Andam nisto há várias semanas e já bem podiam ter acabado a obra. Mas eu dou-lhes o desconto do vento e da chuva. Dou-lhes o desconto todo, aliás. Andam a rebaixar os passeios ali aos semáforos junto à Junta da Glória. Para melhorar a vida de cada um de nós nos dias em que temos dificuldades para nos deslocarmos ou nos dias em que viermos a ter dificuldades. Dou por mim a ficar todo contente com cada pequena obra daquelas que valem como pequeno sinal de humanidade inteira. Claro que ainda há muitos obstáculos a remover para nos sentirmos bem uns com os outros.
Os vizinhos queixam-se que o excesso de trânsito degrada muito rapidamente estas ruas que foram feitas para trânsito residencial e acabaram num frenesi de vizinhos de uma escola superior de fim de tarde. Os vizinhos da Chave queixam-se dos buracos, inevitáveis sabemos agora vendo o trânsito de todos os dias úteis. Falo disso hoje, que é um dia de paz por estes lados, sem os carros do costume.
Sobra-nos um ruído de festa ao fundo. Isso até que nem nos incomodava coisa alguma se não tivessemos de ir a outros cantos da cidade e darmos com pequenos bandos de estudantes - a verdade é que somos lésbicos - tão engraçados a escrever disparates machistas quanto tolos a pavonear-se ainda bêbedos nas esplanadas matinais quando estamos a ir para o trabalho num passeio de olhares resignados de quem está nas paragens tremendo por um autocarro que os abrigue do vento frio na falta do abrigo de um vidro que ainda ontem lá estava.
Lá mais para baixo, alguns pequenos comerciantes queixam-se de que uma taxa cobrada para fazer face ao problema dos resíduos sólidos urbanos passou de 4 para 8 euros de um dia para o outro. Queixam-se ainda mais da resposta da Câmara que lhes responde que só pagavam 4 por ter havido um erro dos serviços e estavam por isso a ser beneficiados. O que a vereação da Câmara deve saber é que os pequenos comerciantes viram aumentadas para o dobro as taxas, sem apelo nem agravo. Não resolve problema algum dizer que havia um erro que lhes dava um benefício que nem conheciam. E não devem os pequenos comerciantes da cidade receber algum benefício de sobrevivência, dentro das muralhas cercadas por grandes mercadores a toda a volta? A bolsa ou a vida?
Contente? E descontente. Dentro de muralhas, a vida.
[o aveiro; 02/05/2008]
cerca de mim
Cercavas-me
para que eu me rendesse
dentro dos teus muros altos
como abraços
ou fugias pelas veredas
mais estreitas
como o mar
corre a afogar-se num braço da ria
e lá chegado
virasse do avesso o barco do céu
em jeito de brincadeira a água
levantasse o corpo no ar cheio
varrendo a lua ao espelho num charco
eu transbordante.
para que eu me rendesse
dentro dos teus muros altos
como abraços
ou fugias pelas veredas
mais estreitas
como o mar
corre a afogar-se num braço da ria
e lá chegado
virasse do avesso o barco do céu
em jeito de brincadeira a água
levantasse o corpo no ar cheio
varrendo a lua ao espelho num charco
eu transbordante.
O problema pessoal
Para ser boa, a nossa vida deve estar cheia de diferenças de opinião. Não gostaria de viver numa bolha qualquer em que todas as pessoas partilhassem das mesmas opiniões e dos mesmos gostos. Reconheço os meus vizinhos e os meus amigos pelas diferenças. Tenho amigos que em tudo pensam diferente de mim. Penso eu que assim é. Cruzo-me com alguns deles em discussões sobre matemática e sobre ensino e discuto com eles, como se a discordância demonstrada fosse mais um sinal de amizade. De certo modo, sabemos que procuramos mais a verdade (essa a que não existe) do que a unanimidade. Ficamos contentes quando descobrimos que em alguns pontos estamos de acordo ou que, pelo menos, procuramos por caminhos diferentes alguma coisa de fundamental que tem sempre a ver com o bem comum (esse que ninguém sabe o que é, mas existe para ser perseguido por pessoas de bem). Perante as gargalhadas, os abraços e a conversa mansa antes e depois das nossas vivas discussões públicas, pressentimos a perplexidade das pessoas que pensam ver problemas pessoais onde há diferenças de opinião. De certo modo, estas pessoas diminuem a amizade, a individualidade, a opinião, o respeito por quem nos merece respeito. Diminuem-nos.
Se eu tenho uma opinião política diferente de outra pessoa, isso traduz-se ou pode traduzir-se numa divergência política. Nada é mais natural e nada é mais saudável. Há quem pense que só temos opiniões diferentes porque há problemas pessoais. Isso acontece a pessoas convencidas da universalidade das suas ideias, que, na tirania da sua bondade permitem problemas pessoais como desculpa para não terem eliminado os mensageiros das ideias não previstas na doutrina.
Tantas são as pessoas que eu conheço espalhadas por tantas ideias que não partilho, que comigo defenderam as mesmas ideias noutros tempos, que me ensinaram a dizer não e a dizer sim, que me deram voz e deram sentido à minha voz própria e diferente. Tantas são as pessoas que respeito e em que me reconheço porque das suas ideias me separei sem que elas deixem de ser algum esteio do que sou porque sou o que fui, o que fui sendo.
Na madrugada desta terça feira, morreu Francisco Martins Rodrigues. Tiro-o da penumbra como nome, o seu nome próprio para que possa ser procurado. E encontrado.
[o aveiro; 24/04/2008]
Se eu tenho uma opinião política diferente de outra pessoa, isso traduz-se ou pode traduzir-se numa divergência política. Nada é mais natural e nada é mais saudável. Há quem pense que só temos opiniões diferentes porque há problemas pessoais. Isso acontece a pessoas convencidas da universalidade das suas ideias, que, na tirania da sua bondade permitem problemas pessoais como desculpa para não terem eliminado os mensageiros das ideias não previstas na doutrina.
Tantas são as pessoas que eu conheço espalhadas por tantas ideias que não partilho, que comigo defenderam as mesmas ideias noutros tempos, que me ensinaram a dizer não e a dizer sim, que me deram voz e deram sentido à minha voz própria e diferente. Tantas são as pessoas que respeito e em que me reconheço porque das suas ideias me separei sem que elas deixem de ser algum esteio do que sou porque sou o que fui, o que fui sendo.
Na madrugada desta terça feira, morreu Francisco Martins Rodrigues. Tiro-o da penumbra como nome, o seu nome próprio para que possa ser procurado. E encontrado.
[o aveiro; 24/04/2008]
a conta dos nervos
a joaninha decidiu não partir daqui. eu bem reclamo a liberdade dela e reclamo que parta para que os outros acreditem na liberdade de que falo. só que a joaninha decidiu gozar a sua liberdade mesmo por aqui e não há quem a convença a partir. muito menos eu.
durante alguns dias senti-me mal com a situação e andei envergonhado a esconder-me das pessoas que não acreditaram nem acreditam que eu abri a jaula da joaninha. é verdade que eu tinha tonado pública a minha obsessão pela joaninha e dizia aos sete ventos que a joaninha estava comigo por gostar de mim. tinham-me ofendido todos quantos pensavam que a joaninha não se ia embora por ter pena de mim ou por a ter ameaçado de alguma maldade caso ela partisse e me deixasse só.
eu não me cansava de lhe perguntar se ela algum dia tinha pensado em abrir asas e voar e de lhe dizer que nada faria para a impedir quando desejasse partir embora ficasse de coração partido.
acreditem ou não, para acabar com os mexericos a respeito da minha obsessão doentia, acabei por ser eu a pedir-lhe que partisse, que voasse para bem longe de mim.
já não falo com ela, mas ela porta-se com sempre só que eu agora dou pelos pequenos factos a que não dava importância: ela também não fala comigo, mas há quem diga que sempre foi assim. e que nem podia ser de outra forma.
