resto de vida

A viúva apressava-se a enterrar o defunto
marido que já desenterrado o amante
a esperava à mesa com o vinho e o presunto

restos da vida de antes para outra mais adiante.


Já o viúvo morto tomando alento voava céu alto
em avião fretado ou asas de ir ao outro mundo
na pressa de respirar a nuvem sem parede nem fundo

esquece a viúva a magra pensão o sobressalto.

a última palavra

No sábado passado, em família, fomos ao(s) concerto(s) de encerramento de “Sons em Trânsito”. No regresso, o músico da família comentava a natureza da adesão que cada um dos concertos reclamara e obtivera. Como se o público tivesse estado dividido em duas partes, uma para a adesão ao primeiro concerto, outra para o segundo. O monólogo separava as propostas estéticas em categorias tais que só públicos diferentes poderiam aderir realmente a uma e a outra. O monólogo argumentava especialidades a separar as sensibilidades e exigia alguma razão científica e literária como suporte de adesão. Fui pensando no que teria sido a adesão a uma e a outra das propostas ou aos seus vários andamentos, já que ambas oscilaram entre registos distintos, da adesão imediata ao corte por via de referências inacessíveis.
A discussão sobre a adesão a propostas estéticas é a discussão sobre a adesão a qualquer proposta. Há níveis de adesão distintos uns dos outros; a adesão de uns pode ser mais fundada em critérios estéticos ou científicos, podendo chamar para si uma razão para a emoção que explica a emoção. O chamamento de pareceres técnicos e científicos para apoiar uma determinada decisão serve mesmo, muitas vezes, como almofada de consciência em decisões onde prevalecem imperativos morais. Parece estranho? Muitas das decisões que pisam o risco do sustentável em termos da humanidade e da terra onde se reuniram as condições para a sua criação, chamam uma particular razão científica em seu apoio, sempre que a razão científica geral desaconselha. A razão científica particular releva sempre do interesse particular e da ordem do imoral: “se não for eu a fazer, outro fará pior!”
A discussão sobre o aeroporto para Lisboa é exemplar a este respeito. O conjunto, ainda numerável, de pareceres científicos que apoiam decisões diferentes para um mesmo problema são da ordem da machadada. Já assim tinha acontecido com a localização das unidades de incineração e, por isso, Sócrates pode reclamar uma vitória a dois tempos. A ciência apoia mas não toma decisões, os políticos decisores somam razões para colher adesões à sua decisão.
A forma como aderimos e apoiamos ou rejeitamos pode afinal ser muito variada. Mas será que há adesões (ou rejeições) melhores que outras? E haverá um“a última palavra”?

Concertos desconcertantes!


[o aveiro; 6/12/2007]

dos impostos

A toda a volta, a nossa vista pode demorar-se em montras. A nossa necessidade é reconhecida pelo grande catálogo que se abre para mostrar todas as formas de a satisfazer. Nem escolhemos. Estendemos a mão e a mercadoria encaminha-se até uma passadeira rolante que passa por nós. Ou assim parece.

Serviços, produtos industriais e agrícolas, bens de cultura, serviços religiosos e espirituais, moral, maus e bons costumes são mercadorias e cada um de nós produz alguma coisa para o mercado e cada um de nós procura alguma coisa que com certeza há no grande mercado global.

Aprendemos a maravilha deste mundo seguindo ao longo da montra sem princípio e sem fim. Pode mesmo acontecer que não possamos comprar o que queremos ou nem sequer o que precisamos, mas sabemos que tudo o que podemos querer está em alguma prateleira do grande mercado. Como é que tudo isto funciona? Localmente vimos todos os nossos defeitos e parece que, a partir de nós, nada pode funcionar bem. Mas sabemos que, globalmente, tudo parece que funciona. E há quem sossegue com as aparências.

Quando paramos para pensar no processo, percebemos como o sistema é complexo. Basta pensar na diversidade de mercadorias e na composição de cada mercadoria. A compra de uma mercadoria (serviço, produto, bem,...) efectua-se contra um pagamento. Uma parte significativa do valor a pagar parece não ser trabalho incorporado, nem matéria prima, nem lucro do investidor. São taxas, impostos e similares.

