contrabando em poemas (2004)

onde estamos, onde nos afundamos? onde estamos, onde nos afundamos? 


aqui fundeamos, soltamos uma âncora 

e esperamos que ela encontre quem a prenda 

e nos prenda a nós \br nas vagas de um lugar qualquer 

ainda que cercados por tubarões 

de que sabemos nomes e apelidos. 


porque será que preferimos o incerto lugar 

e fundamos a esperança neste alto mar?



não desdenhes, se puderes 



não me abandones antes de ter encontrado 

o silêncio de ouro 

que é o que sobra como tesouro 

das histórias inteiras que fazem o nosso fado 


a guitarra que só depois de ter o visto 

e o ouvido vestido 

deixa marca escrita no areal do rosto pelo mar varrido

uma mancha das palavras com que eu me visto 


para descrever-te o instantâneo a revelação 

final numa câmara escura 

onde registas o teu sonho de aventura 

e eu vejo a tua alegria como redenção 


e, se puderes, sussurra-me o segredo 

do teu riso 

e eu nunca mais volte ao meu perfeito juízo 

de onde devia afinal ter saído muito mais cedo 


como rilke, fendendo a porcelana da noitinha 

Quando a tardinha dá lugar 

à noitinha, há praças que tomam 

a forma de aquários. 


A água suspensa 

suspende-nos um pouco acima do chão 

e fendemos o tempo lentos entre as gotas 

das cortinas de chuva miudinha

que desenham portas na cidade. 


Sem ninguém à vista desarmada 

respiramos à maneira de quem nada 

num voo mariposa.


eu sei que quero 

Eu sei que quero tocar nas tuas teclas em carne viva 

Na tua pele nas extremidades dos teus nervos mais sensíveis 

é aí que procuro o destino das casas improváveis mas possíveis 

paredes da clausura para que a minha na tua alma sobreviva



embora 

embora vibre 

o dourado junco está morto:

à malícia do vento ainda obedece 


o dourado vegetal é uma cor de moribundo 

que se despede numa falta de ar e ao ar se esquece. 


onde os cabelos são juncos e o meu corpo apodrece <br> a água parada transparece



as flores que te enfeitavam  


As flores que enfeitavam de cores 

 o prado do teu cabelo 

 foram comidas pelos teus piolhos 

  herbívoros 


 Os pequenos esquilos que brincavam na floresta 

  dos teus cabelos 

  foram comidos pelas tuas pulgas 

  carnívoras 


 Os tubarões que nadavam no mar dos teus olhos 

   sob as franjas do teu cabelo 

   foram devorados pelas carraças 

   das tuas mesquinhas ideias 


 Tens tão pouca graça agora 

    que eu já nem sei se a gente inda namora. 


============================

 [escrito antigamente, reencontrado



 

caridade 


a separação

 entre a terra e o céu

 tem de ser registada em cartório notarial 

para valer



a arte entre os dias 

 

se ensinas uma teoria sem teoremas não tens que dominar a arte e a técnica 

 da demonstração 


 podes ver que os teus aprendizes crescem contigo 

 se eles abrem no corpo da tua companhia um postigo por onde coam raios de luz

 e por onde disparam

 ou certeiras formas baças contra os dias mais calmos 


 ou rigorosas cores brilhantes para os corações das inquietantes e esguias árvores que se movem por dentro dos dias mais húmidos 


ou balas tão perfurantes quanto verdadeiras 

que abram uma brecha numa cisterna de sede 



 os aprendizes nada te exigem: nem demonstração nem resposta 


eles são aprendizes e sabem que as tuas respostas vão esvair-se

como se esvai o sangue vermelho da nuvem desfeita em lágrimas 

ardentes por dentro da ausência de uma armação sem tela 

eles são aprendizes e sabem que para ti as mais intuitivas 

de todas as respostas são sobre a cor do vento e a forma do ar 


 eles são aprendizes e sabem que o espírito deste lugar habita 

 nesse que mostra e não demonstra



 o andar do corpo 


 se assim fosse o abismo 

o que eu vejo quando olho para a rua da varanda 

do teu andar



 nasce! grita comigo!



nasce outra vez! grita 

comigo, engole

 todo o ar do meu mundo. 


No rio de ar nascido 

do teu choro de asfixia 

 morra eu ao teu primeiro segundo. 



faz anos ao domingo


a mulher flamingo 

pesca à linha 

do horizonte 

 o sol moribundo 

que reanima 

 num abraço de penas 

antes de o devolver 

 à vida 

de afogado. 



na cadeira da tua vida 

 


adormeces 

bebendo directamente do cachimbo

 o ar que respiras.       



vi(r)agem 



 Num dia como os outros 

solta-se entre as palavras 

 um fumo enrolado pelos açores

e o brinde tinto lava uma terra inteira: 

 como uma trave na arquitectura da casa da calheta 


a gargalhada comum voa nos corredores 


 até se enterrar no sagrado chão 

onde o chão não existe 

 porque uma mansa vaca pasta a nossa passagem 

 pelo mundo. 


Num dia como os outros 

desistimos de olhar para longe 

olhando para dentro. 



brando


 vi-te nas telas: nas planícies incendiadas 

és o bisonte que desafia com os cornos 

 a nuvem levantada pelos teus próprios cascos.



a cadeira da casa


entras 

 e sentas-te nos meus joelhos: 


 a última cadeira da casa que ainda não espatifei

 por cobardia.




o facto preto das cerimónias


 finalmente tenho razões 

 para chorar e rir como só eu sei 

 há uma procissão de figurões 

 e no andor vai sant'ana nua feita rei 



para deleite da canalha 


como um palhaço fazes a pirueta 

que te faltava para seres o país da treta 

e saltimbancando um pouco mais para a direita 

adormeces na cama de visgo onde a canalha se deleita



exílio


 eu vou cá para fora lá dentro de mim 

deste canto exporto olheiras e maus olhados 

e óleo de pavão que é dos mais importados 

 no país onde ninguém se importa antes do fim.



intervalo


 quando me cansa a frase seguinte 

 do relatório que folheio 

 venho até aqui como pedinte 

 pedir esmola às pessoas em passeio ... 


uma esmola, duas pepitas de memória 

peço por uns instantes a mais de sossego 

como se reclamasse o salário do cego 

que canta uma lengalenga sem história 


outras vezes canto tão alto um fado à janela 

aquele que aconteceu ao pintor que assassinou 

à facada o auto-retrato da sua última tela 

 e a esse rio de tinta para onde se atirou.


descendo


descendo pela vereda verde 

e estreita 

afinal sobes até um calvário 

onde, presa em seu sacrário, 


a estátua espreita 

quem se perde 




partida 


Eu vou ver o branco dos olhos magoados 

as madrugadas onde elas estiverem na preguiça 


 e em alguns dias dos mais desesperados 

 cantarei, pela salvação da minh'alma, uma missa 


 Se alguém sossegar a um canto da minha igreja, 

gozando a solidão do fresco da nave lateral, 

 farei do meu canto um tal silêncio feito em cal 

até não ser mais que estátua o que de mim se veja.



transumância 


pelo pasto das chamas a dor 

 ladra avisos até ficar rouca 


que já não cabe dentro da boca 

 a língua de fogo do pastor. 



o passeio de domingo 



quero ser o passeio 

em margens 

onde corra como um rio 


 ou ser preso na casa 

de seda 

em volta da mulher 


 e escrever o poema 

numa pele de lençóis 

 da cama por fazer


 quero ser o passeio que ela faça 

 quando errar nas nuvens 


quero ser o senhor dos passos 




a segunda feira de cor



ando a escolher as cores 

que fiquem bem em corredores 


e vendo pela oferta mais baixa 


 o quadro de que se mostram pormenores 

neste poema claro 


 fico à espera do primeiro dedo de um amigo no ar 


e se deixar endereço ainda trato do envio e não cobro 

nem portes de correio. 

 também por um preço ainda mais baixo, vendo 

 a um amigo que não tenha duas caras.




alto do erro



quem vem pelos pirinéus, 

tomando o caminho a partir de Orthez

para Pampelune (ou Pamplona ou Iruña?) 

