torga que cresce

cada um

és a tua história:
aquela que guardas
em gavetas da memória
até formares a nuvem de palavras
cuspidas como uma corrente de ar

gelado como o corpo da tua voz.


és a tua história:
aquela que ouvimos soltar-se da tua boca
e vemos palavra a palavra
pendurada no arame esticado
de um estendal de rua

ou sobre o abismo a cabeça a caminho da lua

a viagem

a santa mulher oscila e imagina
que é o passeio da rua que oscila

um santo homem da mesma viagem
olha para ela e sorri no olhar

um abraço abre os braços dos dois
que desatam a rir desfeitos no ar

que nuvem os leva? o crente diz
que nuvem assim é feita de dois

a chave da porta de saída

Ainda há pessoas. Cada pessoa, na sua cidade, vive rodeada de pessoas. A cidade de cada pessoa é, em primeiro lugar, a sua vizinhança. Pelas ruas em que passo, há muitas pessoas que conheço e me reconhecem. Em alguns momentos do dia a dia, muitas mais há que não conheço nem me conhecem. De certo modo, ao passar pelas ruas da minha vizinhança, eu sei quem não conheço. De vez em quando, sou assaltado por dúvidas ou estranheza a respeito de uma cara. Talvez porque a tenha visto muito frequentemente na minha vizinhança. A minha vizinhança é visitada por muitos estranhos a ela. Claro que, a certas horas do dia, é como se estivéssemos a ser visitados por automóveis e é como se não víssemos pessoas.

Ainda há pessoas. Quando ficamos cercados por automóveis, ficamos cercados por pessoas que não vimos. E elas também não olham para as pessoas daqui, porque vieram cheias de pressa ver qualquer outra coisa e anseiam ir embora para as suas vizinhanças. As nossas ruas mais frágeis ficam esburacadas em pouco tempo, pelo peso das pessoas que chegam e partem velozes. Quem manda na cidade, deve saber disso. Mas adia a reparação das ruas que não são as suas ou não são as ruas dos que têm poder para mandar nos que mandam fazer. Ainda há pessoas. Mas nas ruas da minha vizinhança, não há pessoa que tenha poder para mandar fazer. O único poder que resta à minha vizinhança é o de falar ou escrever a dar notícia.

Ainda há pessoas. Há políticos que são populares e reconhecidos pelas pessoas, porque as recebem, deixando que elas falem e dando a entender que as ouvem. Ainda há pessoas que esperam mais do falar do que a fala e esperam mais das pessoas com quem falam do que das nuvens a quem rezam. E que há mais desencontro que encontro em políticos que ouvem e falam sem tomar devida nota de coisa alguma, sem dar acção às palavras que ouvem e ainda menos às que falam. Ainda há pessoas que pesam as palavras que dizem e pesam as palavras que ouvem. Ainda há pessoas que sabem o peso do nada feito sobre o tudo nada dito.

Ainda há pessoas que (pres)sentem nas palavras ditas em infindáveis (des)encontros a maldade de quem pode estragar e adiar a vida dos outros como se a vida dos outros fosse coisa pouca. Ao mesmo tempo que, maldosamente, fingem uma simpatia sem limites de tempo para as dificuldades verdadeiras, engraxam e criam facilidades instantâneas aos grandes negócios e negociantes que não podem esperar.

Só que ... ainda há pessoas a achar que estes políticos são "estranhos" em qualquer lugar do mundo.

[o aveiro; 12/06/2008]

a oficina

o tempo todo a estudar matemática e lógica e disso só me sobrou uma melancólica dúvida quando escrevo.
hesito entre - disso, não sei nada!- e - disso , sei nada!

raqueu zangado?


como sou visto pela raquel?