Ouvir o olhar
A cada minuto, o escaravelho abria um pouco as asas para voltar a fechá-las e a fechar-se em copas. Eu tinha os olhos postos em cada um dos seus movimentos e se é verdade que eu não queria complicar-lhe a vida, também é verdade que estava disposto a lançar-lhe uma rede por cima se ele decidisse voar dali. Eu precisava dele ali. Talvez ele nem soubesse que eu estava ali para o observar. Não, não estava a usar qualquer lupa. Mantinha os olhos fixos no escaravelho e nada mais.
Quando abria as asas, deixava ver uma combinação de transparências. Talvez asas, talvez novos pares de asas, por sob aquelas asas de carapaça. Talvez abrisse as asas para verificar a humidade e a temperatura do ar ou para condicionar a temperatura do seu próprio corpo. Não sei. Aliás, eu sei pouco de escaravelhos. Para ser sério, eu sei pouco de quase tudo.
Desde há muito tempo que me dedico a observar os bichos. Incapaz de compreender os seus comportamentos, as suas manias e ainda menos as relações entre eles. Não foi sempre assim. Mas, à medida que me concentrava na observação dos hábitos dos bichos percebia como era impossível entender o que se passava nas cabeças deles. Houve um tempo em que me dediquei a estudar com grande afinco as comunicações entre os bichos mais barulhentos, mas nem percebia o interesse e o alcance da maioria das expressões faciais, ruidosas ou palavrosas de alguns bichos mais activos e ainda menos percebia as reacções (palavrosas ou não) de resposta dos bichos interpelados pelos primeiros. E fui desistindo de tentar compreender qualquer comunicação entre os bichos para além da dança, do movimento, da animação das asas e das hastes. Dei por mim a ser um observador fascinado pelas pequenas agitações na vida dos outros bichos.
Hoje preciso do escaravelho. Como observador interessado preciso do escaravelho; a pequena agitação das suas asas e hastes determina os movimentos dos meus olhos, únicos sinais de vida no meu corpo, rígido e tenso em tocaia.
Sem tirar os olhos do meu escaravelho, vejo chegar uma multidão e os olhos não dão para acompanhar tanta agitação. O meu escaravelho agita um pouco as asas e as hastes, mostrando as suas combinações de transparências, apaziguado pela compreensão da multidão.
Eu só observo. Os meus olhos precisam de uma lupa para ver ao longe. Sem a televisão não posso ver o que se passa no Funchal. Dou por mim fascinado a ver as pequenas agitações do Funchal. Antes ouvi com cuidado Alberto João Jardim, a sua alta voz. Ao observador não amofina não compreender.
[o aveiro; 17/4/2008]
Quando abria as asas, deixava ver uma combinação de transparências. Talvez asas, talvez novos pares de asas, por sob aquelas asas de carapaça. Talvez abrisse as asas para verificar a humidade e a temperatura do ar ou para condicionar a temperatura do seu próprio corpo. Não sei. Aliás, eu sei pouco de escaravelhos. Para ser sério, eu sei pouco de quase tudo.
Desde há muito tempo que me dedico a observar os bichos. Incapaz de compreender os seus comportamentos, as suas manias e ainda menos as relações entre eles. Não foi sempre assim. Mas, à medida que me concentrava na observação dos hábitos dos bichos percebia como era impossível entender o que se passava nas cabeças deles. Houve um tempo em que me dediquei a estudar com grande afinco as comunicações entre os bichos mais barulhentos, mas nem percebia o interesse e o alcance da maioria das expressões faciais, ruidosas ou palavrosas de alguns bichos mais activos e ainda menos percebia as reacções (palavrosas ou não) de resposta dos bichos interpelados pelos primeiros. E fui desistindo de tentar compreender qualquer comunicação entre os bichos para além da dança, do movimento, da animação das asas e das hastes. Dei por mim a ser um observador fascinado pelas pequenas agitações na vida dos outros bichos.
Hoje preciso do escaravelho. Como observador interessado preciso do escaravelho; a pequena agitação das suas asas e hastes determina os movimentos dos meus olhos, únicos sinais de vida no meu corpo, rígido e tenso em tocaia.
Sem tirar os olhos do meu escaravelho, vejo chegar uma multidão e os olhos não dão para acompanhar tanta agitação. O meu escaravelho agita um pouco as asas e as hastes, mostrando as suas combinações de transparências, apaziguado pela compreensão da multidão.
Eu só observo. Os meus olhos precisam de uma lupa para ver ao longe. Sem a televisão não posso ver o que se passa no Funchal. Dou por mim fascinado a ver as pequenas agitações do Funchal. Antes ouvi com cuidado Alberto João Jardim, a sua alta voz. Ao observador não amofina não compreender.
[o aveiro; 17/4/2008]
os dias miudinhos
Gosto de chuva miudinha nos dias em que me viro para o lado da tristeza simples. Olho para o que acontece e se o que vejo acontecer ou me vem à memória não dá nem para grandes alegrias nem para grandes tristezas dá-me uma vontade de chuva miudinha que me feche num asilo de melancolia. Deixo-me abandonado. E deixo que os olhos vão lá para fora jogar às escondidas com a chuva triste e miudinha. A água anda por aí no ar como se ar fosse. E é como se me fechasse numa bolha onde só pudesse respirar a humidade, uma asfixia lenta.
Vagamente chegam-me farrapos de um debate sobre pontes e cidades gémeas, região multipolar, rodovia, ferrovia, aerovia, etc. Vêm de ontem os farrapos. Surgem-me as palavras embrulhadas em neblina, como fantasmas futuros rompem a chuva miudinha.
Leio que o Tribunal Constitucional ditou para o passado do concurso dos professores titulares um defeito, uma inconstitucionalidade, uma violação da igualdade no direito de acesso. Mais uma declaração de defeito, entre tantas outras. São os erros que se repetem mais vezes? Ou há mais gente a ver os erros de conveniência? Será que há erros plantados para serem vistos na floresta dos pequenos enganos e grandes engulhos?
E leio, seguindo um julgamento de coisa antiga, a humilhação de uma praxe em que uma jovem pode ser barrada com bosta e pode ter a cabeça mergulhada em penicos numa quinta de propriedade da escola agrária, afastada do centro da cidade.... E basta ler o riso das bestas e a descrição das coisas em que pensam para percebermos que alguma coisa funciona mal. Pior ainda se nos lembrarmos que ainda há quem ache normal soltar a besta desde que ela more nas universidades.
E passamos dos actos às palavras, dos actos aos atos, dos factos aos fatos, das palavras mais pesadas que os actos, das palavras sopesadas pelos que discutem acordos e desacordos orográfica e ortograficamente falando de coisa nenhuma. Em vez das palavras, a baba das palavras. E uma flor de calor poisada na língua brasileira. E a pérola nos dentes que colam as palavras que nós antes separámos. E os nós de nós na segunda pessoa do plural. Vejo chegar a discussão como se um príncipe da língua odiasse a língua da princesa, estrangeira só até às descobertas.
Há dias assim que se soltam do ar para dentro da vida como chuva miudinha. Sentimo-nos levemente tristes, desassobiamos, esquecemos as chaves de casa, deixamos que as palavras mais caras nos caiam das mãos e se partam. E damos por nós a colar, com a pastosa chuva miudinha, palavras partidas, noites fendidas por faíscas luminosas, cacos.
[o aveiro;10/04/2008]
Vagamente chegam-me farrapos de um debate sobre pontes e cidades gémeas, região multipolar, rodovia, ferrovia, aerovia, etc. Vêm de ontem os farrapos. Surgem-me as palavras embrulhadas em neblina, como fantasmas futuros rompem a chuva miudinha.