passa por casas espantosas a desenhar 

contornos a pastagens 

 (tanto para bestas celestiais como terrenas)

e que nos enganam o olhar. 

e possível se torna ver o que é impossível construção. 


 como pode resistir

 um pintor ingénuo à matemática da paisagem

 ou um poeta a um lugar nomeado

Alto do Erro?



crime da razão futura


 a história não vai falar dos nossos 

 mártires porque nela entraram carregando 

o espanto sobre a pacatez da vida o desmando 

 do trágico navio que transporta ossos 


o futuro só vai contar mártires de dois modos:

entre derrotados ou entre vitoriosos agressores 

tenham ficado vivos ou tenham morrido todos 


abraçados a uma casa, causa ou seita 

só os vivos de um e outro lado sentem as dores

dos mortos que assombram a sua cama estreita



 a história espalha o pó fino que sufoca 

 os gritos e simula na pedra funerária 

que todos os outros morreram pela boca 

de cena fazendo de actores de vida adversária 



tirania


não me digas que as comeste 

porque ninguém 


a começar pela tua mãe 


 te avisou que as lâminas 

de barbear 

não são para comer.




a forma nova


 dizem que não há paixões humanas que prestem 

 e que todos os poemas foram já ditos e escritos 


não mais que personagens de um fado bem passado 


poetas são ratos de biblioteca a sobreviver 

 em buracos dos livros que não param de roer 


 poetas são os que usam formas novas para cozer 

em lume brando o poema mastigado e vomitado 

até este ficar queimado pegado colado 

 e parecer que não tem nada a ver 

nada para entender 

e pouco ou nada para ler 


 dizem que já não há líricos tísicos nem sanatórios 

 e que os poemas são incerta forma para citações 

ditadas e reeditadas experiências de laboratório 

onde não entram nem saem emoções. 


 e que já nem preciso é sequer manuscrever. 




amarei 



 das patas 

da aranha amarei os pêlos na sopa 

quando a devolvo à copa 

 para que a aranha inteira a enriqueça 


e eu, enfim, rejuvenesça


 até andar de gatas 


quando voltamos


já somos outros

mas não sabemos falar disso

porque no final voltamos ao mesmo

porque não fizemos mais que um par de meias voltas 


e desatámos os nós da língua para voltarmos a ser mudos como antes


sei lá se sou de lá ou de cá


 os outros dedicam-me uma certa piedade compassiva 

e isso me basta


nem aceito o risco do meu tempo a seu tempo

que reconheço como sinal e ferrete.



as linhas



quando desenhas as linhas 

 do meu desgosto 

sei que a manhã desperta 


as minhas mãos no teu rosto 



se na minha face rugosa alinhas

os dedos do carvão que se desfaz 

ao vento da janela aberta 


volto de asas caídas aonde tu já nem estás




letra a letra




 digam-me letra a letra a minha cruz 

soletrem-me do calvário o caminho 

à volta sem regresso 


e esmaguem entre dois dedos uma a uma cada luz 

os pontos na espiral em que definho. 


é só o que vos peço. 




a gola da samarra


que contas tu ó pobre para um fado 

em dó maior... do que uma algazarra 

 de cães que perseguem por todo o lado 

 o coelho que foi gola da tua samarra 


 quando a tua avó era viva e tu eras a criança 

a querer ser padre da tua freguesia 

quando fosses grande e não fugisses para a frança 


ah! se tivesses crescido outro galo lhes cantaria





desenho




quem anda com os pés nos bolsos do corpete 

e mostra os dentes a quem sua mais que morde 


usa um número acima para as câmaras da biciclete 

 e não sabe que pedala para onde mora a morte. 





a demora



espera mais um pouco.

por ti

 

se fores devagar, talvez possas 

fazer-te companhia mais um pouco.


 afinal vão ambos para o mesmo lado! 


e a viagem é assim mais lenta






quem sou


por entre o lixo do hospício, vagueio como doido 


varrido 

por uma vassoura de penas minhas. 





o dia mais que perfeito



atravessam cedinho 

a vila, deste lado ao de lá do monte onde a manhã dá à luz o sol, 


os passos ligeiros da mulher mais bela do dia 

 escolhem maçãs bravas colhidas à árvore da madrugada. 


 ah! e fosse eu com ela de mãos dadas assim cedinho




onde a blusa abre




onde a blusa transparece 


 os olhos matam a sede das mãos ansiosas 

do alpinista trepando pelas encostas dos seios, 


e, na planta riscada sobre a terra lavrada, 

esse vale do ventre em que se levanta o desejo da arquitectura 

para a possuída casa ancorada em estacas de vento e de ternura, 

eu desenhei a vida inteira por viver e por mais nada 


deixei cair pelo fio do prumo o olhar a pique 

e, ecoando grave, em queda livre, a voz calei 


 ali onde a blusa começa e se entreabre 

uma porta escancarada.




asa delta



a fita que se soltou do teu chapéu 

chamou-me pelo nome pronta para voar 


 e eu hesitei no teu decote o meu olhar 

antes de ir com ela para o mais alto céu. 



 de tão longe ver-te como um ponto final, 

quando tanto te desejei em cada pormenor, 

não vejo pior 

mal



o frio céu  

antes neve e gelo em teu banho de espuma 

que o frio no céu 

da minha boca ... 



o engano do jorge



não votei em durão barroso, nem no psd e muito menos no cds, 

mas reconhecia o db como primeiro ministro do meu país. 

não sendo eleito sequer para governar portugal, 


santana lopes pode assinar uma constituição europeia? 


 pode. por s.jorge!


não, em meu nome

eu só espero que a caneta tenha uma diarreia.



muda a hora 



muda a hora. às duas de qual manhã?  às duas por três, numa catedral aberta,

 visito mortalhas em fila de espera 

e só ouço o silêncio frio 

de um amigo que ressona 

 sem saber que morreu uma hora mais cedo. 



as ideias 



eu sou o meu único tormento 

e as tormentas por que passo. 


eu sou o navegador 

que inventa o cabo e o dobra.



a garça que caminha



a garça tem olhos inquietos e um corpo suspenso 

desajeitadamente reequilibrado com o bater das asas 

o boi tem olhos conformados ao corpo pachorrento 

uma tremura por dentro da pele macia avisa as asas da garça: 


 podemos caminhar juntos, voar é que não! 




chamado 



disseram-me que muitos são os chamados 

e poucos são os escolhidos 


 a mim chegava-me ser chamado 




nada me custa mais que corrigir provas de amor 


Quando te pergunto e tu respondes, 

procuro o certo e o errado ou o que escondes? 


 Eu não quero saber o que é certo ou o que é errado 

nem quero virar o ar dos sons para vibrar por outro lado 


 Sou eu quem se desfaz em tinta vermelha verdadeira 

chorando sangue sobre a tua resposta azul certeira 


 a não esperada 

 ou a não desejada 

ou o contrário de tudo ... que é nada. 





se acordar 



se a manhã vier beijar-me 

como só ela sabe 

eu hei-de saber calar-me 

no colo em que meu sonho cabe. 


se acordar? 

sonho acordado.




em saco roto 



se eu me levantar e pedir a palavra para dizer 

como Novalis disse ... 

 é porque não sou um saco roto




desenho. logo existe



o luar contigo 

 é o desenho 

 de um luar comigo 


desencontros tanto acontecem 

ao luar contigo 

como ao lutar comigo




nenhuma orelha te arde


Nenhuma orelha te arde 

por eu me pensar


Contra praga de cobarde

 nem precisas de abrigo.



a viola


 muitas vezes, como 

se soubesse tocar-lhe 

 abraço-a 


assim como 

se a embrulhasse 

numa canção de embalar 

antes de a acordar.




lenda



aos homens disseram: 

 - pesquem que é um bom desporto! 

homens houve que acreditaram e fizeram 

 o melhor isco de homem morto. 


mais tarde disseram 

 que os peixes não morderam. 


 os iscos usados na pesca desportiva 

de mar salgado passaram pelas brasas 

 antes de serem petiscados em suas casas 

 pelas viúvas respectivas. 




tarde tocaste




foste a última a tocar o meu pobre coração 

mas foi tão tarde 

que é o tal fogo, o que arde 

sem que o possas ver, o que me consome 


 e, quem sabe?, talvez me mate à fome. 



as portas



assim abandonado e só e arruinado. 

ser lugar visitado e visto por uma porta entreaberta

para ser outro 


assim no alto 

pelos seus dois olhos vazados

a porta não vê



as portas  



ao fundo, a casa do alto vento 

abriga uma fogueira de caçadores 

espreitando o rio, como quem espreita 

a serpente que vem da espanha onde nasceu

e onde deixa os ovos


vimos passar as luzidias escamas

do seu dorso a caminho da cabeça,

a nossa, essa que nos envenena cada vez

 que nos morde

quando nos beija 

 com a língua multífida da ibéria. 