a mão esboçada

a disciplina do regime

No âmbito das comemorações da passagem dos 40 anos sobre Maio de 1968, para uso escolar, realizou-se uma sessão em que se relatavam acontecimentos históricos da década de 60 (do século passado!) e, relativamente a algumas questões, os jovens apresentadores questionavam pessoas presentes que representavam papéis previamente distribuídos. A mim, cabia-me o papel de dirigente associativo ou estudantil e devia responder, nessa qualidade, com uma opinião sobre a repressão policial da época.
Pareceu-me que esperavam de mim que falasse da PIDE, das prisões e torturas de militantes políticos, da tropa de choque e da violência policial contra manifestantes e activistas, contra grevistas, etc...
Eu tinha aceite esse encargo. De facto, parece-me muito educativo, para os jovens que a não conheceram, (d)enunciar os aspectos da violência policial do antigo regime contra todo o tipo de iniciativa popular que escapasse ao seu controle e o pusesse em causa. E isso acabei por fazer, pelo menos em parte, denunciando a proibição e a repressão das movimentações populares, atropelos a liberdades e elementares direitos de associação e manifestação, com descrição breve da situação do movimento estudantil de Lisboa, Coimbra e Porto.
Mas acabei, sem que tal fizesse parte das minhas intenções iniciais, a diminuir a importância da repressão policial do regime fascista, exercida com particular violência contra militantes e activistas que com ela contavam, para dar toda a importância à mobilização forçada de todos os mancebos para a guerra colonial. Reclamei uma importância especial para essa violência que tocava todas as famílias portuguesas mesmo que não tomassem acção, nem manifestassem qualquer desamor ao regime. A guerra mais suja é aquela que se dirige indiscriminadamente contra todos os que, de um lado ou de outro, se tornam parte activa quando percebem, longe de todos os seus, que é matar ou morrer. Sem querer matar e sem querer morrer, sem saber matar e sem saber morrer, de cada uma das famílias portuguesas de cada uma das mais pequenas localidades, vimos partir jovens que regressavam velhos vivos, estropiados mental e fisicamente, ou mortos para sempre jovens. De Angola, da Guiné, de Moçambique. Sem querer matar ou morrer, outros partiam para o estrangeiro sem esperança de regresso.

Dei por bem gasta a minha voz contra a guerra colonial que o regime colonial travou também (e principalmente) contra o povo português.
Abril e Maio cheiram a liberdade. E eu gosto.

[o aveiro; 29/05/2008]

obra de escola


detalhe de obra de estudante da escola josé estêvão, em exposição de maio 2008

obra de escola


detalhe de obra de estudantes da josé estêvão, em exposição de maio de 2008

a primavera das escolas

Esta é a semana em que entramos sorrateiros na nossa escola dos outros.

Trabalhamos por ali todos os dias da nossa vida, mas conhecemos uma pequena parte da escola. Vivemos uma atrapalhação, no dia a dia, cheia de pequenas coisas que não funcionam a pedir-nos irritações e grandes exaltações em vitórias sobre pequenas coisas ou em alegrias partilhadas pelos olhares de quem se junta com vontade de ensinar ou aprender a tentar resolver problemas comuns. Trabalhamos ali todos os dias, mas raramente damos pelo que cada parte faz.

Até que alguém aparece a mostrar aos outros o que fazemos da nossa vida. E é na escola dos outros, que não conhecíamos e estava ali à mão de semear, que encontramos a razão para acertarmos o passo com a nossa vida que vale a pena. Corremos atrás da experiência dos outros, das pinturas dos outros, dos poemas e dos contos dos outros, dos prémios que os estudantes ganharam e merecem, ... da vida escolar a mostrar-se em todo o esplendor. Há quem diga que tudo isso pode ser nada, que é alguma coisa podendo ser outra muito melhor, que isso não compensa os dias de desamor e desencontro que a escola pode ser e é. Mas, para mim, estes dias valem tudo o que podemos valer e nós só mostramos o que de mais luminoso temos para mostrar. Muitas outras coisas que valem a pena não cabem nestes dias de luz, isso sei eu, contra mim falo, que tenho grande experiência no jogo das escondidas escolares.

Uma parte do que vemos em volta do dia da Escola José Estêvão tem a ver com comemorações dos 20 anos passados sobre o Maio de 68. Mas tem a ver com exposições dos alunos de artes e com apresentações públicas dos produtos da Área de Projecto de alunos do ensino básico e do ensino secundário. Há alguma coisa de prodigioso em cada um dos pequenos acontecimentos que aparecem ao virar de cada esquina. Nós que, dia após dia de labor, vasculhamos para determinar avanços ao nível dos conhecimentos adquiridos e demonstrados em provas e afins, espantamo-nos agora perante a escola das competências em acção, essa escola que é um salto, uma soma de pequenas invisibilidades a recortar-se em detalhes destes dias de luz. E transbordam em animação.

