a história em que ninguém conta

Estou a olhar para o dia que aí vem. Não consigo ver muito bem o que vai acontecer. Ao longo dos anos, os poderosos foram escrevendo, página a página, ano a ano, os nossos anos por viver. Deram-lhe a forma de leis, estudos, projecções, etc. Para nós lermos. Cada uma das páginas reclamava para o futuro que prometiam um ou outro sacrifício, esta ou aquela taxa, etc, garantindo sempre que ninguém melhor que eles podia compreender o que precisava de ser feito... Pediam que acreditássemos até porque nunca se enganavam, raramente tinham dúvidas e estavam de pedra e cal para governar por décadas e décadas, e embora parecessem diferentes seriam sempre os mesmos governos. intermitentemente.

De tudo o que eles escreveram, metade aconteceu mesmo. Os governos repetiram-se por força dos votos de vencidos e convencidos de que para a alternância não há alternativa. De resto, tudo mudou. Os eternos gestores dos dinheiros públicos vieram dizer aos pelintras da Europa que tinham sido esbanjadores, pouco produtivos, nada competitivos, e que, em consequência das políticas erradas e de decisões insensatas e tolas, o país estava a braços com uma crise difícil de superar. Para a combater, novos sacrifícios, mais anos de trabalho, congelamento de salários, etc, tinham de ser feitos pelos pelintras da europa. De um dia para o outro, tudo o que tinham escrito já não tinha sentido e outras medidas se impunham. O que tinham dito ser possível e desejável para amanhã, passou a ser impossível e digno de radical rejeição. Agora, era claro que se tinha trabalhado mal e pouco até agora. E aos velhos de quem dizem que trabalharam mal e pouco, produzindo ruínas pouco competitivas, reclamam agora que trabalhem mais anos, sem esclarecer como podem fazer melhor do que quando faziam tudo mal.

Agora, ficaram tão espertos e atrevidos que dizem hoje de manhã o que devemos fazer amanhã para que tudo corra bem e desmentem hoje á tardinha as ordens que deram de manhã e já tinham provocado mudanças na nossa vidinha. E logo nos repetem a cada desmentido do que dizem que tudo sabem e tudo fazem pelo nosso bem, sendo que o nosso bem vai mudando todos os dias para pior.

Quem são eles? Uma parte de uma história verdadeira que ninguém conta e em que ninguém conta.

[o aveiro; 27/9/2007]

a varanda

De vez em quando, fico sozinho. Saio para a varanda de vento e fumo um charuto da herança de Estrela Rego. O tempo escoa-se enquanto traduzo (copio, manuscrevo) um livrinho de Teoria Axiomática dos Conjuntos. Para ler francês e escrever cuidadosamente símbolos, uns depois de outros, num caderninho pautado de capas pretas, para onde verto em português, de ano em quando. o livro de Krivine. O caderninho foi comprado numa papelaria da rua de entreparedes que já nem deve existir. Não há utilidade alguma nisto, mas não resisto a passar um teorema sempre que me lembro. Hoje salvei o caderninho e o livro das mãos afiadas da minha neta mais nova e manuscrevi mais um teorema. Não dá para mais que isso. Os dedos adormecem cada vez mais rapidamente. E tenho de voltar para o computador que me livra do formigueiro.
Tenho vários livros destes e, para cada um, um caderno. Nuns casos, do par, sobra-me o caderno. Noutros, sobra-me o livro. E ao dar com este ou aquele sei quantos anos se passaram desde a última vez, desde a última página. Mais ou menos, porque eu raramente escrevo as datas em que fiz e faço isto ou aquilo.

sobre as água, o olhar.