 

as portas 



enganas-te

para pensares em fugir por aí, 

 precisas de asas para voar 

e isso eu não tenho para ti.



as portas



os meus rebanhos pastam as tuas costas 

 e bebem-te sem estragar a miragem no espelho: 


a uma distância prudente e medrosa pensas que reflectes 

 estando eu a olhar para ti e para quem não te compreende 

na ânsia de seres livre em cada pedra que te prende 


e beirando portas pronto a sair 

afinal entrando 

 de um para outro lado 


 de uma nação a outra.




desenho para passar o tempo


desenho para não olhar quem não quero ver

desenhar é como mudar de passeio. 


desenho as linhas das mãos dormentes 

desenhar é não veres o que só tu sentes




 o que a morte sabe 



O que a morte sabe 

 eu não sei se cabe 


na boca suja do inferno 

no mais vazio instante do eterno



 na biblioteca dos medos 


onde guardas mais segredos 

é lá que também a morte se deita 

e o quase nada de tudo espreita. 




a flor das águas



devias deixar-te afundar um dia só para veres o negro

 verdadeiro e enfim dares valor a cada raio de luz 


 não é coisa sem valor uma pepita de luz 


devias deixar-te cair com um peso amarrado ao pescoço. 

 para veres como pesa menos o que te prende ao lugar 

 de onde queres sair desesperadamente

porque te vai faltar o ar, vais dar real valor a cada bolha de ar 

que verás a sair sem regresso da tua boca

e como vais invejar a sua agilidade na pressa da subida


 - se tenho medo do escuro, mais medo tenho da falta de ar! - 


 é o que dizes para esconder a verdade 

 de apaixonado que estás, sempre estiveste, pela flor das águas 

 e seu brilho tenso de fronteira instável entre água e ar, 

 sombra e luz, 


 a tua vida adiada antes e depois da tua morte anunciada.



fado calado 



 já decidiste tudo para depois quando 

 tiveres partido. 


 o fado da tua morte é só um verso perdido 

que a tua vida foi adiando. 



e o poema da vida que te coube em sorte 

é a história de cordel da tua morte. 



já?



 já decidiste que não falas por falar, 

 com quem não falas, a quem não respondes, 

quem não queres olhar 

de quem te escondes 





 levanta-te e dança!



um dia o meu pai olhou para mim e disse:

 se te levantares saberás o que é andar sem ajuda 

e isso, tão pouco!, é a liberdade que em ti tudo muda. 


[¿Sabia ele o que lhe diria hoje se o visse?]


 e, tendo construído em verga forte duas bengalas

 até à altura dos meus sovacos de criança,

levantou-me do cesto onde jazia para dizer: "abram alas! 

que é tempo do arsélio vir mostrar como se dança". 


  torturadas


tanto as amo vestidas de frondosas copas 

 pelo estio 

como as choro assim nuas torturadas 

 às mãos do frio



a esperança



renasce como uma onda puxada pelo vento 

 e morre ali refeita suspiro ao chegar 

 à praia onde como quem mói o pensamento 

 piso meticulosamente cada bolha de ar. 




aqui fundeamos, soltamos uma âncora 

e esperamos que ela encontre quem a prenda 

e nos prenda a nós \br nas vagas de um lugar qualquer 

ainda que cercados por tubarões 

de que sabemos nomes e apelidos. 


porque será que preferimos o incerto lugar 

e fundamos a esperança neste alto mar?



não desdenhes, se puderes 



não me abandones antes de ter encontrado 

o silêncio de ouro 

que é o que sobra como tesouro 

das histórias inteiras que fazem o nosso fado 


a guitarra que só depois de ter o visto 

e o ouvido vestido 

deixa marca escrita no areal do rosto pelo mar varrido

uma mancha das palavras com que eu me visto 


para descrever-te o instantâneo a revelação 

final numa câmara escura 

onde registas o teu sonho de aventura 

e eu vejo a tua alegria como redenção 


e, se puderes, sussurra-me o segredo 

do teu riso 

e eu nunca mais volte ao meu perfeito juízo 

de onde devia afinal ter saído muito mais cedo 


como rilke, fendendo a porcelana da noitinha 




Quando a tardinha dá lugar 

à noitinha, há praças que tomam 

a forma de aquários. 


A água suspensa 

suspende-nos um pouco acima do chão 

e fendemos o tempo lentos entre as gotas 

das cortinas de chuva miudinha

que desenham portas na cidade. 


Sem ninguém à vista desarmada 

respiramos à maneira de quem nada 

num voo mariposa.


eu sei que quero 



Eu sei que quero tocar nas tuas teclas em carne viva 

Na tua pele nas extremidades dos teus nervos mais sensíveis 

é aí que procuro o destino das casas improváveis mas possíveis 

paredes da clausura para que a minha na tua alma sobreviva



embora 



embora vibre 

o dourado junco está morto:

à malícia do vento ainda obedece 


o dourado vegetal é uma cor de moribundo 

que se despede numa falta de ar e ao ar se esquece. 


onde os cabelos são juncos e o meu corpo apodrece <br> a água parada transparece



as flores que esperança 


As flores que enfeitavam de cores 

 o prado do teu cabelo 

 foram comidas pelos teus piolhos 

  herbívoros 


 Os pequenos esquilos que brincavam na floresta 

  dos teus cabelos 

  foram comidos pelas tuas pulgas 

  carnívoras 


 Os tubarões que nadavam no mar dos teus olhos 

   sob as franjas do teu cabelo 

   foram devorados pelas carraças 

   das tuas mesquinhas ideias 


 Tens tão pouca graça agora 

    que eu já nem sei se a gente inda namora. 


============================

 [escrito antigamente, reencontrado]



 caridade 



a separação

 entre a terra e o céu

 tem de ser registada em cartório notarial 

para valer



a arte entre os dias 

 

se ensinas uma teoria sem teoremas não tens que dominar a arte e a técnica 

 da demonstração 


 podes ver que os teus aprendizes crescem contigo 

 se eles abrem no corpo da tua companhia um postigo por onde coam raios de luz

 e por onde disparam

 ou certeiras formas baças contra os dias mais calmos 


 ou rigorosas cores brilhantes para os corações das inquietantes e esguias árvores que se movem por dentro dos dias mais húmidos 


ou balas tão perfurantes quanto verdadeiras 

que abram uma brecha numa cisterna de sede 



 os aprendizes nada te exigem: nem demonstração nem resposta 


eles são aprendizes e sabem que as tuas respostas vão esvair-se

como se esvai o sangue vermelho da nuvem desfeita em lágrimas 

ardentes por dentro da ausência de uma armação sem tela 

eles são aprendizes e sabem que para ti as mais intuitivas 

de todas as respostas são sobre a cor do vento e a forma do ar 


 eles são aprendizes e sabem que o espírito deste lugar habita 

 nesse que mostra e não demonstra



  o andar do corpo 


  se assim fosse o abismo 

o que eu vejo quando olho para a rua da varanda 

do teu andar



 nasce! grita comigo!



nasce outra vez! grita 

comigo, engole

 todo o ar do meu mundo. 