Leio que o Tribunal Constitucional ditou para o passado do concurso dos professores titulares um defeito, uma inconstitucionalidade, uma violação da igualdade no direito de acesso. Mais uma declaração de defeito, entre tantas outras. São os erros que se repetem mais vezes? Ou há mais gente a ver os erros de conveniência? Será que há erros plantados para serem vistos na floresta dos pequenos enganos e grandes engulhos?
E leio, seguindo um julgamento de coisa antiga, a humilhação de uma praxe em que uma jovem pode ser barrada com bosta e pode ter a cabeça mergulhada em penicos numa quinta de propriedade da escola agrária, afastada do centro da cidade.... E basta ler o riso das bestas e a descrição das coisas em que pensam para percebermos que alguma coisa funciona mal. Pior ainda se nos lembrarmos que ainda há quem ache normal soltar a besta desde que ela more nas universidades.
E passamos dos actos às palavras, dos actos aos atos, dos factos aos fatos, das palavras mais pesadas que os actos, das palavras sopesadas pelos que discutem acordos e desacordos orográfica e ortograficamente falando de coisa nenhuma. Em vez das palavras, a baba das palavras. E uma flor de calor poisada na língua brasileira. E a pérola nos dentes que colam as palavras que nós antes separámos. E os nós de nós na segunda pessoa do plural. Vejo chegar a discussão como se um príncipe da língua odiasse a língua da princesa, estrangeira só até às descobertas.
Há dias assim que se soltam do ar para dentro da vida como chuva miudinha. Sentimo-nos levemente tristes, desassobiamos, esquecemos as chaves de casa, deixamos que as palavras mais caras nos caiam das mãos e se partam. E damos por nós a colar, com a pastosa chuva miudinha, palavras partidas, noites fendidas por faíscas luminosas, cacos.
[o aveiro;10/04/2008]
encontro empolgante, precisa-se!
As sociedades modernas ou desenvolvidas científica e tecnologicamente precisam de trabalhadores científicos. A Europa precisa deles aos milhares. Portugal corre riscos sérios se não participar desse movimento de criação de empregos científicos produtivos. Todos sabemos isso, conhecemos as metas a alcançar e os prazos apertados.
Muitos dos empregos científicos dependem da matemática. Sabe-se que uma grande parte dos empregos científicos e técnicos exigem fina especialização em matemática, mesmo considerando que uma parte do trabalho produtivo trata da manutenção dos sistemas e que o essencial da coisa terá de ser assegurado por equipas multi-disciplinares, cada um dos cientistas e técnicos carece de formação matemática de elevado nível.
Há vários anos que os melhores estudantes de matemática do ensino secundário estão a ser atraídos para especialidades científicas, como medicina, arquitectura ou até enfermagem, e não vão para os cursos que mobilizam matemática ao nível mais elevado.
Perceber-se o desespero dos profissionais de matemática (em geral, professores do ensino superior nos departamentos de matemática e faculdades de ciências a leccionar cursos superiores de matemática e engenharia) que só excepcionalmente estão a receber jovens de alto rendimento em matemática e têm dificuldade em transformar a segunda escolha que lhes coube em sorte em estudantes capazes para o nível superior de proficiência matemática que se espera de candidatos a emprego em áreas dependentes da matemática a nível elevado, incluindo professores de matemática.
Já não se percebe que os trabalhadores científicos deixem de exercer pressão contra a degradação das profissões científicas dependentes da matemática que as tornou pouco
atractivas e, em vez de contrariarem essa fraqueza, antes procurem um bode expiatório no ensino secundário geral que, em si mesmo, tem de dar resposta social ao nível da cultura científica e da formação genérica dos cidadãos e não pode ser substituída por resposta parcelar exclusiva em necessidades da comunidade científica, que, sendo verdadeiras, não são mais que uma parte do problema.
Quem se preocupar com o trabalho científico, lutará contra a degradação das instituições de investigação científica e a debilidade do emprego científico. E estará livre para ajudar a melhoria de todo o ensino sem fazer dele o que ele não pode ser e, muito menos, bode expiatório de passa-culpas no atraso científico.
As profissões científicas têm de ser reconhecidas e têm de mostrar resultados empolgantes capazes de mobilizar os jovens, também em Portugal e não só em (neuro)cirurgia.
[o aveiro; 03/04/2008]
Muitos dos empregos científicos dependem da matemática. Sabe-se que uma grande parte dos empregos científicos e técnicos exigem fina especialização em matemática, mesmo considerando que uma parte do trabalho produtivo trata da manutenção dos sistemas e que o essencial da coisa terá de ser assegurado por equipas multi-disciplinares, cada um dos cientistas e técnicos carece de formação matemática de elevado nível.
Há vários anos que os melhores estudantes de matemática do ensino secundário estão a ser atraídos para especialidades científicas, como medicina, arquitectura ou até enfermagem, e não vão para os cursos que mobilizam matemática ao nível mais elevado.
Perceber-se o desespero dos profissionais de matemática (em geral, professores do ensino superior nos departamentos de matemática e faculdades de ciências a leccionar cursos superiores de matemática e engenharia) que só excepcionalmente estão a receber jovens de alto rendimento em matemática e têm dificuldade em transformar a segunda escolha que lhes coube em sorte em estudantes capazes para o nível superior de proficiência matemática que se espera de candidatos a emprego em áreas dependentes da matemática a nível elevado, incluindo professores de matemática.
Já não se percebe que os trabalhadores científicos deixem de exercer pressão contra a degradação das profissões científicas dependentes da matemática que as tornou pouco
atractivas e, em vez de contrariarem essa fraqueza, antes procurem um bode expiatório no ensino secundário geral que, em si mesmo, tem de dar resposta social ao nível da cultura científica e da formação genérica dos cidadãos e não pode ser substituída por resposta parcelar exclusiva em necessidades da comunidade científica, que, sendo verdadeiras, não são mais que uma parte do problema.
Quem se preocupar com o trabalho científico, lutará contra a degradação das instituições de investigação científica e a debilidade do emprego científico. E estará livre para ajudar a melhoria de todo o ensino sem fazer dele o que ele não pode ser e, muito menos, bode expiatório de passa-culpas no atraso científico.
As profissões científicas têm de ser reconhecidas e têm de mostrar resultados empolgantes capazes de mobilizar os jovens, também em Portugal e não só em (neuro)cirurgia.
[o aveiro; 03/04/2008]
volto sempre
Volto sempre a este lugar
à casa habitada pelos fantasmas
que vivem como amigos comigo
e para mim cantam em falsete
sonetos de amor e esperança
humana frágil e ridícula
como voz que mastiga as neblinas
o próprio bocejo dos fantasmas.
Por saber que me usam e deitam
fora como um lenço roto
para o cesto da roupa suja
enquanto alguma vida ainda resta
guardo fiapos de vozes das aves
no sem-fim da tardinha deste lugar.
à casa habitada pelos fantasmas
que vivem como amigos comigo
e para mim cantam em falsete
sonetos de amor e esperança
humana frágil e ridícula
como voz que mastiga as neblinas
o próprio bocejo dos fantasmas.
Por saber que me usam e deitam
fora como um lenço roto
para o cesto da roupa suja
enquanto alguma vida ainda resta
guardo fiapos de vozes das aves
no sem-fim da tardinha deste lugar.
e se puderes(...)