Sempre li com atenção especial as entrevistas a pessoas que respeito e os artigos crónicos escritos por pessoas que admiro. Dou por mim a concordar com os seus argumentos e, por vezes, com um estudo inteiro. Digo para mim mesmo que se concordo com a análise e até compreendo as suas consequências, para ser coerente, devo defender isto ou aquilo. Mas não.
Tenho dado por mim a acreditar nos profetas que admiro quando escrevem e dizem que mais vale atinar com alguma corrente para diminuir aspectos negativos de alguma acção ou reacção. Afectam-me especialmente os amigos que argumentam a favor de que o crescimento das cidades e das metrópoles, das redes de distribuição de bens (também culturais) tem um sentido único para onde somos levados como tralha sem utilidade para o futuro que parece querer ser o futuro de ninguém. Mais me aflige a ideia que a cultura popular só pode ser uma concertação comercializável em bolsa.
Mas é o nosso olhar sobre o descampado das águas que avista a nossa substância e o nosso espírito vive mais no que não fizemos do que nas grandes rodovias e construções que levantámos contra o céu. Das cidades que se juntam numa só cidade que é a nossa (Aveiro, Ílhavo e Gafanha da Nazaré, por exemplo), para a fala da alma, sobram-nos as coisas que sempre foram, como se não houvesse memória do tempo em que não eram. O mar, a prata da água, os canais, o lodo, os cricos, o isco, a pesca, o porto, o bacalhau, a faina, a companha, a arte chávega, o sal e os mercantéis, o junco, o moliço e os moliceiros são tudo o que reivindicamos como nossa matriz e mãe de cultura. Até os grandes negociantes (também da política), comerciantes e industriais ou empresários que vivem para o culto do betão, dos rasgões rodoviários e do movimento frenético para nenhures usam e abusam das palavras da matriz.
E, contra toda a razoabilidade da tal inevitabilidade, dou por mim a pensar que a única grande obra entre Aveiro e Ílhavo pode ser uma ciclovia sempre efémera, um caminho pedonal que nos aproxime da água e do que lá está como dantes estava. Nunca uma estrada e muito menos uma rede de ruas, casas e esgotos. Sempre que fazemos uma coisa onde estava outra, estamos a cegar-nos para o que deixamos de ver. A pior cegueira vive numa casa desnecessária.
Como oposição, apresento alternativa: não fazer disparates é o contrário de fazer disparates.

[o aveiro; 20/09/2007]

o fora de portas


passo todos os dias por aqui e por ali
e as ruas estão muradas
ou sou eu que passo de olhos vendados
para não ver mais que anúncios de venda
de pessoas e bens e coisas até


que hoje ali estava o anúncio mais belo e desejei intensamente
comprar a parede mais branca para que a sombra de nada
se veja num espelho de cal.

s. martinho de mouros

De vez em quando saímos da casca e vamos para um lugar tão distante a que possamos chamar remoto. Quando nos ataca o desejo de sair da casca, ficamos prontos para ir até onde está o exemplo que queremos inaugurar. E se lá chegamos, ficamos tão excitados que nem resistimos a dar uns murros no púlpito de onde pregamos ao mundo inteiro o sermão da excelência do exemplo inaugural. O exemplo inaugural serve sempre para inaugurar uma nova era - a era das coisas como devem elas ser para todo o sempre e enquanto nos lembrarmos do nosso actual ponto de vista.
Este ano saímos nas vésperas da abertura do ano escolar e fomos inaugurar a nova era num lugar não muito longe do lugar onde um presidente sardento tinha presidido a uma desinauguração da era do excessivo abandono do interior. Inauguramos o exemplo inaugural mostrando-o a todos quantos se deixem fascinar pelo que os seus olhos vêem.
Vizinhos felizes do exemplo inaugural, para todos nós, as distâncias são coisa pouca e poucas horas de vida serão gastas para chegarmos à altura do exemplo inaugural. Chegamos a pensar em organizar excursões de curta duração e visitas de estudo para admirar o exemplo inaugural replicável como um marco que assinala onde começa a nova era. Outros de nós preferem esperar um ou dois anos até que numa outra saída da casca nos dê para desinaugurar o exemplo que já era.
Um centro escolar moderno sempre é em qualquer lugar do nosso mundo um bom propósito e um bom tema de conversa. Mas sabemos que é um despropósito toda conversa fiada sobre o que seja o saber, a cultura, a educação e o ensino - humano e frágil lugar de espírito - como coisa intrusa que possa ser criação de uma forma de organizar o espaço habitável. Fora da casca, ímpossível é travar a língua.
Parecia uma nova era anunciada por figurantes numa passarela inerte? Passemos a participantes de uma nova era de ocupação dos nossos mais belos lugares e vivamos uma disciplina do espírito que nos poupe o sermão do exemplo inaugural que já era antes de o ser.