No rio de ar nascido 

do teu choro de asfixia 

 morra eu ao teu primeiro segundo. 



faz anos ao domingo


a mulher flamingo 

pesca à linha 

do horizonte 

 o sol moribundo 

que reanima 

 num abraço de penas 

antes de o devolver 

 à vida 

de afogado. 



na cadeira da tua vida 

 


adormeces 

bebendo directamente do cachimbo

 o ar que respiras.       



vi(r)agem 



 Num dia como os outros 

solta-se entre as palavras 

 um fumo enrolado pelos açores \

e o brinde tinto lava uma terra inteira: 

 como uma trave na arquitectura da casa da calheta 


a gargalhada comum voa nos corredores 


 até se enterrar no sagrado chão 

onde o chão não existe 

 porque uma mansa vaca pasta a nossa passagem 

 pelo mundo. 


Num dia como os outros 

desistimos de olhar para longe 

olhando para dentro. 



brando


 vi-te nas telas: nas planícies incendiadas 

és o bisonte que desafia com os cornos 

 a nuvem levantada pelos teus próprios cascos.



a cadeira da casa


entras 

 e sentas-te nos meus joelhos: 


 a última cadeira da casa que ainda não espatifei


 por cobardia.




o facto preto das cerimónias


 finalmente tenho razões 

 para chorar e rir como só eu sei 

 há uma procissão de figurões 

 e no andor vai sant'ana nua feita rei 



para deleite da canalha 


como um palhaço fazes a pirueta 

que te faltava para seres o país da treta 

e saltimbancando um pouco mais para a direita 

adormeces na cama de visgo onde a canalha se deleita



exílio



 eu vou cá para fora lá dentro de mim 

deste canto exporto olheiras e maus olhados 

e óleo de pavão que é dos mais importados 

 no país onde ninguém se importa antes do fim.



intervalo


 quando me cansa a frase seguinte 

 do relatório que folheio 

 venho até aqui como pedinte 

 pedir esmola às pessoas em passeio ... 


uma esmola, duas pepitas de memória 

peço por uns instantes a mais de sossego 

como se reclamasse o salário do cego 

que canta uma lengalenga sem história 


outras vezes canto tão alto um fado à janela 

aquele que aconteceu ao pintor que assassinou 

à facada o auto-retrato da sua última tela 

 e a esse rio de tinta para onde se atirou.



descendo



descendo pela vereda verde 

e estreita 

afinal sobes até um calvário 

onde, presa em seu sacrário, 


a estátua espreita 

quem se perde 




partida 


Eu vou ver o branco dos olhos magoados 

as madrugadas onde elas estiverem na preguiça 


 e em alguns dias dos mais desesperados 

 cantarei, pela salvação da minh'alma, uma missa 


 Se alguém sossegar a um canto da minha igreja, 

gozando a solidão do fresco da nave lateral, 

 farei do meu canto um tal silêncio feito em cal 

até não ser mais que estátua o que de mim se veja.



transumância 


pelo pasto das chamas a dor 

 ladra avisos até ficar rouca 


que já não cabe dentro da boca 

 a língua de fogo do pastor. 



o passeio de domingo 



quero ser o passeio 

em margens 

onde corra como um rio 


 ou ser preso na casa 

de seda 

em volta da mulher 


 e escrever o poema 

numa pele de lençóis 

 da cama por fazer


 quero ser o passeio que ela faça 

 quando errar nas nuvens 


quero ser o senhor dos passos 




a segunda feira de cor



ando a escolher as cores 

que fiquem bem em corredores 


e vendo pela oferta mais baixa 


 o quadro de que se mostram pormenores 

neste poema claro 


 fico à espera do primeiro dedo de um amigo no ar 


e se deixar endereço ainda trato do envio e não cobro 

nem portes de correio. 

 também por um preço ainda mais baixo, vendo 

 a um amigo que não tenha duas caras.



alto do erro



quem vem pelos pirinéus, 

tomando o caminho a partir de Orthez

para Pampelune (ou Pamplona ou Iruña?) 

passa por casas espantosas a desenhar 

contornos a pastagens 

 (tanto para bestas celestiais como terrenas)

e que nos enganam o olhar. 

e possível se torna ver o que é impossível construção. 


 como pode resistir

 um pintor ingénuo à matemática da paisagem

 ou um poeta a um lugar nomeado

Alto do Erro?



crime da razão futura



 a história não vai falar dos nossos 

 mártires porque nela entraram carregando 

o espanto sobre a pacatez da vida o desmando 

 do trágico navio que transporta ossos 


o futuro só vai contar mártires de dois modos:

entre derrotados ou entre vitoriosos agressores 

tenham ficado vivos ou tenham morrido todos 


abraçados a uma casa, causa ou seita 

só os vivos de um e outro lado sentem as dores

dos mortos que assombram a sua cama estreita



 a história espalha o pó fino que sufoca 

 os gritos e simula na pedra funerária 

que todos os outros morreram pela boca 

de cena fazendo de actores de vida adversária 



tirania



não me digas que as comeste 

porque ninguém 


a começar pela tua mãe 


 te avisou que as lâminas 

de barbear 

não são para comer.



a forma nova


 dizem que não há paixões humanas que prestem 

 e que todos os poemas foram já ditos e escritos 


não mais que personagens de um fado bem passado 


poetas são ratos de biblioteca a sobreviver 

 em buracos dos livros que não param de roer 


 poetas são os que usam formas novas para cozer 

em lume brando o poema mastigado e vomitado 

até este ficar queimado pegado colado 

 e parecer que não tem nada a ver 

nada para entender 

e pouco ou nada para ler 


 dizem que já não há líricos tísicos nem sanatórios 

 e que os poemas são incerta forma para citações 

ditadas e reeditadas experiências de laboratório 

onde não entram nem saem emoções. 


 e que já nem preciso é sequer manuscrever. 




amarei 



 das patas 

da aranha amarei os pêlos na sopa 

quando a devolvo à copa 

 para que a aranha inteira a enriqueça 


e eu, enfim, rejuvenesça


 até andar de gatas 



quando voltamos


já somos outros

mas não sabemos falar disso

porque no final voltamos ao mesmo

porque não fizemos mais que um par de meias voltas 


e desatámos os nós da língua para voltarmos a ser mudos como antes


sei lá se sou de lá ou de cá


 os outros dedicam-me uma certa piedade compassiva 

e isso me basta


nem aceito o risco do meu tempo a seu tempo

que reconheço como sinal e ferrete.



as linhas



quando desenhas as linhas 

 do meu desgosto 

sei que a manhã desperta 


as minhas mãos no teu rosto 



se na minha face rugosa alinhas

os dedos do carvão que se desfaz 

ao vento da janela aberta 


volto de asas caídas aonde tu já nem estás




letra a letra




 digam-me letra a letra a minha cruz 

soletrem-me do calvário o caminho 

à volta sem regresso 


e esmaguem entre dois dedos uma a uma cada luz 

os pontos na espiral em que definho. 


é só o que vos peço. 




a gola da samarra


que contas tu ó pobre para um fado 

em dó maior... do que uma algazarra 

 de cães que perseguem por todo o lado 

 o coelho que foi gola da tua samarra 


 quando a tua avó era viva e tu eras a criança 

a querer ser padre da tua freguesia 

quando fosses grande e não fugisses para a frança 


ah! se tivesses crescido outro galo lhes cantaria





desenho




quem anda com os pés nos bolsos do corpete 

e mostra os dentes a quem sua mais que morde 


usa um número acima para as câmaras da biciclete 

 e não sabe que pedala para onde mora a morte. 





a demora



espera mais um pouco.

por ti

 

se fores devagar, talvez possas 

fazer-te companhia mais um pouco.


 afinal vão ambos para o mesmo lado! 


e a viagem é assim mais lenta






\it quem sou


por entre o lixo do hospício, vagueio como doido 


varrido 

por uma vassoura de penas minhas. 