1.
e se puderes esconde-te numa aldeia onde
ninguém te encontre e em teu nome
manda uma carta de chamada
para onde andas perdido
lembra-te de mandar garantias
um contrato de trabalho sei lá
um grão de terra lavrada ou
uma gota de água das chuvas
e uma acha de cheiros que se desfaça em fumo
2.
para que passes na fronteira onde
os serviços de imigração farão de tudo
até que aceites voltar atrás aonde te perdes
se puderes manda a fotografia da parede
em que estás pintado como uma sombra de ti
3.
ainda melhor será se puderes esconder-te de ti
até que ninguém se lembre do teu nome
e até mesmo tu não saibas virar a cabeça
quando alguém pensar ter-te visto
por engano só pode ser engano
a fronteira é tão longe de tudo
como podias tu ter ido parar tão longe de ti
a limpar as mãos a um avental de ferreiro
cego credo pode lá ser!
e se puderes esconde-te numa aldeia onde
ninguém te encontre e em teu nome
manda uma carta de chamada
para onde andas perdido
lembra-te de mandar garantias
um contrato de trabalho sei lá
um grão de terra lavrada ou
uma gota de água das chuvas
e uma acha de cheiros que se desfaça em fumo
2.
para que passes na fronteira onde
os serviços de imigração farão de tudo
até que aceites voltar atrás aonde te perdes
se puderes manda a fotografia da parede
em que estás pintado como uma sombra de ti
3.
ainda melhor será se puderes esconder-te de ti
até que ninguém se lembre do teu nome
e até mesmo tu não saibas virar a cabeça
quando alguém pensar ter-te visto
por engano só pode ser engano
a fronteira é tão longe de tudo
como podias tu ter ido parar tão longe de ti
a limpar as mãos a um avental de ferreiro
cego credo pode lá ser!
a escola não é tudo
O filme dos acontecimentos de uma aula na Escola Carolina Michaelis do Porto voltou a chamar a atenção para o que se pode passar no interior das escolas, para o que pode passar-se dentro de quaisquer portas onde há papéis e apostas de domínio.
O filme mostra-nos uma jovem descontrolada a tentar recuperar um aparelho de uso comum usado como perturbação numa sessão de trabalho marcada num certo horário. O filme mostra-nos uma pequena turba de jovens a transformar a aula perturbada num espectáculo a ser mostrado. Há um telemóvel a perturbar uma jovem e uma aula para que um outro telemóvel, projéctil lançado por um delinquente, perturbe a sociedade inteira. É um espectáculo de pessoas-coisas tão degradante como muitos outros, como todos aqueles que foram transformando vidinhas rascas em espectáculos rascas para grandes audiências rascas. Todos os dias, as televisões dizem, pelo exemplo, aos jovens daquele pobre espectáculo, que há pessoas que perecem se não aparecem nas margens da ribalta para onde dão os esgotos de um submundo de sordidez .
Para que o filme aconteça, é preciso que um professor (ou um pai, ou uma mãe) se perca no território da sala de aula e lhe sejam vedadas as portas por onde entraria a instituição da escola inteira.
O espectáculo que se segue é o filme do que não se pode ver e é mostrado a todas as horas em todos os canais, fingindo agora que os personagens não têm cara e que o novo espectáculo é discutir formas de não repetir um espectáculo destes.
Todos sabemos que estamos perante um distúrbio excepcional, mas que distúrbios destes se repetem e provavelmente cada vez com mais frequência na sociedade, em geral, e na escola, em particular. De tal modo assim é que o Procurador Geral da República entendeu por bem inscrever nos seus planos de hoje como uma das suas preocupações com vista ao futuro. Queiramos ou não, estes jovens que não reconhecem as diversas instâncias de autoridade, a começar pelos adultos - pais e professores - que lhes são próximos, ameaçam o futuro com o seu presente de perdedores tão mais radicais quanto é certo que gritam vitória a cada exposição pública dos seus distúrbios rascas.
E é preciso ter consciência que há um problema de papéis. As escolas e os professores podem cuidar de dirigir o ensino e a aprendizagem para o bem colectivo e enquadrar parte das acções e incidentes até um certo nível de estranheza. E devem reconhecer os casos para os quais são incompetentes para os acompanhar até à porta de outros sistemas sociais: de apoio, se o problema é de pobreza; penal, se o problema é delinquência; de saúde, se o problema é doença (mental, também!), etc.
A escola não é tudo. Isso não é um problema. Reconhecer isso é uma parte da solução dos problemas da escola.
[o aveiro; 27/03/2008]
O filme mostra-nos uma jovem descontrolada a tentar recuperar um aparelho de uso comum usado como perturbação numa sessão de trabalho marcada num certo horário. O filme mostra-nos uma pequena turba de jovens a transformar a aula perturbada num espectáculo a ser mostrado. Há um telemóvel a perturbar uma jovem e uma aula para que um outro telemóvel, projéctil lançado por um delinquente, perturbe a sociedade inteira. É um espectáculo de pessoas-coisas tão degradante como muitos outros, como todos aqueles que foram transformando vidinhas rascas em espectáculos rascas para grandes audiências rascas. Todos os dias, as televisões dizem, pelo exemplo, aos jovens daquele pobre espectáculo, que há pessoas que perecem se não aparecem nas margens da ribalta para onde dão os esgotos de um submundo de sordidez .
Para que o filme aconteça, é preciso que um professor (ou um pai, ou uma mãe) se perca no território da sala de aula e lhe sejam vedadas as portas por onde entraria a instituição da escola inteira.
O espectáculo que se segue é o filme do que não se pode ver e é mostrado a todas as horas em todos os canais, fingindo agora que os personagens não têm cara e que o novo espectáculo é discutir formas de não repetir um espectáculo destes.
Todos sabemos que estamos perante um distúrbio excepcional, mas que distúrbios destes se repetem e provavelmente cada vez com mais frequência na sociedade, em geral, e na escola, em particular. De tal modo assim é que o Procurador Geral da República entendeu por bem inscrever nos seus planos de hoje como uma das suas preocupações com vista ao futuro. Queiramos ou não, estes jovens que não reconhecem as diversas instâncias de autoridade, a começar pelos adultos - pais e professores - que lhes são próximos, ameaçam o futuro com o seu presente de perdedores tão mais radicais quanto é certo que gritam vitória a cada exposição pública dos seus distúrbios rascas.
E é preciso ter consciência que há um problema de papéis. As escolas e os professores podem cuidar de dirigir o ensino e a aprendizagem para o bem colectivo e enquadrar parte das acções e incidentes até um certo nível de estranheza. E devem reconhecer os casos para os quais são incompetentes para os acompanhar até à porta de outros sistemas sociais: de apoio, se o problema é de pobreza; penal, se o problema é delinquência; de saúde, se o problema é doença (mental, também!), etc.
A escola não é tudo. Isso não é um problema. Reconhecer isso é uma parte da solução dos problemas da escola.
[o aveiro; 27/03/2008]
atractor
Muitos aspectos da actividade lectiva de hoje podem ser melhorados pelo recurso a computadores e telecomunicações. Se é certo que cada vez há mais computadores pessoais nas escolas, resta determinar que indicações se podem dar aos jovens para os usar com vantagem e resolver a questão de saber que recursos podem ser utilizados pelos professores das escolas com pequenos orçamentos. Isso só pode levar os professores a estudar para abordagens mais potentes e a procurar “software” livre de encargos.
Para o ensino de Matemática, há ferramentas gratuitas para apoiar todos e cada um dos temas de ensino, a partir dos quais podemos preparar actividades que não só permitem introduzir os conceitos e técnicas, como permitem que os jovens aprendam a utilizar computadores com vantagem para as suas necessidades de estudantes. Se é claro que os computadores não podem substituir o estudo e o trabalho necessários, de papel e lápis, o seu uso pode multiplicar as experiências matemáticas significativas dos jovens, criando novas oportunidades para conjecturar com segurança e, pelo recurso à mesma escrita (de papel e lápis) obter um imenso manancial de experiências que o cálculo automático pode propiciar. Usado de forma inteligente, o computador permite ao estudante confirmar com uma grande variedade de exemplos a matemática que lhe é dada e pedida em novas aplicações. Muitas das aprendizagens antes feitas por imitação e mergulhadas em subentendidos, são agora ampliadas por exigências de compreensão real e crítica, já que a tecnologia exige sempre a explicitação de cada relação e uma escrita sem ambiguidades.