{o aveiro; 13/09/2007]

esquerda ou direita?

o que vejo quando



quando fumo o charuto da herança,
que espero eu ver da varanda?


só sei que uma nuvem de fumo
fica a pairar em volta e de mim
me esconde
e de mim esconde a vertigem
e a nesga de abismo.

o mês depois

Um mês depois voltamos aos mesmos lugares. Refrescamos alguns lugares que sabemos de memória. Ainda que o tivessemos desejado, os lugares físicos da memória não desapareceram e nós voltamos a eles tal como eles eram antes do abandono a que os votámos. Eles estão aí com mais uma pequena ruga ou estaladela a acrescentar dados seus à nossa memória deles.
Umas vezes, partimos a desejar que tudo mude. Outras, rezamos para que tudo esteja como dantes ao voltar. Mesmo quando as notícias nos deram conta de muitas mudanças. Nunca desejamos que venha um furacão que tudo arrase e, se vier, ficamos prontos para a reconstrução como se tudo tivesse de voltar a ser o mesmo, mesmo que seja para ser renovado logo que possível. As reconstruções raramente se fazem sem que das cinzas se erga uma imagem antiga que persiste no novo.
Quando nos refugiamos no outro lugar, damos por nós a procurar as notícias sobre o que quisemos abandonar. Fingindo não querer saber, vamos colhendo notas breves, que nos permitem chegar inteiros ao nosso lugar. Sem esperança, mas sossegados, porque sabemos que tudo continua na mesma, o que quer dizer reconhecível. Não fico contente ao ler uma notícia de uma grande patifaria mesmo quando a esperaria de quem a faz. Por ser uma grande patifaria que é sempre contra alguém e contra todos nós. Mas dou por mim a pensar que me sossega saber dos escândalos, das pequenas canalhices, das patifarias negocistas, dos argumentos estúpidos, do ridículo, ... E sinto que posso voltar ao meu lugar imperfeito. De certo modo, um lugar imperfeito é onde há sempre lugar para pensar na perfeição ainda que ela não seja deste mundo.
Voltar a casa é voltar a um país e a uma cidade que viveu os seus dias carregando pequenas grandezas, tolices grandes e pequenas e a miséria do costume. Para lidar com isso, lutando contra a miséria e insistindo na denúncia do mal para que este não se sinta em casa em lugar algum. Para que não se repitam os erros. Afinal nos golpes deste Agosto político e partidário não houve novidades de tal monta que envergonhem o passado do mal.
Voltar a casa, no meu caso, é também voltar à escola que tenta ser a mesma quando tem de ser outra, quando a velhice a obriga a retocar-se até deixar de ser a escola de antigamente. E é voltar às ruas de Aveiro, como se fossem os corredores da imperfeita casa que é a nossa.

[o aveiro; 06/09/2007]

é tarde

da boca para fora a palavra
coça no lugar da ferida
como uma demão de álcool
pinta a parede em carne viva

e um nó na garganta fecha o colar precioso
esse fio de cólera que desce do pescoço
até se perder entre os seios

como uma dor sem mãos.

Outros estercos?

Alguns dias por semana, sábados e domingos de Agosto, o homem e a mulher têm de dar comida ao porco. O porco enorme exige algumas refeições de confecção rápida. Uma lavagem especial de fim de semana para o porco da casa? Abóbora cortada sem grande cuidado para um balde sujo com restos de vegetais da cozinha humana, uma medida de farelo, uma couve e água e... já chega! A "suite" porcina consta de duas acomodações. Ao ar livre, sob um céu de parreira, um quadrado amplo para desentorpecer os pernis durante o dia. E um coberto murado com cama de palha fofa para as noites do porco, aconchegadas e calmas. O curral está integrado numa instalação onde há ainda espaço para guardar palha e utensílios e onde brincam galo com galinhas e adoecem pintaínhos.

De manhã, mal fica preparada a lavagem, o homem do serviço de quartos entra no curral. Pelo lado de fora, carregada de batatas, a mulher aproxima-se do recreio do porco, como se fosse preparada para uma pateada a um espectáculo. No cercado hoteleiro, o homem poisa o balde perto da porta do quarto do porco e, por um estreito corredor, entra no recreio. O homem vai abrir a porta do quarto de dormir para a varanda. O porco não tarda a aparecer e, grunhindo descumprimentos e impaciências, agita-se numa passada rápida. O homem sai do recreio coberto e, já no extremo do corredor, pega o balde. A mulher chama porco! a quem o merece e atira algumas batatas em forma de prémio, protesto ou projéctil à passagem rebolada do porco. A mulher chama o porco para o recreio, enquanto o homem despeja o balde da lavagem na pia ao lado da cama. Ainda o homem não saiu e já o porco chafurda a abóbora fresca, com total desprezo pela pateada de batatas. Modelos! - resmunga a mulher.