Esta animação, que acontece em cada escola, é o ânimo de que cada escola precisa para se continuar, para se confirmar como uma parte criativa e activa da comunidade. Engenho e arte, afinal.

[o aveiro; 22/05/2008]

obra de escola


detalhe de obra de estudantes da escola josé estêvão, maio de 2008

desenho, logo existe

desenho, logo existe

viagens como presentes

Estou cansado demais para algumas viagens que a vida me reserva. Mas tenho de reconhecer que o mundo está mais pequeno e que me sinto muito confortável quando tenho de me deslocar ao Porto e a Lisboa. A experiência tem demonstrado que posso confiar nos horários dos comboios nessas deslocações e a minha velhice dá graças por isso. Na última semana tive de ir a Lisboa a uma conferência sobre o ensino da matemática em Portugal e devo agradecer a quem teve a paciência de me levar até lá e de me devolver a casa no fim da coisa.

Nem tudo foi assim tão fácil e lá tive de me levantar na madrugada de sábado para ir até ao Alentejo para onde me guiei o melhor que soube. Levei-me como professor com cabeça para o Alentejo e voltei agarrado a um pão com cabeça. Trocas vantajosas, penso eu.

Nos outros dias da semana, viajei entre a escola e a livraria da Universidade onde, por uns dias, esteve em visita a Exposição ‘Experimentar a Matemática’. Três peregrinações a pé, pela manhã de Aveiro, pelos passeios bordados de árvores entre a Escola José Estêvão e a Universidade. Ida e volta, em boa companhia. Alguma marcha forçada temperada pelo convívio, alguma desconfiança natural até à alegria das experiências e das descobertas a exigir a imposição do regresso inadiável. Coisas simples que ajudam a Matemática e a Ciência. Uma experiência significativa, realizada com êxito, vale mais que mil orações de sapiência. Não me canso de lembrar que os novos meios criados no nosso tempo e expostos para serem experimentados são do domínio dos prodígios para as pessoas da minha idade e do domínio da necessidade que precisamos de entusiasmar nestes dias. Tenho tanta pena de não saber nem poder realizar todas as viagens que é preciso fazer com os jovens.

Reconhecemos (e agradecemos) aos professores e monitores, que ajudaram os jovens na sua viagem experimental, a virtude magnífica da alegria científica de quem gosta da viagem. E a quem não viveu em visita a experiência matemática recomendamos a visita virtual em http://www.experiencingmaths.org. e a http://www.atractor.pt ou às exposições da Associação Atractor, no Porto, ou no Pavilhão do Conhecimento, em Lisboa. A Matemática também mora em viagens que não cansam.


[o aveiro; 15/05/2008]

a ponte

do que não existe como detonador

Pelos nossos jornais, ficamos a saber que um furacão devastou a Birmânia e sabemos que ninguém sabe a dimensão da tragédia, quantos são os milhares de mortos ou os milhares de desaparecidos. Pensamos mesmo que não houve quem, a mando da ditadura militar, se tenha dado ao trabalho de contar. Qualquer número serve. Se formos a um mapa deste tempo, nem encontramos a Birmânia. As pessoas do meu tempo lembram-se da palavra e é por isso que os jornais portugueses falam da Birmânia e não de Myanmar. Algumas pessoas podem ter ouvido falar de uma frágil mulher birmanesa que lidera a resistência contra o regime militar. Se o país que já nem é o mesmo nome, não tem birmaneses que possam ser vítimas de um furacão. Como chamaremos hoje aos que nomeávamos como birmaneses? Não sei. Onde fica Rangum? O que pode ter sobrado como desolação? Quem, sendo de longe, viu de perto o que aconteceu, disse que nem bombeiros, nem exército, nem quaisquer autoridades apareceram para socorrer quem pediu socorro, como se houvesse a ausência de estado a somar à desolação. Que podemos esperar de uma ditadura militar omnipresente para a opressão?