Há quem diga que essa factura devia ser paga pelo produtor ou o prestador do serviço e não devia ser mostrada ao cliente final. Mas todos sabemos que uma parte significativa do valor das mercadorias vem da organização social e económica que garante as condições para a sua produção - no que respeita à educação e aos cuidados de saúde dos produtores, investigação em ciência e tecnologia, produção e transporte de energia - e para o seu transporte até ao comprador - estradas, caminhos de ferro, portos, aeroportos, ....

E sabemos também que, em cada nível de decisão sobre impostos, devemos ser capazes de esclarecer e provar a justeza e a necessidade da cobrança. Só depois? Com obra feita?

As últimas sessões da Assembleia Municipal de Aveiro trataram dos impostos. Cada um de nós é parte nessa decisão. Não é?


[o aveiro; 29/11/2007]

a casa na água da noite

o forno da casa

o estendal à chuva

Há duas semanas, o céu dos Açores desabou. Não posso dizer que tenha sido apanhado de surpresa. Até recebi a pancada de água com algum prazer. De certo modo, senti algum conforto ao receber por lá a água de que sentia a falta por cá. As máquinas que me acompanharam na descida daquela rua de Angra é que não gostaram. Mais tarde conheci o desagrado das máquinas, ao ver como elas se despediam do emprego alegando justa e húmida causa.

Habituei-me a esperar as estações do ano como me lembro delas e custa-me ver quando elas se aproximam de nós a fazer-se passar pelas outras.

Por isso, quando chegou a manhã de segunda feira, mal levantado do chão da noite onde tinha adormecido, agradeci ao manda chuva aquele escuro céu de mágoa. Quando saí de casa, já me apoiava à bengala que, quando não suporta o peso dos meus passos, se abre ao peso da água que cai. Sem precisar do guarda-chuva, cheguei à escola com todos os sentidos em alerta para não perder o instante da água. O vento não nos roubara o céu escuro e o cheiro do ar dizia-nos que a água do alto ansiava juntar-se à terra de água. E aquela mágoa feita dor finíssima, descendo do ombro até ao dedo que apavorado adormece, anuncia aos quatro ventos a tempestade.

Não me valeu de grande coisa a intenção da atenção. Não dei por ela quando ela começou a cair. Quando ela chegou, estava eu a prestar atenção às pessoas que aparecem em cada dia e em todos os dias, aparentemente as mesmas e sempre diferentes a reclamar a parte que lhes cabe na vida dos outros.

Saí mais tarde para a rua, o chapéu aberto contra o céu fundente. Para sentir o bafo húmido do dia, para molhar as mãos no ar, para ouvir o céu pingar e resvalar até às pontas das varetas do (ex)guarda-sol. Gosto de sentir a água na cara, de a saber a andar por aí em volta a dar peso à poeira que, ainda no último domingo, levitava à luz como se fosse poalha de ouro.

Sem corantes, sabores ou cheiros, de água simples se faz uma chuva de prazer e paz. De palavras de água, também. Mas também sei que de ácidos e ácidas palavras se formam nuvens e se fazem armas de chuva.

Não hão-de ser algumas gotas de chuva ácida a tirar-me o prazer do ar da minha rua.


[o aveiro; 22/11/2007]

o estendal

Vejo poucos estendais quando passo nas ruas de Aveiro, como se a roupa lavada desta aldeia tenha sido escondida em vãos de escada, ou quem sabe, em tambores de milhares de máquinas de lavar e de secar roupas. O número de máquinas é prova de desenvolvimento e progresso da cidade? Ver poucos estendais nesta cidade de vento à solta é prova de parolice de novos-ricos e isso nada tem a ver com desenvolvimento e progresso. Tem a ver com compra e venda de um bem escasso, de energia eléctrica num país doentiamente dependente do estrangeiro, e incapaz de criar formas alternativas para a produção de energia eléctrica.

Não me parece que a esta situação sejam alheias decisões políticas, urbanísticas. E não me admiraria muito que entre os entusiastas das varandas livres de roupas voadoras estejam alguns dos que falam a favor da energia eólica, da poupança da energia e de outras coisas que o actual senso comum não dispensa.

