quem chega e quem parte

tu li(m)pas!

aramadilha cercada

A armadilha

Na última semana, prestei especial atenção a alguns analistas e políticos que trataram dos assuntos da justiça, das trapalhadas dos Ministérios da Justiça e das Finanças, do congresso da CGTP e das declarações de Carvalho da Silva e Mário Soares, para além de uns trocados sobre a economia em crise e o pacto de estabilidade.

Sempre com dificuldade em engolir as suas opiniões, até é possível que tenham razão e é mesmo possível que falem de evidências que só a mim escapam. Para continuar saudável, tenho de recusar o seu mundo tão simples quanto terrível. Para eles, o discurso de Carvalho da Silva no Congresso da CGTP não é o natural discurso politico de um dirigente sindical para este tempo de crise, de congelamento de salários, de encerramento de empresas e despedimentos em massa, de desemprego, de cortes no sistema de saúde pública, de privatizações de sectores que são considerados essenciais para garantir o acesso universal a certos bens e serviços, etc. Para eles, o discurso de Carvalho da Silva é o discurso de um indivíduo que dá sinais de querer ser secretário geral de um partido. Não são as circunstâncias da situação politica que determinam os actuais discursos de Carvalho da Silva ou de Mário Soares. Para eles, os discursos não passam de manigâncias individuais no cenário da conquista de um poder qualquer. Em que mundo foram criados estes analistas? Os seus conhecidos trazem punhais afiados nos bolsos prontos a ser enterrados nas costas de seus rivais ou aliados que lhes perturbem a caminhada. Só pode ser. E, a ser isso verdade, pelo que nos é dado ver, o modelo de que se servem para analisar os actos dos indivíduos em geral, só pode espelhar a gente que está no poder ou nela se reflectem. Não é perturbador este jogo de espelhos?

E, ao contrário do Reino Unido, em que a mentira matou e ainda demite (como aconteceu recentemente na BBC), os políticos, militares, comentadores e jornalistas que mentiram e influenciaram a opinião pública a favor da guerra não mostram quaisquer sintomas de culpa ou interesse em estabelecer a verdade e, em Portugal, esse passado próximo foi assassinado e está enterrado em parte incerta. Não é perturbador que a honra se tenha suicidado?

O jogo consiste em abafar com barulho o ranger de dentes e imaginar brilhantes futuros como vestidos do pobre presente. E sobre alguns incómodos de consciência, que se estenda uma mortalha de silêncio. Quem anda a montar a armadilha?

[o aveiro; 5/2/2004]

O circo com feras

O Ministério da Justiça de Celeste Cardona mostra o seu melhor no domínio das artes circenses ao arriscar uma dupla pirueta seguida de salto mortal atrás.
Começa por não entregar prestações devidas à Caixa Geral de Aposentações até que esta ameaça não processar nem mais uma aposentação aos funcionários do Instituto em falta. Pouca gente olha para esta primeira fase da pirueta, porque os holofotes estão apontados para outro lugar da arena. Pensou que os holofotes não a iriam destacar e podia continuar os seus ensaios longe dos olhares do público? Ou não suportou a falta dos aplausos e vaias? O que é certo é que arriscou tudo na segunda fase da pirueta.
E, descontando nos salários de um ano (?) de centenas de oficiais de justiça eventuais as devidas prestações para a segurança social, a esta não fez as entregas impedindo as acções de apoio social aos trabalhadores, que a elas tinham e têm direito.
Mas o melhor ainda estava para vir., o salto mortal atrás. Afirmando a pés juntos que não praticou qualquer ilegalidade, vem explicar que não podia entregar as verbas por não haver o completo enquadramento legal das contratações daqueles trabalhadores. Faltava uma autorização do Ministério das Finanças? Faz-se uma autorização especial e, de rabo descoberto, as entregas são prometidas para breve. E tudo volta à normalidade, tudo fica regularizado. Fica?

A dupla pirueta da retenção de impostos e prestações sem a consequente entrega é crime. É o Ministério da Justiça que dá o exemplo e, por essa via, cobre com um manto de poeira os milhares de crimes da mesma natureza que empresas privadas cometeram ou venham a cometer. Como pode tal Ministério arrogar-se competência para o combate à fraude, ao crime fiscal e tributário? Quem se pode admirar de tanta fuga e tanto roubo, sem castigo, que tolhe o pais?