Cumprido o serviço do porco, o homem olha para as galinhas de que se fala pouco. Uma das galinhas parece manca. Onde estava um esporão e um dedo com garra aparecem duas mal-formações perturbadoras. O homem tenta agarrar a galinha e acaba com ela ao colo. Hesita, antes de tentar retirar o que impede a galinha de andar. Aquelas massas muito duras parecem parecem fazer parte das patas da galinha. Com força puxa e até parece que a pata se vai quebrar. O operador do milagre acaba com duas pequenas bolas de esterco muito secas nas mãos e uma ágil galinha a esvoaçar e a correr... sem lhe agradecer a cura.

Aconteceu mais alguma coisa?

[o aveiro; 30/08/2007]

61

o funil


ninguém como eu para coar a luz

o caminho


quem nos guia, guia a estrada
como quem desbrava, como quem lavra,
como quem procura o fim da linha:
um instante de descanso.

a conta do gás


ouvir o tempo como um grave escoar-se na ampulheta movediça:
de cima para baixo o vórtice de um quarto de hora de areia fina
na calha a cair como se houvesse vida por viver por ali em repouso:

ou respirar na água salgada é exercitar as guelras cardíacas
e é para salvar um moribundo que o turbilhão da água marinha
bate os músculos contra a bigorna até fazer brilhar uma lâmina?

uma lâmina que atrai a limalha desfeita em ar metálico
e trespassa o corpo de luz onde se perde e à dúvida:

ou, é como um turista que o pó de ferro viaja
até ser a ferrugem do pulmão do ferreiro?

armado de um garfo

dá-me duas boas razões para eu olhar por ti
abaixo ao velho pai bate o filho a porta do lar
de dia todos os gajos são pardos gaguejava
de dor que o garfo na falha de dente espetava


[
ninguém falava já naquela família diziam uns
para os outros isso não era novidade mesmo
há muito tempo que comiam sempre uma sopa
de legumes concentrados mudos e calados ouviam

o relato da história da família era um relato
de uma etapa da volta a portugal em que o tio
se tinha estreado na corrida de honra e despedido
numa vergonha que a urina da família desmerecia

tudo começava e acabava com a sopa e o relato
gravado durava tanto como a sopa pelas colheres
permaneciam para ali sentadas todas as mulheres
em silêncio nem rezavam nem deixavam rezar
]



dá-me duas boas razões para eu olhar por ti
e o passo em frente do pai sozinho esticava o dedo
o degrau avisava a campaínha e esta ainda a medo
desfazia-se no seu trimtrimtrimtrimtrimtrimtrimtri

o ministro que arfava nas frases curtas

havia um ministro ou um fato completo que mal sabia ler
e soletrava umas breves notas quando alguém as deixava cair à sua frente

do que eu percebia pareciam-me coisas que nada me interessavam
e por isso nunca dei importância alguma à falta de caco do ministro

até que aqueles comentários só podiam ser levados a sério por aqueles jovens
que suam optimismo sábio enquanto cospem as tendências da bolsa
como quem declama uma declaração de fé no próprio analista,
o obituário de um grande negociante ou de um poeta muito importante
descoberto postumamente.


ainda me lembro de se falar do responsável da imagem
do ministro, fraco a ler e a falar pouco,
célebre por tentar articular, em vez dele, versos épicos
sem imaginar que, para o interesse nacional, do fato completo
quem dera que falasse ainda menos que nada

desse tempo sobraram estas memórias

dito isso só espero que saibam que nada ficou por dizer.

a ordem descendente

tempos houve em que tudo corria em seu leito formal e até a lei
era feita para ser respeitada naquele país de rios obedientes
em que se falava de rigor todos os dias e e até à noite ao que sei

e houve até quem apontasse o país como exemplo para outras gentes
sabendo bem como apontar é feio.