Um outro furacão está a varrer o planeta, todo o planeta. A subida dos preços no sector da alimentação mundial é o furacão, a maior tempestade. A subida dos preços do petróleo tornou apetecíveis (lucrativos, diga-se) muitos produtos alimentares tornados matérias primas para a produção de combustíveis. E todos demoram eternidade a decidir se os estados devem intervir na regulação forçada do mercado ou se devem deixar o mercado dos especuladores funcionar, que é o mesmo que espalhar a fome a nível mundial, a devastar florestas, a acelerar mudanças na produção agro-alimentar que já não alimenta bocas humanas e se tornou em mais uma prova da voracidade da besta que não hesita em devorar a humanidade. A besta está a devorar florestas e a assistir às marchas de esfomeados e desempregados com a satisfação de quem vê entrar homens nas bolsas de disponíveis para o trabalho escravo, em troca da côdea, sem lhes ver o crispado coração, o punho cerrado.

Cada um dos constituintes da besta garante que não é parte da besta. Ninguém é o que parece. Estamos em Maio, mês do furacão. Aos poderosos, recomendamos uma visita de estudo ao museu de história natural das devastações. Saibam que tão temíveis são os que nem existem como os que resistem.

[o aveiro; 08/05/2008]

eu nunca fui a santiago

eu nunca fui eu mesmo.
eu nunca fui.

eu nunca caí em mim mesmo.
eu nunca caí.

eu nunca fui a minha casa.
eu nunca fui a casa.
eu nunca fui casa.
eu nunca fui.

eu nunca fui a santiago.
pelo meu pé
a minha mãe levou-me a fátima
com ela e com santo andré
contando quilómetros
pelas contas do rosário.

para voltarmos ao mesmo lugar
que já não era o mesmo lugar
eu tinha deitado fora uma a uma
as contas do meu rosário


e não era preciso porque o regresso
foi um sonho solto numa camioneta

estação do tgv - quem foi que disse?

como chuva na face

o homem planta uma árvore
bem presa por raízes à terra

e por cada árvore do homem deus

é uma árvore de água
ansiosa por ser nuvem
e deixar-se cair nos braços
da árvore do homem.

frágeis muito frágeis
são as raízes nos céus

dentro de muralhas, a vida...

Andam nisto há várias semanas e já bem podiam ter acabado a obra. Mas eu dou-lhes o desconto do vento e da chuva. Dou-lhes o desconto todo, aliás. Andam a rebaixar os passeios ali aos semáforos junto à Junta da Glória. Para melhorar a vida de cada um de nós nos dias em que temos dificuldades para nos deslocarmos ou nos dias em que viermos a ter dificuldades. Dou por mim a ficar todo contente com cada pequena obra daquelas que valem como pequeno sinal de humanidade inteira. Claro que ainda há muitos obstáculos a remover para nos sentirmos bem uns com os outros.

Os vizinhos queixam-se que o excesso de trânsito degrada muito rapidamente estas ruas que foram feitas para trânsito residencial e acabaram num frenesi de vizinhos de uma escola superior de fim de tarde. Os vizinhos da Chave queixam-se dos buracos, inevitáveis sabemos agora vendo o trânsito de todos os dias úteis. Falo disso hoje, que é um dia de paz por estes lados, sem os carros do costume.

Sobra-nos um ruído de festa ao fundo. Isso até que nem nos incomodava coisa alguma se não tivessemos de ir a outros cantos da cidade e darmos com pequenos bandos de estudantes - a verdade é que somos lésbicos - tão engraçados a escrever disparates machistas quanto tolos a pavonear-se ainda bêbedos nas esplanadas matinais quando estamos a ir para o trabalho num passeio de olhares resignados de quem está nas paragens tremendo por um autocarro que os abrigue do vento frio na falta do abrigo de um vidro que ainda ontem lá estava.

Lá mais para baixo, alguns pequenos comerciantes queixam-se de que uma taxa cobrada para fazer face ao problema dos resíduos sólidos urbanos passou de 4 para 8 euros de um dia para o outro. Queixam-se ainda mais da resposta da Câmara que lhes responde que só pagavam 4 por ter havido um erro dos serviços e estavam por isso a ser beneficiados. O que a vereação da Câmara deve saber é que os pequenos comerciantes viram aumentadas para o dobro as taxas, sem apelo nem agravo. Não resolve problema algum dizer que havia um erro que lhes dava um benefício que nem conheciam. E não devem os pequenos comerciantes da cidade receber algum benefício de sobrevivência, dentro das muralhas cercadas por grandes mercadores a toda a volta? A bolsa ou a vida?