Não me chega que os responsáveis se mostrem politicamente correctos em geral (e são-no muitas vezes ao mostrarem-se favoráveis a políticas de que não são decisores) enquanto tomam decisões erradas e contraditórias com a necessidade da poupança de energia e de favorecer a produção alternativa de energia ou, ainda mais simplesmente, a utilização de energias renováveis para a … secagem de roupa, por exemplo.

Vejo poucos estendais na cidade de Aveiro. Vejo poucas pistas cicláveis fora da cidade e ainda menos caminhos exclusivamente pedonais, cuidados e sinalizados, para os aveirenses que, quotidianamente, passam marchando esforçadamente. Procuro carreiros que levem os caminhantes por aí fora, atraídos por bosques e parques, pela beira-rio, pelas beiras dos braços da ria. Mas se não vejo carreiros, nem quem reze por sua intenção, vejo quem seja capaz de lhes encomendar a alma falando de futuras estradas onde elas estão.

Algumas medidas importantes para melhorar a qualidade de vida dos cidadãos de Aveiro não custam fortunas nem são impopulares. O que lhes falta para atrair a acção dos responsáveis?

Dêem-me carreiros e estendais, passeios em volta e roupa ao vento. Poupem-me o retrocesso à idade da idolatria das máquinas.


[o aveiro; 15/11/2007]

a chuva dos dias

deixei que ela caísse em mim
como se a esperasse
desde há muito tempo
e ela tardasse

ensopado, esperei a morte
enquanto me dissolvia

mas o dia seguinte acordou-me
e ainda existia
só um pouco encolhido no tamanho
sem poder evitar a alergia

que me desata a alma em tempestades de ranho.

os dias que faltam

Tenho ouvido falar muito sobre o estatuto dos alunos. Governo, partido do governo e parte da oposição falam sobre o assunto aparentemente com alguma paixão política. Mas em tais termos que dou por mim a pensar que é como se ninguém quisesse saber dos verdadeiros problemas actuais que enfrentamos e antes estivessem todos interessados em descansar clientelas - de interesses, partidárias, ideológicas, ... não consigo perceber bem.

Do estatuto dos alunos, o assunto dominante é feito de faltas que se podem dar e de efeitos das faltas que se dão. Um dos dilemas aparentes a separar a direita da esquerda é sobre isso.

Do estatuto do aluno ou outro qualquer regulamento aplicável a pessoas que requerem serviços do estado com mobilização de recursos da sociedade não devia constar especificação sobre o direito de faltar. Não é normal esperar que falte às marcações quem pediu os serviços. E não é normal que se diga quantas vezes pode faltar sem consequências de maior. Como não é normal esperar que o agente prestador do serviço falte e muito menos se estabeleça quantas vezes pode ele faltar sem problemas. Pode ser preciso e inevitável ao requerente e ao agente faltar a uma marcação. Mas isso deve ser objecto de tratamento e apreciação dos responsáveis dos jovens e dos serviços, caso a caso, falta a falta.

Sobre este assunto, as garantias estão na exigência dos cidadãos quanto ao direito de base do respeito pela sua vida individual e quanto à qualidade dos serviços que tornam a vida social democrática possível, de cada um e de todos.

A minha mãe nunca me falava de faltas que se dão e só de faltas que se cometem. Eu sei que me apetecia faltar, que queria abandonar as coisas de que não gostava no momento. Mas a voz da razão de outros lembrava-me todos os dias que, ainda que mal feito e desajeitado, os outros contavam com a minha contribuição infinitesimal. Não me lembro de faltas sem consequências, nem me lembro de reprimendas quando tinha mesmo de faltar.

Os alunos que dão faltas às aulas e a quem os pais faltam, faltam ao respeito a toda a gente. Temos de conquistar o seu respeito, dando-nos ao respeito. O governo deve dar meios às escolas (autoridade, por exemplo) para tratar deles e acompanhá-los até à saída desta vida se a recusarem persistentemente. Os professores, que conhecem os alunos que cometem faltas contra eles, precisam de saber o que acontece ao jovem se sair da escola como jovem e problema. As instituições e os agentes educativos precisam de saber o que o estado está decidido a fazer para além de mandar para debaixo de um tapete de palavras os jovens e os pais que dão faltas uns aos outros.