\it o dia mais que perfeito



atravessam cedinho 

a vila, deste lado ao de lá do monte onde a manhã dá à luz o sol, 


os passos ligeiros da mulher mais bela do dia 

 escolhem maçãs bravas colhidas à árvore da madrugada. 


 ah! e fosse eu com ela de mãos dadas assim cedinho




\it onde a blusa abre




onde a blusa transparece 


 os olhos matam a sede das mãos ansiosas 

do alpinista trepando pelas encostas dos seios, 


e, na planta riscada sobre a terra lavrada, 

esse vale do ventre em que se levanta o desejo da arquitectura 

para a possuída casa ancorada em estacas de vento e de ternura, 

eu desenhei a vida inteira por viver e por mais nada 


deixei cair pelo fio do prumo o olhar a pique 

e, ecoando grave, em queda livre, a voz calei 


 ali onde a blusa começa e se entreabre 

uma porta escancarada.




\it asa delta



a fita que se soltou do teu chapéu 

chamou-me pelo nome pronta para voar 


 e eu hesitei no teu decote o meu olhar 

antes de ir com ela para o mais alto céu. 



 de tão longe ver-te como um ponto final, 

quando tanto te desejei em cada pormenor, 

não vejo pior 

mal



o frio céu  

antes neve e gelo em teu banho de espuma 

que o frio no céu 

da minha boca ... 



\it o engano do jorge



não votei em durão barroso, nem no psd e muito menos no cds, 

mas reconhecia o db como primeiro ministro do meu país. 

não sendo eleito sequer para governar portugal, 


santana lopes pode assinar uma constituição europeia? 


 pode. por s.jorge!


não, em meu nome

eu só espero que a caneta tenha uma diarreia.



\it muda a hora 



muda a hora. às duas de qual manhã?  às duas por três, numa catedral aberta,

 visito mortalhas em fila de espera 

e só ouço o silêncio frio 

de um amigo que ressona 

 sem saber que morreu uma hora mais cedo. 



\it as ideias 



eu sou o meu único tormento 

e as tormentas por que passo. 


eu sou o navegador 

que inventa o cabo e o dobra.



\it a garça que caminha



a garça tem olhos inquietos e um corpo suspenso 

desajeitadamente reequilibrado com o bater das asas 

o boi tem olhos conformados ao corpo pachorrento 

uma tremura por dentro da pele macia avisa as asas da garça: 


 podemos caminhar juntos, voar é que não! 




\it chamado 



disseram-me que muitos são os chamados 

e poucos são os escolhidos 


 a mim chegava-me ser chamado 




\it nada me custa mais que corrigir provas de amor 


Quando te pergunto e tu respondes, 

procuro o certo e o errado ou o que escondes? 


 Eu não quero saber o que é certo ou o que é errado 

nem quero virar o ar dos sons para vibrar por outro lado 


 Sou eu quem se desfaz em tinta vermelha verdadeira 

chorando sangue sobre a tua resposta azul certeira 


 a não esperada 

 ou a não desejada 

ou o contrário de tudo ... que é nada. 





\it se acordar 



se a manhã vier beijar-me 

como só ela sabe 

eu hei-de saber calar-me 

no colo em que meu sonho cabe. 


se acordar? 

sonho acordado.




\it em saco roto 



se eu me levantar e pedir a palavra para dizer 

como Novalis disse ... 

 é porque não sou um saco roto




\it desenho. logo existe



o luar contigo 

 é o desenho 

 de um luar comigo 


desencontros tanto acontecem 

ao luar contigo 

como ao lutar comigo




\it nenhuma orelha te arde


Nenhuma orelha te arde 

por eu me pensar


Contra praga de cobarde

 nem precisas de abrigo.



\it a viola


 muitas vezes, como 

se soubesse tocar-lhe 

 abraço-a 


assim como 

se a embrulhasse 

numa canção de embalar 

antes de a acordar.




\it lenda



aos homens disseram: 

 - pesquem que é um bom desporto! 

homens houve que acreditaram e fizeram 

 o melhor isco de homem morto. 


mais tarde disseram 

 que os peixes não morderam. 


 os iscos usados na pesca desportiva 

de mar salgado passaram pelas brasas 

 antes de serem petiscados em suas casas 

 pelas viúvas respectivas. 





\it tarde tocaste




foste a última a tocar o meu pobre coração 

mas foi tão tarde 

que é o tal fogo, o que arde 

sem que o possas ver, o que me consome 


 e, quem sabe?, talvez me mate à fome. 



\it as portas



assim abandonado e só e arruinado. 

ser lugar visitado e visto por uma porta entreaberta

para ser outro 


assim no alto 

pelos seus dois olhos vazados

a porta não vê




\it as portas  




ao fundo, a casa do alto vento 

abriga uma fogueira de caçadores 

espreitando o rio, como quem espreita 

a serpente que vem da espanha onde nasceu

e onde deixa os ovos


vimos passar as luzidias escamas

do seu dorso a caminho da cabeça,

a nossa, essa que nos envenena cada vez

 que nos morde

quando nos beija 

 com a língua multífida da ibéria. 



 

\it as portas 



enganas-te

para pensares em fugir por aí, 

 precisas de asas para voar 

e isso eu não tenho para ti.



\it as portas



os meus rebanhos pastam as tuas costas 

 e bebem-te sem estragar a miragem no espelho: 


a uma distância prudente e medrosa pensas que reflectes 

 estando eu a olhar para ti e para quem não te compreende 

na ânsia de seres livre em cada pedra que te prende 


e beirando portas pronto a sair 

afinal entrando 

 de um para outro lado 


 de uma nação a outra.




\it desenho para passar o tempo


desenho para não olhar quem não quero ver

desenhar é como mudar de passeio. 


desenho as linhas das mãos dormentes 

desenhar é não veres o que só tu sentes




 \it o que a morte sabe 



O que a morte sabe 

 eu não sei se cabe 


na boca suja do inferno 

no mais vazio instante do eterno



 na biblioteca dos medos 


onde guardas mais segredos 

é lá que também a morte se deita 

e o quase nada de tudo espreita. 




\it a flor das águas



devias deixar-te afundar um dia só para veres o negro

 verdadeiro e enfim dares valor a cada raio de luz 


 não é coisa sem valor uma pepita de luz 


devias deixar-te cair com um peso amarrado ao pescoço. 

 para veres como pesa menos o que te prende ao lugar 

 de onde queres sair desesperadamente

porque te vai faltar o ar, vais dar real valor a cada bolha de ar 

que verás a sair sem regresso da tua boca

e como vais invejar a sua agilidade na pressa da subida


 - se tenho medo do escuro, mais medo tenho da falta de ar! - 


 é o que dizes para esconder a verdade 

 de apaixonado que estás, sempre estiveste, pela flor das águas 

 e seu brilho tenso de fronteira instável entre água e ar, 

 sombra e luz, 


 a tua vida adiada antes e depois da tua morte anunciada.



\it fado calado 



 já decidiste tudo para depois quando 

 tiveres partido. 


 o fado da tua morte é só um verso perdido 

que a tua vida foi adiando. 



e o poema da vida que te coube em sorte 

é a história de cordel da tua morte. 



\it já?



 já decidiste que não falas por falar, 

 com quem não falas, a quem não respondes, 

quem não queres olhar 

de quem te escondes 





 

\it levanta-te e dança!



um dia o meu pai olhou para mim e disse:

 se te levantares saberás o que é andar sem ajuda 

e isso, tão pouco!, é a liberdade que em ti tudo muda. 


[¿Sabia ele o que lhe diria hoje se o visse?]


 e, tendo construído em verga forte duas bengalas

 até à altura dos meus sovacos de criança,

levantou-me do cesto onde jazia para dizer: "abram alas! 

que é tempo do arsélio vir mostrar como se dança". 