em memória

quando o ar fica assim solto no ar em pedaços solto
e nós o vimos como vimos nuvens
mas sem cor
só o vimos porque é possível ver uma vibração
ver o ar que vibra no seio do ar quieto
ou pelo menos lento
capaz de resistir ao calor sufocante para o ar

ficamos a olhar
através do ar as densidades do ar

e vemos as caras de quem morreu
por estes dias

às vezes reconhecemos um poeta que gostámos tanto de ler
e é agora incapaz de nos contar a história
de novo
porque já não lemos do mesmo modo
ou já não lemos simplesmente porque sobrevivemos
e somos de outro tempo
onde se percebe agora que o olhar que demos
aos poetas que morreram sempre foi uma compaixão
que só pode ser dada aos vivos
e não resiste à morte

pois sempre posso dizer que morreram
os que li fascinado por não ter escrito aquelas linhas
que eram as únicas que queria escrever e já ali estavam
perante o meu olhar postas na mesa por outras mãos
e máquinas

pois sempre posso dizer que morreram
e agora que não voltam cabe-me a mim bordar a toalha da mesa
deixada assim como um pano cru sobre a mesa sem uma única palavra
desvendada
embora as palavras cubram toda a mesa de uma ponta à outra
se não as palavras as linhas as linhas da mão rasgadas pelo fio dos dias
de quem fiou o linho deste abandono de verão na casa velha

onde os talheres contam mais que as palavras para as mulheres que vagueiam
produzindo os sons os choques dos gumes das facas os toques dos pratos esbotenados
pelo tempo os toques dos guardanapos com monogramas de poetas mortos
que raspam a música nas argolas e se repetem quando a mulher indica o lugar
dispondo os guardanapos sobre a mesa ocupada por pratos e copos, facas, garfos e colheres
e só depois os guardanapos com o chamamento pelo nome de cada poeta
convocado para a mesa

os que morreram aborrecem a mulher pois têm de ser chamados repetidamente até se ouvir
alguém dizer já não está entre nós maria
passa a outro
se te lembrares do nome ou de algum verso que alguém tenha escrito em vez do seu póprio nome
de tal modo que seja o verso a ser lembrado em vez da cara

por ter os olhos demasiado claros não suportava a luz do sol e ficou escondido na sombra da nave
por ter os olhos demasiado escuros não há quem se lembre da cor dos seus olhos e que não se pode ver
e por isso sem nome
e há mesmo um poeta que anda por aí a voar no ar da sala grande

e para grande espanto dele ninguém o chama porque dele nem peso nem nome nem presença

as pessoas preferiam que o poeta tivesse morrido de morte natural por exemplo se tivesse afogado
a este fardo insuportável de saber sem aceitar que o poeta foi perdendo peso
à medida que ia perdendo os dias que lhe faltavam para a sua passagem aérea
a ar e fumo ou só fumo que viesse a ser a sua forma aérea
como nuvem
e forma de estar acima dos outros
persistente mania treinada em vida com palavras cordatas calmas e sossegadas sem acentos que as fizessem estalar o ar
como asas de anjo ternurento capaz de todos os enganos escondidos sob litros
de suave água de colónia

quem havia de dizer que ele tinha tomado banho em água de colónia
e que eram mentiras vergonhosas os seus poemas de banhos de amargura
e mal estar?

quem havia de saber disso?

por isso a mulher decidida punha a mesa e por ele não chamava e ninguém olhava para cima para os lustres da sala
onde empoleirado estava o poeta de que lera fascinado toda a obra
enquanto a juventude me abandonava dia após dia
por descobrir que o que escreveria estava escrito
irremediavelmente por alguém que viera antes de mim
e roubara das minhas mãos a verdade e a mentira
fingindo que elas erravam por aí à mão de semear ao alcance até de um romântico
de merda medíocre que nem mereceria mais tarde o chamamento pelo nome
para a mesa

os poetas nomeados em altiva voz pela mulher primam pela ausência
e é a mulher quem come um poema inteiro de carneiro sentada à cabeceira da mesa.

o tacto

os pratos.

o ar já foi distribuído pelos pratos
vê-se que está quente pelo vapor que se solta dos pratos
e da terrina

ainda não sorvemos o ar da sopa e já se desvelam outros pratos rasos de lágrimas

aqui não deixamos os poetas morrer
com falta de ar que se come e se bebe

já o ar de respirar nem para assunto de conversa é chamado.



as caçoilas.

