas do ambiente não se vão resolver se abrirmos a estrada e edificarmos a casa que sobra contra a ria e... construirmos a central nuclear que sobra e sorve a água toda do rio que corre e... seca até que a foz seja um fio de água, uma lágrima.
[o aveiro; 25/05/2006]
AMSTERDAM
a par e passo, a cores ou a preto e branco mas não
tnha tempo para ver televisão nem para comprar jornais.
Corria de museu para museu, ingenuamente procurava
apanhar um retrato vivo da cidade, comprava batatas
fritas na rua para não perder tempo em restaurantes
e nunca me cansava.
À noite tinha jazz, com muito sumo de laranja, quase
sempre no ''Mistery Club'' até à meia noite e cinco,
pontualmente, para apanhar o último eléctrico com
destino a Amstel Station.
Quando cheguei e me perguntaram se tinha tido medo
dos terroristas fui obrigado a responder que não -
dos polícias, sim, tenho medo: São espantosamente
novos, louros, corpulentos e passeiam-se na rua
com a arrogância de quem se sabe impune.
Universário; José do Carmo Francisco
hoje, de longe
de longe
chegam cartas curiosas:
alguém pergunta se eu adormeci dentro da casca
ou se me escondi zangado.
[ninguém me escreve, confesso.]
e eu, como sempre sem saber o que responder,
viro-me para o lado contrário de mim
e adormeço de novo sem querer lembrar as tempestades
que inventei quando desafiava instante a instante
uma felicidade que nem era minha
para ser de ninguém
para não ser
e secar a pontada desta dor de não saber
se algum dia
a corda que puxa os cordelinhos.
Olha para as sombras na parede. Podia ter previsto aquele movimento das pedras vivas em seu tabuleiro vital. Um peão que avança para proteger uma raínha e um cavalo que tropeça em seu trote e morre à passagem de um bispo com os olhos marejados de lágrimas minerais. Os países dividem-se em pequenos quadrados e nós quedamo-nos a ver os movimentos das peças de uns quadrados para outros. Podemos prever as escaladas da violência e nada podemos fazer porque vimos o jogo tal qual se nos apresenta instante a instante, sem sermos capazes de ver a mão que mexe os cordelinhos e movimenta as peças de xadrez. Se olhássemos para fora do tabuleiro, víamos como as mãos dos manipuladores abrem e fecham frentes de combate. Umas vezes, o mundo é um tabuleiro e há um jogo para ser jogado. Outras, é o teatro da guerra a ser representado por actores de segunda, às ordens de um encenador histérico como um macaco preso no seu próprio circo de feras.
A guerra que se trava pode parecer um ajuste de contas entre quadrilhas. E é sempre isso, mesmo quando ela quer parecer uma guerra da civilização contra a barbárie ou da barbárie contra a civilização. Nas guerras não há maneiras. Há as boas maneiras da guerra; terroristas, bandidos e senhores da guerra usam luvas, são bons pais de família e amigos dos seus amigos. Não sei se é o medo que nos distrai dos sinais. E decidimos ignorar um gesto e outro até que eles somam os nossos medos e bombardeiam os nossos sonhos de paz.
Distraídos, acabamos por saltar a corda. Distraídos, ignoramos os sinais. Somos apanhados distraídos. Pelas guerras iraquianas, pelas guerras brasileiras, pelas guerras da selva, pelas guerras... Muito tarde reconheceremos uma só guerra em todas as guerras.
[o aveiro; 18/05/2006]
desenharam, logo existe.
Fotografei cuidadosamente a exposição mais bela deste ano nas paredes da minha escola: O Mundo Secreto das HIstologias Vegetais das turmas D e E do 11º ano. Pode não parecer, mas vi a vida de outro modo enquanto estes grandes desenhos a castanho passavam por mim no corredor quando era eu quem por eles passava. Tiras de vida.
E lembro-me de, quando jovem artista, nunca ver coisa alguma enquanto fingia olhar pelo microscópio. Desenhei a memória visual das microscópicas células da casca de cebola nas preparações laboratoriais que me mandavam observar.
Aqui deixo bocados maravilhosos do que podia ter visto para desenhar, com inveja de quem os viu e desenhou agora para me mostrar como é feita a vida aos olhos de quem sabe ver e desenhar. Com uma vénia aos estudantes de hoje aqui os irei expondo.
o canto chão
Várias vezes ao dia, passo ao lado do que foi a "Pizzaria Parque". Para trás dela posso ver um pequeno bosque que ladeia uma bela rua interior e sossegada do meu Bairro de Santiago. No Bairro de Santiago, há vários lugares simples e magníficos - alguns deles da iniciativa de moradores que dão vida a jardins inesperados, outros da iniciativa da autarquia.