 \it torturadas


tanto as amo vestidas de frondosas copas 

 pelo estio 

como as choro assim nuas torturadas 

 às mãos do frio



\it a esperança



renasce como uma onda puxada pelo vento 

 e morre ali refeita suspiro ao chegar 

 à praia onde como quem mói o pensamento 

 piso meticulosamente cada bolha de ar. 


da oficinas, a vida

quatro livros à luz de um dia em que lia

a roda dos expostos

o pintor daltónico
o poeta escrerve o cèu
o pintor náo foi cuidadoso
nunca expôs a vida
depois de empurrar para dentro
no museu eles gurdam antigas

a marca dos expostos

a marca da água
uma arvore està plantada
porque te hei de mentir
homens devoraram

a oficina de artes

se ensinas uma teoria
podes ver que ods aprendizes
os aprendizes nada te exigem
eles sâo asprendizes e sabem

a arte de voar

as fronteiras
filtro os sons da àgua
nos ombros da mulher de pedra
como dersenhar as fronteiras

o poeta escreve o céu sem uma gota de terra. o pintor mistura, com muitos cuidados, as colas, os vernizes, os axix, ass folhas, as raízes e a terra. despeja a sua mistura numa tela. e, com os seius dfedos sujos e os pincéus dos seus cabelos, espera um mpomento de céu até que exausto adormece sobre a tela. o céu torna-se então no eterno instante em que o pintor descansda coberto de terra, raízes, folhas, azuis vernizes, colas cuidados

a arte de voar aos sonhadores

o poeta escreve,
o céu
sem uma gota
de terra.


o pintor mistura, com muitos cuidados,
as colas, os vernizes, os axis,
as folhas, as raizes e a terra.
despeja a sua mistura numa tela.

e, com os seus dedos sujos e os pincéis dos seus cabelos,
espera um mpomento do céu até que,
exausto,
adormece sobre a tela.

o céu torna-se o eterno instante
em que o pintor descansa
coberto de terra,
raízes, folhas,
azuis,vernizes, colas,
cuidados.

o que parecia é....

...ser despedido.

a seguir

Segue-me que eu sei o caminho
é o que diz a mulher que vai
não sabe para onde
desejando o companheiro
de viagem mais do que a viagem
para nenhum lugar
que é o seu lugar.

experimental envio de coisas escritas por Arsélio que foram ditas e perdidas em radio, jornal, etc esperando que me digam se quiserem...... obrigado só eu

 

A minha vontade naquele dia de inverno era fugir. Mas a minha mãe é quem decide quando é que as foicinhas precisam de ser afiadas no ferreiro. E para mandar um filho a casa do ferreiro são precisas palavras cortantes. De modo a que se vá até lá num pé e se volte noutro. De modo a que se voe. De modo a que a bicicleta vá tão depressa como se se evaporasse e voasse como a poeira voa quando se solta, partícula a partícula, sob os cascos das bestas aladas. Ela disse quase meigamente: Vai lá! O gado pode esperar.
Só me lembro de  ter trepado para a encosta da  bicicleta e, com um impulso vigoroso do pé no pedal,  arrancar dali para o lameiro, seguido pelo aplauso das poeiras estremunhadas.


Ainda hoje me pergunto o que terá acontecido. Mas esqueci-me de todas as chaves que abrem a porta da aldeia.
Outras vezes, a memória é assaltada pelas pedras da forja. Vejo-as  a bater asas incandescentes  e a voar porta fora. E ouço ainda o uivo negro, o silvo do sopro mineral sobrevoando o largo do ferreiro, quando se molda o malho do guerreiro e se amolam as navalhas  para o combate que sangra o campo de batalha esventrado por uma mágoa que cresce até ser mais que dor.
Vejo nitidamente os olhos criminosos  que brilham na escuridão e nem em sonhos quero saber de quem são, raiados de golfadas de sangue. Há  mortos frescos a dormir na minha infância. Talvez antigos animais domésticos.





À chuva e ao vento, a vida corre numa estrumeira nevoenta que a criação debica, infatigável, como se fosse algodão doce este nevoeiro sólido.
Na casa do ferreiro  o pátio é um poço fundo  e escuro, as paredes negras de carvão.
A luz é ateada pelo vento.  Dirás que é  réstea solar um resto da labareda da  fogueira  avivada pelo fole ofegante na tentativa vã de moldar e soldar a  asa de cobre nas costas do santo,  de costas em seu nicho de glória. Polida até dar luz;  a asa de cobre cega o santo e a  senha e abre uma nesga.
Uma filha asmática busca ali o consolo de ver o ar suspenso em suas gotículas de luz.



Eu vi como a  família do ferreiro adora todos os seus bichos, quase todos aleijados ou com maleita que não podem esconder.
Mais que todas, a família do ferreiro adora os seus animais domésticos. Como noutras casas, também a prole do ferreiro cata  pulgas e piolhos, limpa e escova. Acaricia mansamente os animais tão docemente como os mata para a festa canibal.  Matam a fome das crianças sem memória com a carne dos amigos.


Em casa do ferreiro, as bestas são mais  úteis e, por isso, mais amadas. Nelas, o ferreiro  experimenta a eficácia das ferramentas: Aguilhões supliciais que sangram nos costados domésticos como bandarilhas na arena da casa. Aquelas facas curvas de poda que desbastam os cascos até que cada pegada na estrumeira se encha de sangue.
Cheio de medo e repugnância, vejo a gratidão animalesca nos olhos postos na manjedoura que cheira a milho verde e a sal grosso.



Eu vi a pá de bicos aguçados da forquilha marcada na barriga de uma cadela meio cega como ordem de expulsão de uma estrangeira. Em casa do ferreiro.
Não tínhamos ensinado o horror e ter piedade e compaixão é coisa que não se ensina. Bastará compreender, com medo, o pavor que vai nos olhos da besta?
Uivando e batendo  pés em roda a família cega lapida em vida um céu de pó. Muito tempo passado e no chão  sangrado ainda sobra um lombo de sangue seco. Entretanto, os bravos guerreiros voltaram a zurzir os tambores de cobre martelado.




Se tapamos  os olhos às vacas é para que não enjoem. Nunca disputamos a distracção das vacas na dança de roda. A vaca em volta do poço,  faz rodar um eixo vertical que, chumbado no engenho, por sua vez,  transmite a sua rotação roda contra roda dentada  até, alcatruz após alcatruz,  inundar a caleira e matar a sede ao ar seco.
Esse é o engenho do ferreiro. O meu engenho é outro, criou raízes em pés da criança nómada que  deslizam no rodado de poeira finíssima, dentro da tempestade  de areia dos cascos  que dançam.
Os meus braços esticados, cintilantes de suor,  acrescentam-me como cauda  à vaca cega.


Os cômoros rasgam-se para que a poeira venha encaminhada pelas estreitas regueiras caudalosas.


Quando o meu avô voltou nem nome tinha por ter sido americano até  se ter esquecido do tempo em que tinha sido português. E vagueava pelos caminhos sem saber porque voltara para ali e sem cuidar de saber quem tinha na aldeia. Ele queria ser o que se mostra, o que se apresenta. Só que a  aldeia não aceita quem se mostra como é  e  foi preciso que a minha avó o crismasse como o homem do seu passado apesar de ele já não ser o ferro em brasa, a queimadura  na sua juventude de nove sementeiras.
Ela rasgou a blusa para mostrar as marcas e ele a reconhecer longínqua.



Lembro-me de gritar às vacas e aos bois, de os picar com os aguilhões que eram braços, longas varas afiadas  em vez dos meus braços que arrastavam  pelo cabeçalho  os caminhos e o mundo. Ao contrário dos meus, os braços do meu avô eram raminhos para  afagar as vacas e sacudir moscas e sem as matar.  Era o que diziam os vizinhos  a rir-se de mim e do ferreiro que era  afinal  quem aguçava todas as pontas das armas da aldeia em armas, em alerta.
O meu avô não era daquele lugar. Pelo menos, tornara-se um espantalho pregado num caminho pedregoso,  os olhos vazados virados  às armas silvestres.





O ferro vermelho, depois de batido na bigorna, era temperado  a negro pelas águas da dorna vertidas na celha do velho Calças do Lameiro.  E era esse ferro que procurava a primeira maçã  de adão, a mais saliente, para colher, do  porco do vizinho, a vida, o sangue, o sangue. O curto guincho estridente do dia do juízo insuportável é um ferro que entra no coração da gente, vindo do pescoço.
Com um ramo de louro,  batemos a  tona do sangue, o sal, o vinagre e o cobre. O estertor ainda se sente e já o sangue vai a cozer. Um alguidar fica como que abandonado por ali a receber os pingos da morte.

a casa do ferreiro  da mãe do pai do avô do pai da avó da irmãe dos irmãos dos etc



O cobre martelado ouve-se bem quando canta a forma que toma na bigorna. E brilha reflexos de ouro, na paz do dia para que te preparaste: as tuas bodas.
O ataque de coração que temias demais, acontece como acontece um toque a rebate, a finados. Vem lembrar-nos, no bronze do alto sino, quem fomos no nosso tempo, os homem que viram as suas máquinas bombeando veneno em seu movimento sem-fim, perpétuo, sístole-diástole-sístole,...,  fim.
Dizem-te que até o fim é efémero.