Contente? E descontente. Dentro de muralhas, a vida.


[o aveiro; 02/05/2008]

cerca de mim

Cercavas-me
para que eu me rendesse
dentro dos teus muros altos
como abraços

ou fugias pelas veredas
mais estreitas
como o mar
corre a afogar-se num braço da ria

e lá chegado
virasse do avesso o barco do céu
em jeito de brincadeira a água

levantasse o corpo no ar cheio

varrendo a lua ao espelho num charco
eu transbordante.

O problema pessoal

Para ser boa, a nossa vida deve estar cheia de diferenças de opinião. Não gostaria de viver numa bolha qualquer em que todas as pessoas partilhassem das mesmas opiniões e dos mesmos gostos. Reconheço os meus vizinhos e os meus amigos pelas diferenças. Tenho amigos que em tudo pensam diferente de mim. Penso eu que assim é. Cruzo-me com alguns deles em discussões sobre matemática e sobre ensino e discuto com eles, como se a discordância demonstrada fosse mais um sinal de amizade. De certo modo, sabemos que procuramos mais a verdade (essa a que não existe) do que a unanimidade. Ficamos contentes quando descobrimos que em alguns pontos estamos de acordo ou que, pelo menos, procuramos por caminhos diferentes alguma coisa de fundamental que tem sempre a ver com o bem comum (esse que ninguém sabe o que é, mas existe para ser perseguido por pessoas de bem). Perante as gargalhadas, os abraços e a conversa mansa antes e depois das nossas vivas discussões públicas, pressentimos a perplexidade das pessoas que pensam ver problemas pessoais onde há diferenças de opinião. De certo modo, estas pessoas diminuem a amizade, a individualidade, a opinião, o respeito por quem nos merece respeito. Diminuem-nos.
Se eu tenho uma opinião política diferente de outra pessoa, isso traduz-se ou pode traduzir-se numa divergência política. Nada é mais natural e nada é mais saudável. Há quem pense que só temos opiniões diferentes porque há problemas pessoais. Isso acontece a pessoas convencidas da universalidade das suas ideias, que, na tirania da sua bondade permitem problemas pessoais como desculpa para não terem eliminado os mensageiros das ideias não previstas na doutrina.

Tantas são as pessoas que eu conheço espalhadas por tantas ideias que não partilho, que comigo defenderam as mesmas ideias noutros tempos, que me ensinaram a dizer não e a dizer sim, que me deram voz e deram sentido à minha voz própria e diferente. Tantas são as pessoas que respeito e em que me reconheço porque das suas ideias me separei sem que elas deixem de ser algum esteio do que sou porque sou o que fui, o que fui sendo.

Na madrugada desta terça feira, morreu Francisco Martins Rodrigues. Tiro-o da penumbra como nome, o seu nome próprio para que possa ser procurado. E encontrado.

[o aveiro; 24/04/2008]

a conta dos nervos


a joaninha decidiu não partir daqui. eu bem reclamo a liberdade dela e reclamo que parta para que os outros acreditem na liberdade de que falo. só que a joaninha decidiu gozar a sua liberdade mesmo por aqui e não há quem a convença a partir. muito menos eu.
durante alguns dias senti-me mal com a situação e andei envergonhado a esconder-me das pessoas que não acreditaram nem acreditam que eu abri a jaula da joaninha. é verdade que eu tinha tonado pública a minha obsessão pela joaninha e dizia aos sete ventos que a joaninha estava comigo por gostar de mim. tinham-me ofendido todos quantos pensavam que a joaninha não se ia embora por ter pena de mim ou por a ter ameaçado de alguma maldade caso ela partisse e me deixasse só.
eu não me cansava de lhe perguntar se ela algum dia tinha pensado em abrir asas e voar e de lhe dizer que nada faria para a impedir quando desejasse partir embora ficasse de coração partido.
acreditem ou não, para acabar com os mexericos a respeito da minha obsessão doentia, acabei por ser eu a pedir-lhe que partisse, que voasse para bem longe de mim.
já não falo com ela, mas ela porta-se com sempre só que eu agora dou pelos pequenos factos a que não dava importância: ela também não fala comigo, mas há quem diga que sempre foi assim. e que nem podia ser de outra forma.