A comunidade académica e científica tem produzido uma multiplicidade de modelos informáticos muito dinâmicos para divulgar e tornar acessíveis muitos temas que até agora eram de difícil aproximação Os estudantes podem manipular parâmetros ou posições de elementos de figuras que esclarecem rapidamente resultados, confirmando ou infirmando informações que se transmitem.
De resto, prontos a usar podemos encontrar muitos materiais que podem suportar actividades complexas em ambiente de sala de aula ou em plataformas a que os estudantes podem aceder a partir dos computadores pessoais. Entre todas as realizações, destacamos o Atractor, da Associação Atractor dirigida por Manuel Arala Chaves, e em que participam, como associadas, departamentos, faculdades ou universidades, a Associação de Professores de Matemática e a Sociedade Portuguesa de Matemática. O trabalho realizado está patente em módulos expostos no Pavilhão do Conhecimento Ciência Viva e outros locais, que podem ser revisitados no “site” do projecto.
Qualquer discussão sobre o uso de computadores no ensino ou sobre o recurso a experimentação para ampliar a compreensão de conceitos matemáticos tem de passar pela referência portuguesa que o Atractor é. Não é legítimo esperar que as escolas possam (ou sequer devam) construir materiais do nível dos produzidos para os grandes espaços, mas é legítimo esperar que os professores nas escolas reconheçam nessas exposições a possibilidade de enriquecimento do ensino e das aprendizagens. Do mesmo modo, é óbvio que ninguém espera que os professores produzam módulos, com recurso a ferramentas computacionais, ao nível dos que são produzidos e disponiblizados na rede pela Associação Atractor.
Sabemos que, para serem utilizados em sala de aula ou como materiais de apoio, os materiais produzidos pelo Atractor precisam de ser estudados e trabalhados pelos professores do ensino não superior e precisam de ser objecto de escolhas criteriosas, de modo a serem usados de forma adequada e não servirem, todos e cada um deles, como motivo para não abordar, por falta de tempo, os temas dos programas oficiais. À semelhança da gestão que tem de ser feita do programa e dos manuais adoptados pelas escolas, é preciso escolher e adaptar os materiais do Atractor. O Atractor funciona como uma ferramenta potente para o trabalho do professor, alerta para os assuntos e apoio no seu estudo, pode e deve ser aconselhado para os estudantes e público em geral, sendo certo que cada professor tem de escolher e tornar claro qual a utilização possível em sala de aula para a generalidade dos estudantes.
A Associação Atractor é um projecto generoso. Muitos materiais podem ser descarregados facilmente para os computadores dos professores e podem ser incorporados em módulos definidos e decididos por cada professor de forma adaptada às suas aulas e ao trabalhos dos estudantes de cada turma.
É tão necessário apoiar o desenvolvimento do Atractor, como apoiar os professores no trabalho de adaptação que é preciso fazer para dar aulas com o Atractor.
[a página de educação; Abril 2008]
Para o ensino de Matemática, há ferramentas gratuitas para apoiar todos e cada um dos temas de ensino, a partir dos quais podemos preparar actividades que não só permitem introduzir os conceitos e técnicas, como permitem que os jovens aprendam a utilizar computadores com vantagem para as suas necessidades de estudantes. Se é claro que os computadores não podem substituir o estudo e o trabalho necessários, de papel e lápis, o seu uso pode multiplicar as experiências matemáticas significativas dos jovens, criando novas oportunidades para conjecturar com segurança e, pelo recurso à mesma escrita (de papel e lápis) obter um imenso manancial de experiências que o cálculo automático pode propiciar. Usado de forma inteligente, o computador permite ao estudante confirmar com uma grande variedade de exemplos a matemática que lhe é dada e pedida em novas aplicações. Muitas das aprendizagens antes feitas por imitação e mergulhadas em subentendidos, são agora ampliadas por exigências de compreensão real e crítica, já que a tecnologia exige sempre a explicitação de cada relação e uma escrita sem ambiguidades.
A comunidade académica e científica tem produzido uma multiplicidade de modelos informáticos muito dinâmicos para divulgar e tornar acessíveis muitos temas que até agora eram de difícil aproximação Os estudantes podem manipular parâmetros ou posições de elementos de figuras que esclarecem rapidamente resultados, confirmando ou infirmando informações que se transmitem.
De resto, prontos a usar podemos encontrar muitos materiais que podem suportar actividades complexas em ambiente de sala de aula ou em plataformas a que os estudantes podem aceder a partir dos computadores pessoais. Entre todas as realizações, destacamos o Atractor, da Associação Atractor dirigida por Manuel Arala Chaves, e em que participam, como associadas, departamentos, faculdades ou universidades, a Associação de Professores de Matemática e a Sociedade Portuguesa de Matemática. O trabalho realizado está patente em módulos expostos no Pavilhão do Conhecimento Ciência Viva e outros locais, que podem ser revisitados no “site” do projecto.
Qualquer discussão sobre o uso de computadores no ensino ou sobre o recurso a experimentação para ampliar a compreensão de conceitos matemáticos tem de passar pela referência portuguesa que o Atractor é. Não é legítimo esperar que as escolas possam (ou sequer devam) construir materiais do nível dos produzidos para os grandes espaços, mas é legítimo esperar que os professores nas escolas reconheçam nessas exposições a possibilidade de enriquecimento do ensino e das aprendizagens. Do mesmo modo, é óbvio que ninguém espera que os professores produzam módulos, com recurso a ferramentas computacionais, ao nível dos que são produzidos e disponiblizados na rede pela Associação Atractor.
Sabemos que, para serem utilizados em sala de aula ou como materiais de apoio, os materiais produzidos pelo Atractor precisam de ser estudados e trabalhados pelos professores do ensino não superior e precisam de ser objecto de escolhas criteriosas, de modo a serem usados de forma adequada e não servirem, todos e cada um deles, como motivo para não abordar, por falta de tempo, os temas dos programas oficiais. À semelhança da gestão que tem de ser feita do programa e dos manuais adoptados pelas escolas, é preciso escolher e adaptar os materiais do Atractor. O Atractor funciona como uma ferramenta potente para o trabalho do professor, alerta para os assuntos e apoio no seu estudo, pode e deve ser aconselhado para os estudantes e público em geral, sendo certo que cada professor tem de escolher e tornar claro qual a utilização possível em sala de aula para a generalidade dos estudantes.
A Associação Atractor é um projecto generoso. Muitos materiais podem ser descarregados facilmente para os computadores dos professores e podem ser incorporados em módulos definidos e decididos por cada professor de forma adaptada às suas aulas e ao trabalhos dos estudantes de cada turma.
É tão necessário apoiar o desenvolvimento do Atractor, como apoiar os professores no trabalho de adaptação que é preciso fazer para dar aulas com o Atractor.
[a página de educação; Abril 2008]
a velha que dança
Há alturas em que parece impossível não termos assunto. E sobre os assuntos do dia, há mesmo quem espere que todos falem, mesmo que não saibam do que falam ou digam o mesmo que já foi dito. Ler e reler opiniões que não adiantam coisa alguma ao já dito, torna-se tão cansativo! O assunto do dia sai da ordem do dia para passar a ser da ordem do horrível Quando um dos nossos assuntos se torna assunto do dia e da moda, sobre o qual todos temos de falar, tornamo-nos mudos para a nossa vida. Mudos de espanto, diminuídos e tristes!
Perdidos do nosso assunto, e incapazes para qualquer outro assunto. Sem assunto, pois.