As mulheres da minha aldeia dispensam as lâminas das facas quando separam o bordado rendado, a teia de gordura, a elástica estrutura na nave das tripas cheias.  E para  fazer as partilhas comunais do sangue talhado ou para  desmanchar o corpo que o pino enxugou.
São  as unhas que cavam  fronteiras  entre as peças como se sentissem linhas de soldadura, prontas a ceder à carícia de uma mão assassina.
A feminina lascívia  vai solta em seu passeio  pela carne.


Morres um pouco cada dia de vidro que é cada noite das brilhantes meninas dos olhos ou das meninas do ferreiro do espeto de pau.
Na casa da eira sofrias as ausências  entre os sacos, enquanto ouvias moer o  milho  e a verdade até ser farinha.
O ciúme era um fio de ferro ao rubro dentro da tua cabeça, de uma orelha à outra.
Voa ainda hoje pelos capilares do corpo, subindo até à alma, o ciúme. E é por isso que finges não ter alma essa  e assim sofrer menos.





Pelo menos  é isso que mostras. É isso que parece. É assim que parece. Que apareces.




Quanto pau tem uma faca a mais que ferro? Ou a roda  de um carro ou a gadanha da morte? Ou a foicinha ou a enxada que abre a regueira?
No lagoaceiro e guia a água até se sumir no leve areal onde o milho não sobrevive e a abóbora raquítica e bêbeda da tua água boleca te serve de desculpa  para veres as pernas das cachopas  passando, com seus carregos de  feijão arrancado pelo pé.
Mal se endireitam as cachopas  na voz e é para murmurar coitado do rapaz!  Tão mordido pelas leituras que nem sabe que fazer do entrepernas!
Por onde quer que passes o beijo verás. Nas esquinas das casas, a argola que amarra as bestas e  o cano da fonte, na praça, tudo são marcas da oficina do ferreiro.
Que raiva! Quando a  filha do ferreiro desinfectava a agulha da seringa no álcool ardente e  te distraíam até que,  em teu delírio,  perdesses  a vergonha antes que te perdesses  na dor.
Na ideia absurda, mas verdadeira, que atazanava os teus cornos de aço, a razão era a tua. A tua razão não tinha que ser razão para toda a gente.



O meu avô sentava-se na berma da 109. Lia o jornal do dia e dormitava  livros americanos acenando a quem passava.  Pouco falava. Se me lembro de coisas que ele fez?
Uma guitarra e piões em madeira. Bustos de mulher em pedra de ançã de antigas lápides  do cemitério,
Melhor me lembro como  a minha avó as desfez a golpes certeiros do machado afiado para o outono da lenha do inverno e de todo o ano.
Antes fosse bêbedo meu avô sem  arte, sem literatura e  sem mistério. Assim ninguém o via quando ele vagueava no seu modo translúcido de uma garrafa para outra de aniz escarchado depois de já ter bebido toda a genebra que havia na aldeia, todo gin e todo o whisky.
Por via dele  tinham entrado no comércio local. Por via da minha avó tinham saído, que as proibia à medida que se esgotavam os stocks.

Escondido entre pinheiros e incêndios, masturbaste a tua aldeia. Ou foi outra aldeia qualquer? Ou foi mulher que o desejasse e não te desejasse em mais que à tua mão decepada na guerra colonial e logo substituída por um toco de madeira verde para depois ser puída pela tua vida. És uma carícia de pau envernizada. Honesta caricatura de carícia, mas não mais que isso. 
Antes assim que peso morto em contentor de chumbo! — dizias tu para quem te queria ouvir. Não sei se acreditavas nisso que dizias. Eu acreditava.




De que me hei-de lembrar? Se a aldeia tal como a conheci nem existe já e as pessoas fugiram a sete pés de lá para fugir dos seus mortos que não páram de as atazanar com as promessas por cumprir e a inveja da vida que levam antes da morte que as leve. A aldeia é a cobrança coerciva de uma dívida que nunca existiu senão como sentimento de culpa pelos gatos que se afogaram cumprindo ordens ou outras maldições menores tais como pecados mortais que não matavam, da cobiça da mulher alheia, da inveja e da preguiça. Os outros nomes dos pecados nem sabíamos o que queriam dizer. Como podíamos cometê-los? Devo dizer que ninguém cobiçava a mulher alheia que para ali estava como se não estivesse neste mundo. Nós só pensávamos que era maldade da parte de Deus não a ter levado quando era um anjo leve e não aquele peso que a aldeia inteira não conseguiu carregar aos ombros nem ninguém consegue contar o que a aldeia fez para a levar até à cova. Estavam lá todos e ninguém se lembra. Não é estranho?