na azáfama com as mãos embrulhadas no avental a mulher carrega
as grandes travessas de ir ao forno cheias dos restos das palavras
pelo fogo tatuados no ar suspenso
enquanto uma lágrima se solta ao canto do olho que vê nas cinzas a forma do poeta

a mesma forma marcada na cama como uma pegada de vento

aqui não deixamos os poetas apodrecer e sentados à mesa começamos a nossa oração
pela frase lapidar se havia de ser para a terra o comer...


o álcool e o fumo.

ele escreveu em cada um dos seus livros ardentes
que as refeições de despedida devem ser seladas pelo silêncio
da aguardente forte e do charuto que ele reservara para a despedida
assim ela se apresentasse

e caso ela não fumasse que alguém o fumasse.

a água candente

vermelho

a cor do agosto

O acordo de governo de Lisboa celebrado entre Sá Fernandes e António Costa (ou entre o Bloco de Esquerda e o Partido Socialista) é um acontecimento novo na política portuguesa. Não há nada de novo do ponto de vista do reagrupamento de forças à esquerda ou à direita já que houve antes concertos de esquerda para o governo de Lisboa e a vereação da câmara foi composta por vereadores de vários partidos. Surpresa perante o facto do independente Sá Fernandes ser vereador com pelouro sob a liderança do PS? Nah...

Novo é o texto do acordo tornado público: tão simples que não permite várias leituras, tão claro que faz saltar interesses instalados à esquerda e à direita. O problema para os críticos não pode ser encontrado na circunstância de Lisboa, já que o acordo fala de medidas elementares, de denúncia fácil se não forem executadas. O quê para o saneamento financeiro e o quê sobre quais empresas municipais, estão a ver? Sobre os transportes, assume-se a defesa do transporte público em detrimento do privado e uma simples medida de reserva de canal para extensão de uma linha de eléctrico, estão a ver? É claro que há assuntos que dependem de negociações com o governo ou ferem interesses que vão resistir por todos os meios. Os construtores civis portugueses não vão aceitar ser tão civilizados como os que operam em Barcelona, Madrid ou Nova Iorque e já começam a faíscar os dentes de ouro dos patos bravos contra a obrigação da quota de 25% para habitação a custos controlados tanto em novos projectos como em operaçoes de reabilitação, como contra a escolha da reabilitação do edificado em detrimento das novas construções. Estão a ver?
No que respeita ao pelouro do ambiente e espaços verdes, assumido por Sá Fernandes, não houve invenção alguma e promete-se que o velho Plano Verde de Ribeiro Teles vai ser vertido para o PDM, como molde vinculativo de futuro, enquanto são referidas, uma por uma, as acções a concretizar até ao final do mandato. Estão a ver?

Eu estou no acordo. Para ver fazer a parte de cada parte. E porque o que António Costa aceitou assinar, faz dele um político de respeito. Há muita gente à espera que falhe. Eu só quero que dê certo. Lisboa é gente e merece que um acordo assim seja respeitado em acções. Por todos. E que todos ganhem na medida do que forem e fizerem.

Por lá e ... por cá, também. Que cada um receba em dobro o bem que faz e dobrado castigo para o mal de que é capaz.


[o aveiro; 9/8/2007]

um dia destes

Um dia destes vou levantar-me para viver
E para que me escutem vou deixar de falar
E para que me leiam vou deixar de escrever

Porque estou cansado demais para emendar
A mão que escreve ou a voz que dói de rouca

Antes morrer de pé: no olhar na mão na boca

castigo

quando ela voltou eu estava virado para a parede
tal como ela me tinha deixado
50 anos antes

e para mim o mais fácil foi fingir
que estava tudo como dantes.

des envolvimento

O que mais me incomoda é a distância feita de desprezo e é, por isso, que muitos dos governantes modernos me parecem selvagens.

Educados para a compaixão real, feita de gestos tão anómimos quanto dirigidos a pessoas reais que se cruzam no nosso caminho, não atinamos com aqueles que falam dos desempregados como se eles não fossem nossos vizinhos e não fossem mais que unidades estatísticas. Não atinamos com políticos que justificam as suas políticas com um futuro radioso para todos os filhos dos que nem vislumbram o pão nosso de cada dia presente e menos ainda o futuro dos seus filhos. Não nos entusiasmam perspectivas de desenvolvimento se elas existirem em detrimento das pessoas reais, sem se fundarem e fundirem com pessoas realmente existentes.