Tentando não ceder à avalanche das mensagens dos que cavalgam a onda dos professores e da educação(?) numa euforia sem limites, começamos a dar atenção às coisas e pessoas em que não reparamos habitualmente.
À minha frente, uma jovem de negro segue calmamente. Penso em acelerar, mas desisto porque a jovem de negro vai de um lado ao outro do passeio e eu não acerto com os melhores momentos para a ultrapassagem. Ou é ela que é imprevisível na sua forma de andar em frente? Pelo sim, pelo não, deixo-me ir atrás dela que não tenho pressa. Depois da passadeira, parece-me que ela se integra num grupo que já circulava por aquele passeio.
E eu continuo o meu caminho sem assunto. Até que olho para o telefone e relógio que começara a vibrar como um alarme a avisar-me para não me atrasar e a mandar-me acelerar para, sem pressas, chegar a tempo ao lugar do trabalho.
Ao alargar a passada, volto a olhar para as costas que seguem à minha frente. Para escolher a melhor abordagem ao passeio estreito, para a ultrapassagem perfeita. E vejo que a jovem de negro, de novo isolada no passeio, dança ao som de uma música só dela. Eu não ouço, mas é como se ouvisse o som da brisa que a faz oscilar como um junco, em pé e arrancado das suas raízes.
Contrariado, decido mesmo ultrapassá-la. Um pé no passeio, outro na estrada, faço uma magnífica manobra de ultrapassagem. Magnífica, mas ridícula. Ao ouvir a gargalhada, olho para trás. E vejo as linhas e rugas das mãos dançando na jovem de negro. E vejo os olhos brilhantes e alegres de um belo rosto, rasgado por rugas.
A velha que dança vai ficando para trás, feliz por ver-me pelas costas.
[o aveiro; 20/03/2008]
Perdidos do nosso assunto, e incapazes para qualquer outro assunto. Sem assunto, pois.
Tentando não ceder à avalanche das mensagens dos que cavalgam a onda dos professores e da educação(?) numa euforia sem limites, começamos a dar atenção às coisas e pessoas em que não reparamos habitualmente.
À minha frente, uma jovem de negro segue calmamente. Penso em acelerar, mas desisto porque a jovem de negro vai de um lado ao outro do passeio e eu não acerto com os melhores momentos para a ultrapassagem. Ou é ela que é imprevisível na sua forma de andar em frente? Pelo sim, pelo não, deixo-me ir atrás dela que não tenho pressa. Depois da passadeira, parece-me que ela se integra num grupo que já circulava por aquele passeio.
E eu continuo o meu caminho sem assunto. Até que olho para o telefone e relógio que começara a vibrar como um alarme a avisar-me para não me atrasar e a mandar-me acelerar para, sem pressas, chegar a tempo ao lugar do trabalho.
Ao alargar a passada, volto a olhar para as costas que seguem à minha frente. Para escolher a melhor abordagem ao passeio estreito, para a ultrapassagem perfeita. E vejo que a jovem de negro, de novo isolada no passeio, dança ao som de uma música só dela. Eu não ouço, mas é como se ouvisse o som da brisa que a faz oscilar como um junco, em pé e arrancado das suas raízes.
Contrariado, decido mesmo ultrapassá-la. Um pé no passeio, outro na estrada, faço uma magnífica manobra de ultrapassagem. Magnífica, mas ridícula. Ao ouvir a gargalhada, olho para trás. E vejo as linhas e rugas das mãos dançando na jovem de negro. E vejo os olhos brilhantes e alegres de um belo rosto, rasgado por rugas.
A velha que dança vai ficando para trás, feliz por ver-me pelas costas.
[o aveiro; 20/03/2008]
eu virei as costas
sem poder levantar-me, acordado, deixei que a manhã acordasse
a tomar um café da esquina como o de todos os outros dias
enquanto
um vento ligeiro ao lado de uma neblina parda ou uma aragem prenha
com as águas a rebentar foi arrefecendo e ganhando a forma
do tambor
que marca a marcha fúnebre e a despedida.
a tomar um café da esquina como o de todos os outros dias
enquanto
um vento ligeiro ao lado de uma neblina parda ou uma aragem prenha
com as águas a rebentar foi arrefecendo e ganhando a forma
do tambor
que marca a marcha fúnebre e a despedida.
a vida dos outros
Recebo todos os dias anúncios nas diversas caixas de correio. Cada anúncio contém uma oferta irrecusável disto ou daquilo, seguramente de alguma coisa que eu não pedi. Atafulho os meus caixotes de lixo com as ofertas. De vez em quando, dou-me ao cuidado de responder recusando as ofertas, na tentativa vã de ser riscado da lista, arriscando-me a perder os laços a quem me quer tanto bem.
Recentemente comecei a receber conselhos, recomendações morais e políticas, reprovações de opções passadas e indicações para opções futuras. Espantoso mesmo é que a maior parte das reprovações e recomendações morais vêm assinadas por um senhor de nome “anónimo” que me conhece e a quem eu não posso conhecer. Não sei quem seja, nem sei se é alguma empresa ou partido,... Algumas vezes, o senhor anónimo tem o cuidado de dizer que já concordou com as minhas opções, sem dizer quais, ou de dizer que nunca concordou mas que é preciso que eu me dê ao respeito e faça isto ou aquilo tal qual ele acha que é bom que seja feito. O senhor anónimo chega mesmo a chamar-me nomes mais feios que o meu nome próprio, levando-me a pensar que foi engano e o recado é para filho da família adoptiva do senhor anónimo.
Outras vezes, toma como referência para as suas tiradas a coerência de posições de algum partido (ou sindicato ou dirigente sindical) que é público nunca me ter servido de referência. O melhor disto tudo é quando o senhor anónimo me recomenda que eu tome cuidado com esta ou aquela posição, por ela ser contestada por muitos dos eleitores de um partido importante no qual eu nunca votaria. Porque será que o senhor anónimo acha que pode influenciar-me com o desgosto de eleitores com mau gosto militante?
Uma característica do senhor anónimo (deve ser só um, penso eu) é ser só orelhas. Cada vez me parece mais que o senhor anónimo não lê um só dos papéis que está a rejeitar quando me escreve. Provavelmente, o senhor anónimo nem sabe ler e decora tudo o que querem que ele transcreva para a letra de forma das suas recomendações.
Volta e meia, também recebo cartas de amor. Detesto ter de admitir que a maior parte das declarações de amor que recebo vêm infectadas com vírus que só não me prejudicam porque elas não me procuram a mim e procuram um sistema operativo que não é o meu. E agrada-me confessar que gosto de receber cartas de amor. Sejam elas quais forem, são as que eu recebo e eu não posso dar-me ao luxo de lhes resistir.
Do mesmo modo, gosto de receber cartas do senhor anónimo. Já não tenho pai nem mãe. Para além do senhor anónimo, quem mais me pode dar conselhos e puxões de orelhas? O senhor anónimo faz de mim a criança que eu nunca fui.
[o aveiro; 13/03/2008]
Recentemente comecei a receber conselhos, recomendações morais e políticas, reprovações de opções passadas e indicações para opções futuras. Espantoso mesmo é que a maior parte das reprovações e recomendações morais vêm assinadas por um senhor de nome “anónimo” que me conhece e a quem eu não posso conhecer. Não sei quem seja, nem sei se é alguma empresa ou partido,... Algumas vezes, o senhor anónimo tem o cuidado de dizer que já concordou com as minhas opções, sem dizer quais, ou de dizer que nunca concordou mas que é preciso que eu me dê ao respeito e faça isto ou aquilo tal qual ele acha que é bom que seja feito. O senhor anónimo chega mesmo a chamar-me nomes mais feios que o meu nome próprio, levando-me a pensar que foi engano e o recado é para filho da família adoptiva do senhor anónimo.