Vimos crescer as árvores do pequeno bosque. Tempos houve em que dávamos a volta por lá para ir propositadamente até à "Pizzaria Parque". Por puro prazer, por lá ficávamos muitas vezes a ouvir a babel de Santiago. Não precisávamos de perceber as palavras soltas naquela grande esplanada aberta. Em alguns dias, juntavam-se famílias inteiras batendo palmas e cantando. Pareciam-me toadas dolentes, gritos de paixão ou desesperadas renúncias que contadas para a brisa da tarde esconjuram todo o mal de que elas falam quando falam dos outros em vez de nós. E, não raro, alguém deixava o corpo ondular levado pela marcação ritmada das mãos até à volúpia dos braços apontados ao céu ou desencadeado pelos pés impacientes por rasgar de sons o chão sagrado.
Nunca soube porquê, mas esses puros momentos da nossa comunidade de Santiago foram interrompidos. E a partir dessa perda, nunca mais parou a degradação do lugar até ser um lugar de olhos vazados pelo abandono. Mais triste não pode ser. Mais triste ainda me parece por ter sido terra de alegria colectiva.
E vejo-me a pedir aos poderes deste nosso pequeno mundo que decidam pela criação de novas áreas verdes, mas também pela preservação dos jardins existentes com recuperação e salvaguarda dos equipamentos de apoio. Grandes obras? Queremos só pequenas grandes decisões para proteger o quotidiano com garantia da liberdade e apoio às expressões culturais das comunidades. Naquele lugar de Santiago, há palcos, há campos de jogos, há escola, há biblioteca, há centros de apoio e acolhimento, há... vida a conservar.
Caminhos sem obstáculos para andar, ar para respirar, cores naturais para olhar, bancos para descansar, ler e conversar - esta é a lista dos pedidos. O que pode ser mais importante? Queremos ser vistos a dar a volta ao nosso mundo, em cada um dos nossos lugares de cada uma das nossas freguesias.
[o aveiro; 11/05/2006]
o lugar no tempo
Talvez por ser educador e professor, tenho sérias dificuldades. Não consigo participar em debates de maneira diferente (e muito menos contrária) daquela que defendo junto dos jovens com os quais trabalho. As regras de argumentação nos debates e nas apresentações são mais que instrumentos formais na educação. Para os educados, tais regras nem carecem de estar escritas.
Para além disso, há o espírito do lugar. Naquele lugar, não me permito "performances". Não é de esperar que, naquele lugar, a democracia e a liberdade sejam ameaçadas de forma consistente. E os debates podem conduzir-se nos limites das diferenças de opinião, da discordância frontal face a decisões e intervenções de outros, da denúncia do que se considera errado (ou mesmo criminoso) e da aceitação de propostas alternativas.
Nunca tinha sido claro para mim que a simples memória do aniversário da revolução de Abril de 1974 desse pano para mangas numa Assembleia que não podia existir antes e existe depois dela. Escrevi: existe depois dela. Não escrevi apesar dela.
Para mim, e disse-o na Assembleia para efeitos da participação democrática, 'o antes' do 25 de Abril foi nada e 'o depois' foi tudo. Porque antes eu não podia participar livremente e toda a minha vida era 'contra' ou 'obediente e cega'. Porque depois eu trabalhei, participei, escolhi representantes, falei, gritei, escrevi, tomei decisões boas e más. Posso criticar os que tiveram mais responsabilidades e posso nem lhes perdoar. Posso denunciar o mal que fizeram. Posso ser responsável e responsabilizar. E posso reconhecer que ficámos longe de cumprir o Abril possível em justiça social e solidariedade verdadeira e mesmo em democracia participada e viva.
Que lugar é a Assembleia Municipal?
[o aveiro; 4/5/2006]
recebi uma carta pelo correio
quando o que procura é ... sexo.
A mulher finge em relação ao sexo,
quando o que procura é ... amor !!"
(Enrique Rojas)
É? - respondo eu.
beijar a boca do dia
Caminhavas rente aos muros arrastando um pincel de sono e sonho, vermelho e amarelo, branco e preto. Escrevias cartas curtas sem saber quem as iria ler. Com a fadiga própria das noites longas, abrias os teus olhos de mocho mudo no beco e escrevias a carta necessária que mais valia ter ocupado rua onde passasse gente. Pensavas que era triste esconder a carta de amor no beco e pensavas que se fosses apanhado no beco não tinhas por onde fugir. Mas não deixavas de fazer esse gesto de amor, o mais irracional de todos.
E, mal rompia a manhã, lá te levantavas para o trabalho aos olhos dos vizinhos e dos colegas e encenavas a alegria de estar vivo. A alegria de estar vivo. Como hoje? Lembras-te da música das marchas que assobiavas nas manhãs sujas? Ainda hoje te perguntas: Se eras tão medroso como dizes que eras, porque assobiavas aqueles desafios?
Passaram tantos anos e a fadiga da idade reduz-te a passada de todos os dias. Nunca houve fadiga na tua liberdade.
Há uma irritação surda com todos os que se penduraram na boleia da liberdade (que não lhes custou a ganhar, embora já tivessem idade para fazer por isso), e dela fizeram carroça da fortuna, do poder e da glória mais vã. Passeiam-se em liberdade, fazendo gala da boçalidade e da imbecilidade mais atrevida contra a liberdade dos outros, dos que dela mais precisam. Porque sabem que só há liberdade a sério quando houver a paz, o pão, saúde, habitação... que era letra de canção e é ainda em grande parte... promessa por cumprir.