O salto mortal atrás levanta a ponta do véu da mentira que são as “causas” deste governo para a administração pública. As regras que se aplicam à contratação dos funcionários públicos e que a impedem podem não ser aplicadas, por exemplo, pelo Ministério da Justiça. Ironia? Não. Só a tristeza de um albergue onde não há lei nem regra que tolha a vontade deste ou daquele governante mais talhado para a farsa das chantagens em coligações de poder.

Quem julga que este circo é um espectáculo oferecido ao povo, está enganado. Não há espectáculo mais caro. Mas é o único em que autênticas feras arriscam duplas piruetas com salto mortal.


[o aveiro; 29/01/2004]

como rilke, fendendo a porcelana da noitinha



Quando a tardinha dá lugar
à noitinha, há praças que tomam
a forma de aquários.

A água suspensa
suspende-nos um pouco acima do chão
e fendemos o tempo lentos entre as gotas
das cortinas de chuva miudinha
que desenham portas na cidade.

Sem ninguém à vista desarmada
respiramos à maneira de quem nada
num voo mariposa.

nãdesdenhes, se puderes



não me abandones antes de ter encontrado
o silêncio de ouro
que é o que sobra como tesouro
das histórias inteiras que fazem o nosso fado

a guitarra que só depois de ter o visto
e o ouvido vestido
deixa marca escrita no areal do rosto pelo mar varrido
uma mancha das palavras com que eu me visto

para descrever-te o instantâneo a revelação
final numa câmara escura
onde registas o teu sonho de aventura
e eu vejo a tua alegria como redenção

e, se puderes, sussurra-me o segredo
do teu riso
e eu nunca mais volte ao meu perfeito juízo
de onde devia afinal ter saído muito mais cedo

des(d)enho

desdenho

onde estamos, onde nos afundamos?



Aqui fundeamos, soltamos uma âncora
e esperamos que ela encontre quem a prenda
e nos prenda a nós
nas vagas de um lugar qualquer
ainda que cercados por tubarões
de que sabemos nomes e apelidos.

Porque será que preferimos o incerto lugar
e fundamos a esperança neste alto mar?

A matéria dos sonhos

É como se nada do que vimos acontecer tenha acontecido. Os debates sucedem-se por força do que acontece, mas metade dos participantes aceita a chamada ao debate como se nada tivesse acontecido que o motivasse. Pensamos mesmo que eles e elas aceitaram o tempo presente como matéria de que é feita a eternidade. E todos se fecham numa concha de coerência e moral que são matérias estranhas e exteriores à composição química dos políticos no poder.

As formas governamentais de descentralização e reorganização do território são uma novidade? Permitem aos municípios iniciativas conjuntas por sua conta e risco. Já não era assim? Não se mantêm todos os actuais entraves ao desenvolvimento local e regional? Algumas das concretizações só podem classificar-se na categoria de pesadelos. A contiguidade territorial já fez com que Castelo de Paiva passe a estar no Vale do Sousa. Alguém sabe que unidade é uma área metropolitana? Quem sabia, vai deixar cair o conceito para poder aceitar as designações de novas realidades (ainda que virtuais) portuguesas. A haver alguma área metropolitana por aqui perto ela já existe e atrai os municípios do norte do distrito.

A educação e o ensino não tem quaisquer problemas e tudo o que se fez e faz vai no bom sentido. Dizem-nos que todos podem ver que há coragem e capacidade de decisão e que finalmente as escolas vão poder cumprir o seu papel. Porque é que trabalhadores da educação, sindicatos e uniões, associações de estudantes e confederação de pais ou mesmo as ligas católicas apelam a uma marcha pela educação marcada para a próxima sexta feira?

Todos são a favor da necessidade de uma reforma na administração pública. Mas parece que a reforma proposta pelo governo não é afinal a resposta a esse desejo profundo. Que consequências terá o congelamento dos salários da função pública pelo segundo ano consecutivo? Nenhuma? As greves marcadas são motivadas pelo egoísmo feroz?

Não há mulheres a serem julgadas por um crime catalogado em lei e que ninguém quer ver mais castigadas do que já foram pelas suas próprias vidas? Não é verdade que há muitas dezenas de milhares de portugueses a assinar petições para pôr fim a esta ignomínia?

Os pesadelos são da mesma matéria dos sonhos? E o poder é surdo e cego? Para que é o espanto? Eu quero estar enganado.

Nunca me lembro do que sonho, mas sei que os meus sonhos não moram nestes tempos.


[o aveiro; 22/1/2004]

as duas pastas

Trago sempre duas pastas dentífricas dentro da pasta onde guardo também alguma roupa interior e lenços de assoar. Nunca me foram úteis a...