Outras vezes, toma como referência para as suas tiradas a coerência de posições de algum partido (ou sindicato ou dirigente sindical) que é público nunca me ter servido de referência. O melhor disto tudo é quando o senhor anónimo me recomenda que eu tome cuidado com esta ou aquela posição, por ela ser contestada por muitos dos eleitores de um partido importante no qual eu nunca votaria. Porque será que o senhor anónimo acha que pode influenciar-me com o desgosto de eleitores com mau gosto militante?
Uma característica do senhor anónimo (deve ser só um, penso eu) é ser só orelhas. Cada vez me parece mais que o senhor anónimo não lê um só dos papéis que está a rejeitar quando me escreve. Provavelmente, o senhor anónimo nem sabe ler e decora tudo o que querem que ele transcreva para a letra de forma das suas recomendações.
Volta e meia, também recebo cartas de amor. Detesto ter de admitir que a maior parte das declarações de amor que recebo vêm infectadas com vírus que só não me prejudicam porque elas não me procuram a mim e procuram um sistema operativo que não é o meu. E agrada-me confessar que gosto de receber cartas de amor. Sejam elas quais forem, são as que eu recebo e eu não posso dar-me ao luxo de lhes resistir.
Do mesmo modo, gosto de receber cartas do senhor anónimo. Já não tenho pai nem mãe. Para além do senhor anónimo, quem mais me pode dar conselhos e puxões de orelhas? O senhor anónimo faz de mim a criança que eu nunca fui.
[o aveiro; 13/03/2008]
semana da leitura
Na tarde de quinta, fui a S. João de Loure, aqui tão perto, ler Tonino Guerra.
Contente mesmo contente
estive muitas vezes durante a vida
mas nunca tanto como me senti na Alemanha
quando ao ser libertado
dei por mim a olhar uma borboleta
sem vontade de a comer.
E também falei para a rádio da Escola Básica Integrada. Um bom dia, pois!
o relatório do medo
Antigamente e agora (como o provam os concursos de televisão) a grande prova de sabedoria passava e passa por dar respostas a muitas perguntas que ou não têm qualquer sentido ou têm sentido em mundos muito reduzidos em tempo e em espaço. As respostas escolhidas como certas podem nem ser as certas para toda a gente que saiba procurar respostas certas e quem as dá pode nem saber do que está a falar. Valorizamos para efeitos de validação de conhecimentos as perguntas e as respectivas respostas certas sem cuidarmos de que alguém as compreenda. Deste modo, fazemos passar por conhecimento o resultado de treinos intensivos em memorizações de detalhes. É importante ter decorado grandes poemas ou canções para os recitar e cantar em família. Sem compreender o sentido do que decorava, treinei competências próprias que, até hoje, me têm ajudado a memorizar, quando quero, textos que compreendo. Mas sei que as incríveis orações decoradas não fazem prova de qualquer sabedoria ou inteligência a merecer louvor pelo seu conteúdo. Talvez mereça louvor a aplicação e a persistência postas nesse treino.
Sobrevive a ideia de que repetindo ensinamos e que quem (se) repete acaba por saber. É verdade que quem repete muitas vezes uma mesma coisa acaba por decorar, e pode lembrar-se dos nomes de certas famílias de rios, de personagens mais ou menos reais, de anos de batalhas, ... sem que isso signifique compreensão inteligente sobre o que decorou. Quando as coisas parecem muito mal, repetimos para nós mesmos que levar a decorar é melhor que nada. E é. De vez em quando, em desespero de causa, tendemos a querer uma escola de repetidores.
Ora, neste tempo em que as informações estão em toda a parte e disponíveis em suportes diversos, decorar não tem a mesma importância que tinha quando a transmissão oral de nomes e factos era a via privilegiada.
Basear todo o ensino na transmissão de conhecimentos e esta, na repetição do mesmo, até tudo ficar decorado, criou um sistema. A gestão deste sistema tarda em ser acusada de distribuir tarefas socialmente inúteis a muitas pessoas. Para além de inúteis, nocivas; já que tendem a reproduzir-se que é repetir-se de outra forma. O pior de um sistema de repetidores por obrigação de estado está na criação de um sistema de registos e relatórios inúteis sobre os maus resultados do trabalho inútil. Podemos mesmo estar a assistir à substituição, por relatórios palavrosos e inúteis, dos restos de trabalho útil. Há quem diga ainda que já nem sabemos escrever e que só fazemos cópias. Além de inúteis, os relatórios podem ser todos iguais: um só relatório, afinal.
[o aveiro; 6/03/2008]
Sobrevive a ideia de que repetindo ensinamos e que quem (se) repete acaba por saber. É verdade que quem repete muitas vezes uma mesma coisa acaba por decorar, e pode lembrar-se dos nomes de certas famílias de rios, de personagens mais ou menos reais, de anos de batalhas, ... sem que isso signifique compreensão inteligente sobre o que decorou. Quando as coisas parecem muito mal, repetimos para nós mesmos que levar a decorar é melhor que nada. E é. De vez em quando, em desespero de causa, tendemos a querer uma escola de repetidores.
Ora, neste tempo em que as informações estão em toda a parte e disponíveis em suportes diversos, decorar não tem a mesma importância que tinha quando a transmissão oral de nomes e factos era a via privilegiada.
Basear todo o ensino na transmissão de conhecimentos e esta, na repetição do mesmo, até tudo ficar decorado, criou um sistema. A gestão deste sistema tarda em ser acusada de distribuir tarefas socialmente inúteis a muitas pessoas. Para além de inúteis, nocivas; já que tendem a reproduzir-se que é repetir-se de outra forma. O pior de um sistema de repetidores por obrigação de estado está na criação de um sistema de registos e relatórios inúteis sobre os maus resultados do trabalho inútil. Podemos mesmo estar a assistir à substituição, por relatórios palavrosos e inúteis, dos restos de trabalho útil. Há quem diga ainda que já nem sabemos escrever e que só fazemos cópias. Além de inúteis, os relatórios podem ser todos iguais: um só relatório, afinal.
[o aveiro; 6/03/2008]
olhando mais para cima
ao sábado, quando voltamos ao lugar do dia antes damos por nós a olhar para o alto dos edifícios como olhamos para o alto das prisões onde um guarda vigia. o que nos move é ver se é possível escapar depois de lá entrarmos. e mesmo sabendo que não há guarda algum levantamos o olhar para ameias inexistentes onde sentinelas fumam às escondidas para nos esconder dos seus olhares.
a explicação dos pássaros
Quando um professor participa num debate sobre professores e sobre os malefícios da política da educação na actualidade, pode fingir que as decisões de hoje são as decisões do governo de hoje e louvá-las ou repudiá-las ou mesmo fingir que, mudando o ministro (ou a sensibilidade) ou mudando o governo para dar lugar à alternativa do costume, se resolve algum problema. Assim pensa e faz quem está no governo ou quem esteve no governo passado e para lá quer voltar na próxima volta. E há mesmo quem pense sinceramente isto e acredite que o que lá vai lá vai e que o que interessa agora é manter ou mudar para garantir estas reformas ou outra forma destas reformas. Há mesmo quem admita que um governante que passa por vários governos pode fazer a reforma nunca feita e que o que antes fez não existe ou foi errado sem que se veja uma beliscadura na sua carreira, nem lhe tenha sido exigido acto de contrição ou propósito firme de emenda. Como se os ministros de um novo governo do PS ou do PSD fossem outros, porque (a)parecem como novas pessoas, novas promessas, novos argumentos.