Ouvir o olhar

A cada minuto, o escaravelho abria um pouco as asas para voltar a fechá-las e a fechar-se em copas. Eu tinha os olhos postos em cada um dos seus movimentos e se é verdade que eu não queria complicar-lhe a vida, também é verdade que estava disposto a lançar-lhe uma rede por cima se ele decidisse voar dali. Eu precisava dele ali. Talvez ele nem soubesse que eu estava ali para o observar. Não, não estava a usar qualquer lupa. Mantinha os olhos fixos no escaravelho e nada mais.

Quando abria as asas, deixava ver uma combinação de transparências. Talvez asas, talvez novos pares de asas, por sob aquelas asas de carapaça. Talvez abrisse as asas para verificar a humidade e a temperatura do ar ou para condicionar a temperatura do seu próprio corpo. Não sei. Aliás, eu sei pouco de escaravelhos. Para ser sério, eu sei pouco de quase tudo.

Desde há muito tempo que me dedico a observar os bichos. Incapaz de compreender os seus comportamentos, as suas manias e ainda menos as relações entre eles. Não foi sempre assim. Mas, à medida que me concentrava na observação dos hábitos dos bichos percebia como era impossível entender o que se passava nas cabeças deles. Houve um tempo em que me dediquei a estudar com grande afinco as comunicações entre os bichos mais barulhentos, mas nem percebia o interesse e o alcance da maioria das expressões faciais, ruidosas ou palavrosas de alguns bichos mais activos e ainda menos percebia as reacções (palavrosas ou não) de resposta dos bichos interpelados pelos primeiros. E fui desistindo de tentar compreender qualquer comunicação entre os bichos para além da dança, do movimento, da animação das asas e das hastes. Dei por mim a ser um observador fascinado pelas pequenas agitações na vida dos outros bichos.

Hoje preciso do escaravelho. Como observador interessado preciso do escaravelho; a pequena agitação das suas asas e hastes determina os movimentos dos meus olhos, únicos sinais de vida no meu corpo, rígido e tenso em tocaia.

Sem tirar os olhos do meu escaravelho, vejo chegar uma multidão e os olhos não dão para acompanhar tanta agitação. O meu escaravelho agita um pouco as asas e as hastes, mostrando as suas combinações de transparências, apaziguado pela compreensão da multidão.

Eu só observo. Os meus olhos precisam de uma lupa para ver ao longe. Sem a televisão não posso ver o que se passa no Funchal. Dou por mim fascinado a ver as pequenas agitações do Funchal. Antes ouvi com cuidado Alberto João Jardim, a sua alta voz. Ao observador não amofina não compreender.


[o aveiro; 17/4/2008]

os dias miudinhos

Gosto de chuva miudinha nos dias em que me viro para o lado da tristeza simples. Olho para o que acontece e se o que vejo acontecer ou me vem à memória não dá nem para grandes alegrias nem para grandes tristezas dá-me uma vontade de chuva miudinha que me feche num asilo de melancolia. Deixo-me abandonado. E deixo que os olhos vão lá para fora jogar às escondidas com a chuva triste e miudinha. A água anda por aí no ar como se ar fosse. E é como se me fechasse numa bolha onde só pudesse respirar a humidade, uma asfixia lenta.

Vagamente chegam-me farrapos de um debate sobre pontes e cidades gémeas, região multipolar, rodovia, ferrovia, aerovia, etc. Vêm de ontem os farrapos. Surgem-me as palavras embrulhadas em neblina, como fantasmas futuros rompem a chuva miudinha.

Leio que o Tribunal Constitucional ditou para o passado do concurso dos professores titulares um defeito, uma inconstitucionalidade, uma violação da igualdade no direito de acesso. Mais uma declaração de defeito, entre tantas outras. São os erros que se repetem mais vezes? Ou há mais gente a ver os erros de conveniência? Será que há erros plantados para serem vistos na floresta dos pequenos enganos e grandes engulhos?