[o aveiro; 8/11/2007]

dai-me

às portas de esgueira

As listas ordenadas

As perguntas não se fizeram esperar. Logo que o Ministério da Educação tornou acessíveis os dados dos exames deste ano, começaram as perguntas sobre as listas ordenadas das escolas. Pela primeira vez, o Ministério forneceu os dados para a comunicação social ao mesmo tempo que para o público em geral. E este facto acrescentou ainda mais controvérsia à controvérsia de sempre em torno dos resultados dos exames nacionais. Redacções houve que imediatamente publicaram as suas listas, enquanto outros reclamaram tempo para tratar os dados e publicar análises mais trabalhadas.

Pudemos passar os olhos por duas das listas publicadas. À procura de sinais, lemos os critérios e sigo os meus dedos linha a linha até encontrar uma ou outra escola. Guardo de memória algumas escolas que possam ser comparadas, por exemplo, as da mesma cidade. Os quadros de professores e as culturas profissionais são muito semelhantes, embora possam variar as instalações e as pessoas - professores e estudantes.

O exemplo de qualquer escola dá para olhar com olhos de ver. A Escola José Estêvão ocupa a posição 95 na lista publicada no DN/JN, e, na lista da SIC, ocupa a posição 39. Tudo depende das disciplinas cujas notas contribuem para a ordenação. E é claro que tudo depende do número de alunos que realizam os exames em cada disciplina, o que é o mesmo que dizer que tudo depende do número de alunos que a escola leva a exame. O que faz toda a diferença: uma escola que leve a exame só os melhores alunos ocupará um melhor lugar na lista ordenada. Porque ninguém pergunta quantos alunos se excluem da lista ao longo do ciclo de ensino. Perguntam-me muitas vezes: Então as escolas deixam ir a exame alunos que não estão preparados para concluir o ciclo de estudos? E a resposta não pode ser sim ou não. Eles podem estar em condições de concluir um ciclo de estudos sem que isso signifique prestarem obrigatoriamente boas provas de exame. Eles podem estar preparados para uma boa prova de exame sem que estejam preparados para concluir um ciclo de estudos.

Parece complicado? Não é. Para as escolas, pais e professores que se ocuparam do crescimento em graça e sabedoria das crianças e jovens nada disto é estranho. Mas quem mais quer saber das pessoas quando as pode substituir pelos seus números? Estes números, agora publicados, são muito relevantes e ajudam muito quem precisa de compreender para actuar. Mas não são tudo. E isso é tudo.

[o aveiro; 1/11/2007]

a luz

porta de entrada

arte e matemática

estreita a passagem

estreita a passagem entre penhascos um rio

deixa que me lembre em contraluz os teus dedos
apontando mais adiante uma agitação um desvario
o silêncio das ausências que há em todos os segredos

deixa que me lembre de algum sermão que seja rouco
na tua voz ditado para a nave nua onde ninguém pára a ouvir
como não se ouve um murmúrio que ainda está para vir
ou o sussurro de quem perdeu os dons e ficou mudo e louco

por um ai tu te esgueiras para não seres mais que lenda
aquela que até da vida se escapa por um fio
uma mão não mais que uma mão de través uma fenda

estreita a passagem entre penhascos um rio

um dia depois e...

Um dia depois e não somos quem éramos
que importa termos sido tão intensamente

se ontem ou hoje ou amanhã o nosso lugar
é uma onda de vento que quase não se sente.

Se fizemos do nosso corpo uma embalagem
e nela cabem as fotografias que fomos rasgando

o corpo pode ficar ou levar-se a si em viagem
que quem não souber onde somos saberá quando.

uma noite,...