Estes jovens governantes selvagens falam de pessoas em abstracto, livres de qualquer comoção humana perante as dificuldades das pessoas reais, ganharam uma falha de carácter e uma desmemória sobre os cíclicos descalabros da espécie até ao desprezo pelas pessoas reais quando elas são o contra-exemplo para as suas políticas. E enriqueceram.

Depois olhámos esses políticos como parolos a tentar agradar a patrões e a padrões estrangeiros. Habituaram-se a pensar em desenvolvimento e progresso como coisas neutras iguais para todos em todo o mundo e para os quais há uma só receita universal. Parecia-me uma desculpa inventada por tolos. Nunca me passaria pela cabeça que houvesse alguém tão tolo que pudesse impingir esta ou aquela teoria ou tese de uma ciência social como se fosse tese de uma ciência exacta, válida para o exótico e imprevisivel universo humano.

Nesta última semana, fiquei a saber pelas organizações não governamentais a trabalhar no Iraque, que, em nome da democracia, os políticos selvagens fizeram a guerra que lhes permitiu agitar o mercado que, mesmo selvagem, funciona bem até num país transformado num campo de batalha. As ONG não denunciam a falta de interesse dos países da coligação. Não. Dizem que eles estão a sacrificar grandes massas de crianças e adultos de hoje às suas estratégias de desenvolvimento. Fome e penúria mais extrema, ao lado do mercado florescente e, porta com porta, com a riqueza mais obscena.

Os políticos selvagens não reconhecem os seus pares humanos, não se envolvem. Eles são a favor do des envolvimento humano.


[o aveiro; 1/8/2007]

quem a vésper espera


aqui onde aves fazem uma algazarra de família
regressada a casa
ao fim do dia

espero a estrela da tarde
e imagino um sino que dobra um bater de asas

um instante a morte e a vida juntas

o que esconde, mostra-se

mau exemplo, mau é

Ainda na oposição, com os olhos na cadeira do poder, a um povo que se revia grego, Sócrates bradava garantias referendárias para as grandes questões. Também para as questões do tratado que estabelece uma constituição para a Europa. Dar a palavra aos povos tinha chumbado aquele giscardiano texto assinado então, em nome de Portugal, pelo fantástico Lopes de Lisboa. Passados poucos anos, Sócrates é um poderoso primeiro ministro de uma presidência europeia (em) investida contra referendos a uma nova versão de tratado agora destinado a ser votada nos parlamentos. Sócrates vem enaltecer a democracia representativa e lança anátemas aos que, por defenderem os referendos e a participação popular, diminuem a representação democrática e parlamentar. Opinião de sofista. Ninguém melhor que Sócrates para saber que a Assembleia onde o PS tem maioria absoluta foi eleita para defender o referendo. Pretérito mais que perfeito, imperfeito, condicional? Mudam-se os tempos para que futuro? Ninguém melhor que Sócrates para saber que o que apouca a democracia parlamentar são as palavras por cumprir, a falta à palavra dada, a desonra e a pouca vergonha.

Eles têm agora a espinhosa missão para nos convencer que tudo o que fazem colhe o seu valor nos resultados futuros, nos maravilhosos frutos do exercício do seu poder. Os fins, os fins, os fins justificam os meios. Se perdermos tempo a discutir, perdemos eficácia, competitividade, a oportunidade de ouro, etc. E já há quem queira ver assim e ache coisa pouca a participação popular mesmo quando ela foi prometida em troca da maioria cor de rosa. Até porque ela é tão pobre! Não é? Não é tão evidente?

Nestes tempos de comunicações rápidas, para uma parte dos nossos políticos, até a participação (que não se puder dispensar) pode ser representada por figurantes recrutados entre velhinhos da província que aceitem pagar uma excursão à capital com uma hora de bandeirinha em campanha de autarquia de costa ou entre jovens que, bonitos, empenhados e bem comportados pela mão de uma agência de modelos, aceitem vender-se por 30 dinheiros ao serviço da ministra da boa (?) educação tecnológica. A ministra acha que isso é nada quando comparado com o anúncio tecnológico. Mau exemplo, má educação democrática são pequenos nadas, sendo tudo.

Ainda que tenham bom aproveitamento como eficazes figurões tecnocratas, nunca lhes perdoaremos o mau comportamento como democratas.


[o aveiro; 26/07/2007]

Santiago


A ignorância e a tristeza
não olham como eu olho para a beleza.