E leio, seguindo um julgamento de coisa antiga, a humilhação de uma praxe em que uma jovem pode ser barrada com bosta e pode ter a cabeça mergulhada em penicos numa quinta de propriedade da escola agrária, afastada do centro da cidade.... E basta ler o riso das bestas e a descrição das coisas em que pensam para percebermos que alguma coisa funciona mal. Pior ainda se nos lembrarmos que ainda há quem ache normal soltar a besta desde que ela more nas universidades.

E passamos dos actos às palavras, dos actos aos atos, dos factos aos fatos, das palavras mais pesadas que os actos, das palavras sopesadas pelos que discutem acordos e desacordos orográfica e ortograficamente falando de coisa nenhuma. Em vez das palavras, a baba das palavras. E uma flor de calor poisada na língua brasileira. E a pérola nos dentes que colam as palavras que nós antes separámos. E os nós de nós na segunda pessoa do plural. Vejo chegar a discussão como se um príncipe da língua odiasse a língua da princesa, estrangeira só até às descobertas.

Há dias assim que se soltam do ar para dentro da vida como chuva miudinha. Sentimo-nos levemente tristes, desassobiamos, esquecemos as chaves de casa, deixamos que as palavras mais caras nos caiam das mãos e se partam. E damos por nós a colar, com a pastosa chuva miudinha, palavras partidas, noites fendidas por faíscas luminosas, cacos.

[o aveiro;10/04/2008]

encontro empolgante, precisa-se!

As sociedades modernas ou desenvolvidas científica e tecnologicamente precisam de trabalhadores científicos. A Europa precisa deles aos milhares. Portugal corre riscos sérios se não participar desse movimento de criação de empregos científicos produtivos. Todos sabemos isso, conhecemos as metas a alcançar e os prazos apertados.

Muitos dos empregos científicos dependem da matemática. Sabe-se que uma grande parte dos empregos científicos e técnicos exigem fina especialização em matemática, mesmo considerando que uma parte do trabalho produtivo trata da manutenção dos sistemas e que o essencial da coisa terá de ser assegurado por equipas multi-disciplinares, cada um dos cientistas e técnicos carece de formação matemática de elevado nível.

Há vários anos que os melhores estudantes de matemática do ensino secundário estão a ser atraídos para especialidades científicas, como medicina, arquitectura ou até enfermagem, e não vão para os cursos que mobilizam matemática ao nível mais elevado.

Perceber-se o desespero dos profissionais de matemática (em geral, professores do ensino superior nos departamentos de matemática e faculdades de ciências a leccionar cursos superiores de matemática e engenharia) que só excepcionalmente estão a receber jovens de alto rendimento em matemática e têm dificuldade em transformar a segunda escolha que lhes coube em sorte em estudantes capazes para o nível superior de proficiência matemática que se espera de candidatos a emprego em áreas dependentes da matemática a nível elevado, incluindo professores de matemática.

Já não se percebe que os trabalhadores científicos deixem de exercer pressão contra a degradação das profissões científicas dependentes da matemática que as tornou pouco
atractivas e, em vez de contrariarem essa fraqueza, antes procurem um bode expiatório no ensino secundário geral que, em si mesmo, tem de dar resposta social ao nível da cultura científica e da formação genérica dos cidadãos e não pode ser substituída por resposta parcelar exclusiva em necessidades da comunidade científica, que, sendo verdadeiras, não são mais que uma parte do problema.

Quem se preocupar com o trabalho científico, lutará contra a degradação das instituições de investigação científica e a debilidade do emprego científico. E estará livre para ajudar a melhoria de todo o ensino sem fazer dele o que ele não pode ser e, muito menos, bode expiatório de passa-culpas no atraso científico.

As profissões científicas têm de ser reconhecidas e têm de mostrar resultados empolgantes capazes de mobilizar os jovens, também em Portugal e não só em (neuro)cirurgia.

[o aveiro; 03/04/2008]

despudor claro

quero não me levantar ou antes  não levantar os ohos  para ver lá fora   e ainda não tinha olhos que não chorassem comigo   pela seguinte cu...