E pode fingir que a vida da educação e dos professores depende da capacidade de fazer cair ministros e governos para os substituir por outros ainda que mais dos mesmos. Isto não é mais do que o reforço e manutenção de uma ideia de resistência, fora dos dois partidos da alternância, como força popular, que vive de organizar grandes movimentos das massas quaisquer que eles e elas sejam como prova de vida e vitalidade. É como ter um desejo centrado no corpo do descontentamento de todos, ou do descontentamento nosso de cada dia. Há uma certa grandeza nisto. E uma tragédia. Os descontentamentos de todos pertencem à ordem das circunstâncias, não são um corpo de política, nem dão o corpo às políticas. Os descontentamentos de que falamos satisfazem-se numas braçadas em mar de enganos ou em marasmo.
Quem escolhe participar e não pode escolher responsáveis para os erros de hoje nem acredita em êxitos de hoje, à pergunta sobre quem é responsável por este ou aquele erro e mal estar, só pode responder "somos todos! somos todos!" para que os culpados saibam que a culpa está, ainda que a diferentes níveis, atribuída a todos e que é preciso discutir para decisões que se coloquem para lá do jogo de cadeiras por alternância.
É preciso discutir do ponto de vista da profissão dos professores, do ponto de vista da educação e ensino das crianças e dos jovens, do ponto de vista dos interesses individuais como partes interessadas nos interesses sociais. Do ponto de vista do outro, o que tem o poder de não estar no poder. Porque, em democracia, não é tolice subir a um banco, numa qualquer esquina, para falar da esperança muda.
[o aveiro; 28/02/2008]
E pode fingir que a vida da educação e dos professores depende da capacidade de fazer cair ministros e governos para os substituir por outros ainda que mais dos mesmos. Isto não é mais do que o reforço e manutenção de uma ideia de resistência, fora dos dois partidos da alternância, como força popular, que vive de organizar grandes movimentos das massas quaisquer que eles e elas sejam como prova de vida e vitalidade. É como ter um desejo centrado no corpo do descontentamento de todos, ou do descontentamento nosso de cada dia. Há uma certa grandeza nisto. E uma tragédia. Os descontentamentos de todos pertencem à ordem das circunstâncias, não são um corpo de política, nem dão o corpo às políticas. Os descontentamentos de que falamos satisfazem-se numas braçadas em mar de enganos ou em marasmo.
Quem escolhe participar e não pode escolher responsáveis para os erros de hoje nem acredita em êxitos de hoje, à pergunta sobre quem é responsável por este ou aquele erro e mal estar, só pode responder "somos todos! somos todos!" para que os culpados saibam que a culpa está, ainda que a diferentes níveis, atribuída a todos e que é preciso discutir para decisões que se coloquem para lá do jogo de cadeiras por alternância.
É preciso discutir do ponto de vista da profissão dos professores, do ponto de vista da educação e ensino das crianças e dos jovens, do ponto de vista dos interesses individuais como partes interessadas nos interesses sociais. Do ponto de vista do outro, o que tem o poder de não estar no poder. Porque, em democracia, não é tolice subir a um banco, numa qualquer esquina, para falar da esperança muda.
[o aveiro; 28/02/2008]
curvado
cada dia, um dia. quando chegamos ao fim do dia, podemos dizer uma de duas coisas: este já cá canta e eu sobrevivo para mais um dia melhor que este e há quem não tenha chegado ao fim deste dia e as esperanças que tinha evaporaram-se ou já canta mais um dia de vida vivida com sentido certo de que amanhã posso apreciar a vida com os sentidos todos despertos. de qualquer modo, ganhamos um dia ao futuro de que fazemos parte. adormecemos cansados por tudo e por nada. escolhemos viver o dia seguinte ou desistir do dia seguinte. escolhemos, de qualquer modo, escolhemos reatar uma caminhada para algum lugar vazio ou cheio. vazio porque não reconhecemos as coisas em seu lugar ou porque o nosso lugar foi roubado e não somos mais que o abismo que aceitamos sem querer. cheio, ainda que esvaziado pela usura dos outros e do tempo, porque nos reconhecemos em tudo quanto somos ainda que perdidos dos outros e pelos outros, porque nos reconhecemos noutro início de luta, porque reconhecemos a nossa respiração, a nossa forma de andar no passo que sucede ao anterior. curvados, ainda que curvados... contra o vento, levados na tempestade enquanto fumamos o nosso último cigarro.
frielas
Há sempre o dia antes. Nesse dia, houve quem alertasse para o perigo que está em adiar o que devia ser a mais simples rotina diária em troca da obra necessária para encher o bolso ao pato bravo e o olho aos eleitores embasbacados. Nesse dia, houve quem alertasse para todos os perigos de não se cumprirem os planos e as recomendações a favor do interesse natural e contra as violações grosseiras pela iniciativa local criminosa. Nesse dia antes, os representantes das autarquias desmentem tudo e reafirmam que tudo fazem para evitar o pior e até o menos mau e garantem que onde tinham a ribeira encarcerada, têm agora um vale de águas livres a fertilizar as terras em volta, que nada do que é mau se vai repetir nos mesmos termos de antigamente. Assanhados, os autarcas tornam-se mesmo façanhudos, capazes de todas as façanhas a favor do desenvolvimento e do progresso e contra toda a reacção alérgica ao betão até nos convencerem que a via única do progresso está em cada obra aprovada, com a qual evitam e fintam a chuva e o vento.
Ainda o dia antes não acabou e já pinga. A chuva vai cair sem parar por umas horas. E no dia que se segue ao dia antes, aconteceu tudo o que se tinha dito que podia acontecer de mal. As ribeiras transbordam, galgando as suas margens. E novos rios arrastam dos altos, os aterros ainda que embargados e desaguam um mar de lama numa praça da baixa ou numa rua pavimentada sobre uma linha de água num dia em que a linha de água interpretava um papel de ingénua obediente numa peça de amadores. O que ontem era uma estrada é hoje um rio em que uma camioneta da carreira está tolhida numa confusão de águas. Dentro da camioneta, homens e mulheres presos, até serem salvos por bombeiros, tremendo já de frio e de pavor. É o dia em que as ribeiras, cansadas de serem desprezadas, se fazem rios e crescem. Neste dia, saltam para a ribalta as ribeiras. Arrastam e matam, por ordem de quem? E há autarcas que procuram e encontram explicações novas para os desmentidos de ontem quando falam em frente a um cenário de explosões de água pelas ruas que pavimentam antigas ribeiras, por eles condenadas à clandestinidade mais subterrânea.
Que dirão e farão eles amanhã, quando não se lembrarem da lama e dos mortos de hoje?
Na memória do dia, sobra-nos uma placa a afogar-se num cruzamento de estradas.
[o aveiro; 21/02/2008]
Ainda o dia antes não acabou e já pinga. A chuva vai cair sem parar por umas horas. E no dia que se segue ao dia antes, aconteceu tudo o que se tinha dito que podia acontecer de mal. As ribeiras transbordam, galgando as suas margens. E novos rios arrastam dos altos, os aterros ainda que embargados e desaguam um mar de lama numa praça da baixa ou numa rua pavimentada sobre uma linha de água num dia em que a linha de água interpretava um papel de ingénua obediente numa peça de amadores. O que ontem era uma estrada é hoje um rio em que uma camioneta da carreira está tolhida numa confusão de águas. Dentro da camioneta, homens e mulheres presos, até serem salvos por bombeiros, tremendo já de frio e de pavor. É o dia em que as ribeiras, cansadas de serem desprezadas, se fazem rios e crescem. Neste dia, saltam para a ribalta as ribeiras. Arrastam e matam, por ordem de quem? E há autarcas que procuram e encontram explicações novas para os desmentidos de ontem quando falam em frente a um cenário de explosões de água pelas ruas que pavimentam antigas ribeiras, por eles condenadas à clandestinidade mais subterrânea.
Que dirão e farão eles amanhã, quando não se lembrarem da lama e dos mortos de hoje?
Na memória do dia, sobra-nos uma placa a afogar-se num cruzamento de estradas.
[o aveiro; 21/02/2008]
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