Quando a guerra acabou e a vida se tornou um rio de pura euforia, a alegria breve do amor fez-se eterna e murmuraste a terna promessa de que tudo quanto era bom podia ser possível. E, com liberdade, beijaste a boca dos dias.
Já avô e ainda podes mostrar a marca perene do beijo que guardaste do 25 de Abril de 1974. Que mais queres? Tudo o que era Abril e não era sonho. Tudo de tudo.
[o aveiro;27/04/2006]
fruta da época
Para mim, podem ganhar força de actualidade, a constituírem encargo para palavras minhas, assuntos que a mais ninguém interessam. Nos tempos que correm, a actualidade não existe em rigor. Um jornal, um grupo económico ou editorial (nem sempre são coisas diferentes), um canal de televisão ou um partido pode criar uma actualidade que pode não ser senão a artificialidade conveniente a um qualquer propósito quase sempre inconfessável.
Nestes últimos dias, há vários assuntos que são falados ou soam a falados. Frequentemente nem assuntos dignos de nota são, até porque não são mais que palavras, anúncios de anúncios, podem não passar das palavras aos actos e ser passos em falso. Há quem me acuse de não dar aveirística atenção a tão magnos assuntos. Não dou para esses peditórios.
Jornalistas há que até nos perguntam sobre pormenores dos assuntos que os "pormenorizadores" encartados têm de inventar por os não conhecerem. Não gosto de escrever sobre cenários que um professor alinhava do mesmo modo que classifica ministros com notas entre 8 e 12, debita o tamanho das bolas do estoril aberto, folheia o livro das memórias da razão de um novelo da linha, notícia nacional de estrangulamento ali aos cabos ávila. Nada me diz a actualidade propagandística do governo autoritário e servil, ou a do governo local que anuncia num dia o anúncio do dia seguinte ou a de algum facto político desejado pelo protagonismo da oposição a coisa nenhuma.
Outros que falem dos novos pecados, da regionalização encapotada e da vantagem da cidade dos doutores e cantores (e de ditadores também, claro), do juízo perdido entre cidades ip5, da demissão do polícia que devia ser a do ministro, das lições a tirar da manga e da magna carta da educação do "tory blair", etc.
Eu escrevo a respeito do nada, comentando a actualidade do relatório de um tempo passado sem presente.
A actualidade pinga da dentada na polpa da fruta da época e obriga-me a uma vénia.
[o aveiro; 20/04/2006]
a sede
em meus lábios como a água é a saliva
e formando o rio que corre e morre
como eu hei-de morrer para tu viveres
afogada na minha sede mais viva.
o dia do meio
Há arautos dispostos a anunciar que o fim da época de ouro em que vivemos está próximo, embora a maioria nunca tenha dado pelo ouro da época. Falam do fim, do fim da assistência na doença, do fim da segurança social, do emprego, do subsídio de desemprego, do fim de todos os serviços universais e essenciais para os quais há estado providência. Falam do fim.
Um porta-voz há-de vir dizer que estão a ser egoístas os que querem manter o emprego estável e com direitos ou que apelam à solidariedade social intergeracional e acrescentam às empresas papel social ao papel cotado em bolsa. O porta-estandarte dirá que quem luta pela manutenção do seu posto de trabalho, combate a flexibilização das leis laborais ou exige o pão nosso de cada dia está a estrangular o desenvolvimento económico e a pôr em risco o futuro dos filhos do futuro.
O mesmo dizem das organizações e partidos que, fora do circo do poder económico, procuram os olhos das pessoas reais e, sem os evitar, defendem as crianças de hoje enquanto exigem a modernização da economia sem o sacrifício dos que comem para trabalhar, produzindo sempre mais do que comem. Sabe-se hoje que a tragédia da nossa economia não foi nem é criada pelos trabalhadores e produtores e muito menos pelo seu egoísmo e incapacidade de adaptação, antes é criada pelo egoísmo e voracidade do capital que não quer ser produtivo para ser só financeiro e, vidrado pelo lucro fácil de cada dia, está incapaz de se ver como capital humano e social.
A modernização do tecido empresarial e económico só pode ser feita pela instauração da lei da selva cotada no mercado que não respeita nada nem ninguém do dia de hoje? Dizem os porta-notas que a libertinagem capital e o desenvolvimento económico vai criar obrigatoriamente novos postos de trabalho a compensar os sacrifícios exigidos ao presente.
Contra a invenção da solidariedade sacrificada ao futuro sem compromissos com o presente e a acusação de egoísmo lançada contra todos os presentes levanta-se um pequeno senão: os trabalhadores também amam os seus filhos hoje e eles precisam do pão nosso de cada dia.
[o aveiro;13/04/2006]
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Nenhum de nós sabe quanto custa um abraço. Com gosto, pagamos todos os abraços solidários sem contarmos os tostões. Não regateamos o preço d...
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eu bem me disse que estava a ser parvo por pensar que só com os meus dentes chegavam para morder até o futuro e n...