Santiago

As pessoas que passam sem ver a cor da rua
não caminham para a luz



e a sua vida finge carregar uma cruz
que nem existe ou não é a sua

A fortuna dos dias

Abro a caixa do correio todos os dias mas há dias em que a fortuna me bate à porta: Hoje recebi "A fortuna dos dias" de José Vicente Lopes. Um abraço apertado de Cabo Verde.

vegetal doméstico

criei-te como quem cuida
de um girassol doméstico:

água e horas de parapeito

e persianas de correr: ora
luz ora sombra para te ver
o pescoço esguio rodando

em movimento lento, vegetal.

o que sobe, cai

Um homem seguia pela vereda, incomodado com os silvados a roçar-lhe o fato. Com o cotovelo levantado, protegia a cara dos ataques. Entredentes, não parava de falar de si mesmo para si mesmo. Um pouco atrás, a mulher caminhava ligeira. Sorria para dentro. Parecia que lhe dava algum prazer a atrapalhação do homem e não conseguia esconder a satisfação. Isso era o que me parecia enquanto olhava para baixo a vê-los, subindo encosta acima. A certa altura, do meio do matagal, vejo sair o garoto. Pareceu-me ver o homem embaraçado pela finta do garoto. Não tardou muito, aos meus ouvidos chegavam os palavrões do homem, os gritos do garoto e a gargalhada feminina cantada por cima dos palavrões e gritos. Pouco depois, deixei de os ouvir e também deixei de os ver. Tinham entrado num daqueles túneis vegetais que as veredas nos reservam. Não me preocupei e fiquei à espera de os ver reaparecer mais perto do cimo do monte, onde me encontrava. O tempo fez-se mais lento e dei por mim a preocupar-me. Não me parecia que pudessem ter tomado outro trilho diferente daquele em que eu os vigiava. Porque terão deixado de falar? O que aconteceu ao garoto? Que é feito da gargalhada da mulher para as costas do fato tão inadequado para a subida montanha acima? Parecia que a terra os engolira naquela curva da vereda. Já começava a desesperar no meu posto de guarda, quando os vi ao longe seguindo pela vereda que dava uma grande volta, para poupar na subida inevitável. Verifiquei que a partir dali, onde eles reapareceram, o trilho se alargava e aparecia desenhado como um risco em volta da montanha. Se o pudesse ver de mais alto, pareceria uma escada em caracol para o céu que o monte arranhava. Contente por voltar a vê-los de novo, fiquei preocupado ao constatar que me veriam ao passarem por aqui. E tinha razões para temer que reconhecessem a cara da campanha de todas as promessas.

Ainda nem tinham chegado ao cume do poder, já o homem perguntava: “Sócrates?” E, sem pausa, a mulher atirou certeira: “Vens pagar alguma promessa?” Não me lembro do que se seguiu. Disseram-me depois que o garoto, que nem me conhecia, enquanto me empurrava, repetia: “Prometeste, subiste!... Mentiste, não cumpriste e...caííííste!” E mais nada!

Porque é que o homem me chamava pelo nome de um grego?


[o aveiro; 19/07/2007]

alta voz!

Finges que não os vês quando passas
mas sabes que eles vagueiam por aí
porque lhes aconteceu mais cedo
o que bem pode acontecer-te a ti.

Ai, quem sabe se não foi um simples "não!"
que lhes mandou o emprego pró caraças!

Pelo sim pelo não, à força do hábito ou do medo,
vergado, tudo farás às ordens do patrão.



Se todos sabem o que não esquecem,
porque é que os que mandam e os que obedecem
consultam de novo a lista dos tiques da servidão?

podemos rezar


a luísa seguiu pelo corredor até à sala de memórias,
aí chegada, correu as persianas até fechar os olhos
e rezou pelo passado

até ter a certeza que dele só sobram restos
das traças

o que nem as traças encontraram.

poeta


a luísa escreve do passado, o branco
sobre o branco:

e espera alguém que leia uma parede branca
em cal viva


uma morte em carne viva
uma prece.

o que eu vejo


o que eu vejo quando olho pela minha janela
é só o que existe
e é igual todos os dias desde que me levanto:

não preciso ver nem saber mais para ser triste.

dispor as pedras


a luísa encostou-se à parede em frente da janela
e atirou certeira as pedras com seus riscos

de tal modo que elas cobriram as suas sombras

e nem sobrou a sombra que cai como a tarde cai até ser noite