Discurso das águas (Arsélio Martins)
E a ti, que foste o companheiro do companheiro, apontarei o poente do infinito, ou apenas a luz da tarde em que brilham a rosa e o ouro, ou apenas a solidão junto ao mar, ou apenas a notícia do amor entre as pequeníssimas folhas dos choupos.
A ti, que foste companheiro do companheiro, apontarei o dia seguinte, um nascente vermelho, uma nascente, ou apenas o cheiro da água corrente, ou apenas o lugar do novo primeiro e original encontro para outra sagração da primavera, outro início de luta.
A ti, que foste companheiro do companheiro, lerei a sina. Do passado ao futuro, acácia batida pelo vento ou rasto de fragrância de louro colhido, vai devagar, para que, o menino que também és, te possa seguir.
Isto não é um discurso, mas eu sou aquele que fala. Olhem para mim. se puderem, vejam como eu estou aqui entre outros, um entre outros.
Não vim fazer um discurso, mas dar palavra às águas que nos atravessam, quando a emoção galga das nuvens do peito para se sumirem como as ondas se somem nos areais ressequidos em que nos esculpiram os rostos.
Não vim fazer um discurso. Vim dar a um mar de palavras de água e são as líquidas palavras por dizer que não me deixam calar.
Amanhã, o nosso rio retoma o seu curso e, com ele, partem as palavras em que nos afogámos hoje.
Um homem com consciência, que abandonou este nosso mundo para abraçar a loucura, colecciona palavras na foz deste rio. Ele guarda-as porque guarda a areia em que foram escritas pelos dedos da água nos bolsos do seu passado sem futuro.
E eu vim aqui para defender a felicidade sem futuro: a felicidade de hoje.
Quem tudo faz em nome da felicidade do futuro, sacrifica a felicidade de cada momento. Em nome da felicidade do futuro, se forjam todas as tiranias do presente que tentam ser tiranias de todos os hojes daqui até ao futuro.
Apresentam-nos a felicidade como uma linha do horizonte e a linha do horizonte afasta-se à medida que dela nos aproximamos.
Eu vim aqui para defender que a nossa felicidade de hoje é uma parte imprescindível da felicidade do futuro. 
Pode não ser, mas a escola em cada dia de hoje deve ser escola de pessoas felizes e (que) é essa a escola que pode construir algum futuro que importe. Uma escola que se faz em nome do futuro sem ter um presente, que valha a pena lembrar, é uma velha tirana a estragar o presente em nome do futuro que está a envenenar com um presente envenenado.
Eu quero viajar de hoje até amanhã voando. A linha do meu voo é uma estaladura que atravessa a chávena. Como um morcego fendendo a porcelana da noitinha, assim eu quero sair do seio, do ninho de hoje.
Quem é que assim nos virou, de tal forma que, em tudo o que façamos, estamos sempre na atitude de alguém que parte?
Eu quero viajar pela noite entre os dias, sentindo o ar como quem atravessa as águas, modulando todos os lados do corpo. como o peixe fusiforme atravessa desde profundidade até à luz.
Sabemos das tuas partidas, mas não sabemos que partido tomas: nem és peixe nem és carne, dizem-me. Professor ou aluno? De que lado da vida te perdes? 
Eu sou peixe e sou carne! Sou a carne do peixe e sei que vivo para ser comido. Não há angústia nisto, é o que vos digo. Quem é que me quer pescar?
Minha mãe pescou-me das suas águas, olhou as minhas escamas brilhantes ao sol, limpou-me cuidadosamente e educou-me para o ar. Só por isso não voltei para as águas, neblinas do limbo. Foi a minha fraqueza que me inibiu as asas para os vôos que ela planeou para mim.
Não usem anzóis afiados!
Podem usar palavras afiadas, na escola (e não será assim nas outras?).
As pessoas usam as palavras, sussuram palavras, segredam palavras, disparam palavras. Há palavras para amar, para animar, para repreender, para replicar, para censurar; há palavras para abraçar e há palavras para esmurrar; para esfaquear o vento, as ondas mais altas, o mar. Há palavras para explicar as cores, os odores.
A escola é, antes de mais, a galáxia das palavras e das imagens que as palavras desbotam. Usam-se palavras como calhaus afiados. Há navalhas e palavras para ferir. Há quem as dispare dos bolsos, onde as teve sempre escondidas.
Eu uso as palavras nas palmas das mãos abertas, como calhaus rolados pelas águas de mil marés vivas, palavras lavadas pela água, expostas para corar, ao sol destas luzes.
É a água do mar que escorre pelas linhas da minha mão ou do rosto ou do corpo. Pela linha da vida, pela linha da morte, pela linha do coração correm e morrem as águas que galgaram as margens dos olhos.
E eu? Que faço eu?
Na escola, como peixe na água, deixem-me respirar esta água, este ar!
Por estas águas troquei o meu passado e o meu presente anunciado na palma da mão de minha mãe nos gestos de me educar para o ar!
Onde estão os meus amigos? Quase como sombras longínquas, postais de Lisboa e Porto, escritos apressadamente com tinta de água
Como vais?, que é feito de ti?
Que resposta tenho para este passado?
Mãe! Minha Mãe, que quero eu senão voltar ao princípio para que tudo recomece e possa acariciar os meus sonhos, os meus amigos que se perderam e são uma sombra espelhada nestas águas em que me movo em vez de tudo o resto?
Mas os caminhos de regresso estão todos fechados e é por isso que a escola é um mundo em que me tenho de reconstruir e reconstruir os catelos no ar! Nem que sejam outros os arquitectos, outros os alcaides, outros os actores.
Os estudantes que brilham no escuro e me reflectem no que vale a pena ou valeu a pena, é aqui, Mãe, entre as ruínas deste presente que, das águas desta escola, pescamos os filhos da escola, os educamos para o ar e, que nos dera, Mãe, que lhes pudéssemos dar as asas!
Está descansada, Mãe! Já ninguém se ri do teu filho, porque ele envelheceu demais no discurso das águas e porque ele deixou, por momentos, de ser quem era
o outro, aquele que não está no espectáculo. Olham para ele e não o vêem, as palavras que ele disse eram água pelos dedos abertos.
Amanhã, à luz do dia, não haverá lembrança deste gesto insensato e todos viverão, como antes, em nome do futuro!

a memória de elefante




 a memória de elefante 

Amei-te desmedidamente. O filho que gerámos tem os olhos vesgos, orelhas de elefante e uma tromba potente, sensível e fina de urso formigueiro. Mas é o nosso filho.
E passámos a vida a olhar embevecidos para o nosso filho, fruto do nosso amor. Quando escurecia, o nosso filho abria os olhos e iluminava dois cantos do quarto em que nos escondíamos do mundo. Ceávamos à meia luz que os seus olhos acendiam cheios de ternura. Quando nos deitávamos, ele fechava os olhos, embalava-nos empurrando o berço com a sua potente tromba e, nas noites de calor, refrescava-nos com o movimento calmo das orelhas. Quando adormecíamos, ele comia os insectos que ousavam incomodar-nos. 

Somos felizes. Mais felizes somos porque te amei desmedidamente várias vezes e temos agora um rancho de filhos que olhamos embevecidos, porque têm os olhos vesgos e muito brilhantes, orelhas de elefantes e trombas potentes, sensíveis e finas de ursos formigueiros. Quando nos mudámos para esta rua, ela era habitada. Pouco depois de nós chegarmos, os vizinhos começaram a ir-se embora. A última a partir foi uma velhota muito pobre de quem nos despedimos com simpatia. 

Não percebemos porque é que ela nos perguntou se não tínhamos espelhos. 

1995' Pintor João Pires


1.

O alimento dos animais e das plantas~e ainda a nuvem que cai do alto sobre o cristal destapado pelos cascos do vento  indomado. Num fio de água, de metal e vapor, a raíz mineral abraça a pedra. Do cerne viscoso da pedra um caule de vida vegetal brota …  para a luz uma fonte vira o seu olhar azul.

O pintor recolhe as marcas dos cascos do vento.

2.

Uma árvore está plantada onde o lago começa. O poeta disse que a árvore ore bebe a tensão do espelho em que o sol reflecte a sua vaidade, que não bebe a água e que, ao contrário dos pensamento dos pintores, é a folhagem que bate e expulsa o vento. O poeta sabe que é o sol quem vagarosamente bebe o vapor de água.  O pintor recorta com todo o cuidado um quadro dessa neblina da manhã.

O pintor atira a pedra rente à superfície das águas e conta as vezes que a pedra salta antes de se afundar na tela do lago.

3.

Porque te hei-de mentir em cada movimento.   Que me custava obedecer-te.  Estas. são as dúvidas da máo do pintor que treme.

Ateia o fogo à cabeleira do pincel e deixa'o contorcer-se  de dor sobre a tela … este é o conselho do poeta amargurado que habita a oficina do pintor.

Antes de pendurar as folhas brancas e suadas, para que corem expostas à vergasta do sol e à malícia humana, o pintor espreita a todas as portas iguais que todas as telas sâo.

O pintor tenta ficar sossegado, apesar do que vê quando se espreita.

4.

Homens devoraram uma aldeia e dela resta uma inóspita terra de cegos e as visões obstinadas de uma imortal bruxa.

Os pintores são cegos ew vivem na aldeia da bruxa das visões. Nuns casos, são eles que pintam a partir da descrição que ela fala. Noutros casos, eles só fornecem as cores e é ela que, em transe, devolve-se as paisagens e a loucura dos evidentes.

Os pintores contam o que sabem a ninguém.


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Aveiro, 1995

Versados passados

a viagem a santa mulher oscila e imagina que é o passeio da rua que oscila um santo homem da mesma viagem olha para ela e sorri no olhar um abraço abre os braços dos dois que desatam a rir desfeitos no ar que nuvem os leva? o crente diz que nuvem assim é feita de dois dos 7 pecados, um - quem desenha, que sabe dos pecados que desenha? - sabe que desenha. cada um és a tua história: aquela que guardas em gavetas da memória até formares a nuvem de palavras
cuspidas como uma corrente de ar gelado como o corpo da tua voz. és a tua história: aquela que ouvimos soltar-se da tua boca e vemos palavra a palavra pendurada no arame esticado de um estendal de rua ou sobre o abismo a cabeça a caminho da lua versados

rimas (muito cedo muito antes deste regresso )

a fonte

onde a fonte murmura
foi que perdeste a infância:
e o frio dessa distância
é que te rodeia a cintura



perdidamente

e mesmo assim te amei perdidamente:
a minha inocência mais pura
correu célere para uma foz de amargura
enquanto tu desaguavas em mar diferente



aldeia vegetal

se voltares à minha aldeia vegetal:
um funâmbulo persegue por um fio de cor
teu gesto sem asas, mas voador
papagaio de tela, de pele e de cal



devolução

as folhas de choupo, não foi do alto que as colheste:
o que trincas são asas das minhas aves mortas
que se esmagaram contra os umbrais das tuas portas
na violência do vento que te devolve o que não deste



@ adealmeida

até eu me devolvo como envio

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