Uma noite, ao dobrar uma esquina do corredor da casa, vi o gato de botas na mão a sair do quarto da minha namorada. Por momentos, ele olhou-me e pareceu-me que se ria enquanto me desafiava, levando a mão direita a uma espécie de florete que lhe pendia do cinto largo. Não pensei duas vezes e foi o meu pontapé certeiro que o levou dali para fora pela janela aberta. Muito depois, já eu me deitara quando dei por mim a descansar a consciência com o que se ouve sobre as sete vidas dos gatos.
Pela manhã acordei de um sono pesado com um grito horrível.
Antes de me levantar já tinha percebido que o rabo de fora da minha namorada já tinha gasto as sete vidas antes de voar pela janela da noite passada.

mais os mesmos

Todos sabemos que a maior parte dos programas de ensino são nacionais. Todos sabemos que os professores têm todos a mesma formação superior, mais coisa menos coisa. Todos sabemos que as escolas fazem planificações do trabalho lectivo de modos muito semelhantes. Todos sabemos que os professores ensinam as mesmas coisas e que os alunos que aprendem alguma coisa aprendem a mesma coisa. Todos sabemos que os jovens portugueses são, na generalidade, muito parecidos, com acesso a produtos culturais massificados e transmitidos pelas centrais mundiais que uniformizam gostos, atitudes e valores. Todos sabemos que as formas de vida da generalidade das famílias são parecidas no que toca ao tempo disponível para os filhos. Todos sabemos quais são os hábitos gerais de leitura juvenil e sabemos os números a esse respeito recentemente publicados. Todos sabemos que as notícias garantem que o país está a equilibrar as finanças públicas e que o défice está controlado. Todos sabemos que não sabemos o que isso quer dizer a não ser que os nossos consumos se reduzem por medo e por pouco tempo. Todos sabemos que a taxa do desemprego não parou de subir, mesmo quando nos dizem que desceu. Todos sabemos que não sabemos como é que as famílias tocadas pelo desemprego de longa duração sobrevivem e todos sabemos qual é o cheiro da pobreza. Todos sabemos que os jovens dormem pouco e chegam estafados à escola diurna para confirmarem que não rendem. E todos sabemos que quem frequenta a escola nocturna lá chega estafado pelo trabalho que não rende e é natural que a escola não renda. Todos sabemos que, no nosso mundo, para a escola vai quem não trabalha e para o trabalho vai quem não estuda. Todos sabemos que fazemos parte da europa e que dela pinga a ajuda que nós precisamos mesmo quando não sabemos de que ajuda precisamos. Todos sabemos, porque nos disseram, que nós precisamos de estar actualizados e que a nossa capacidade de competir vem de termos tecnologia, mesmo que a não saibamos usar de forma inteligente e a favor da nossa humanidade. Todos sabemos que é muito importante sermos presidência europeia e termos conseguido o tratado porreiro mesmo sem sabermos ler nem escrever o que quer que seja sobre o tratado. Todos sabemos que não sabemos o que fazer de nós mesmos para não sermos mais os mesmos e sermos... os outros portugueses que prometemos aprender a ser.

[o aveiro, 25/10/2007]

as pequenas parcelas

Olho em volta. Rodando sobre os calcanhares, olho a toda a volta. Tento ver tudo. Mas sei que não vejo tudo o que quero. Há pormenores que me escapam, sei de alguns detalhes que de mim são escondidos e até sei que, em troca, detalhes há que se agigantam mesmo debaixo do meu nariz, pequenas parcelas que, em pontas de pés, acenam a chamar a atenção do meu olhar.
Há paisagens de que reconheço os detalhes. E de tal modo que estes perdem sentido se os tiramos da paisagem em que os vemos. Quando assim acontece, o meu maior interesse está no jogo do máximo prazer: reconstruir a paisagem com o máximo de detalhe, com todos os detalhes. Por conhecer bem a paisagem, sei reconstrui-la tanto a partir de poucas como de milhentas pequenas parcelas, fazendo variar a densidade do olhar.
O pior para mim são os detalhes que se agigantam a meus olhos como taipais sem que saiba de onde chegam, nem para onde vão ou onde querem chegar. E a discussão política local, a decisão política a que preciso de dar uma atenção fina aparece-me mais como uma sucessão de casos do que como uma paisagem que vamos pintando, retocando ou restaurando. Queria a paisagem em que cada caso fosse caso consistente com a paisagem da nossa vida colectiva ou erro a evitar.
A vida política local está cheia de passado e de decisões regionais ou nacionais que nos tolhem os passos. De certo modo, o nosso presente de dúvidas tem de sobreviver sob uma chantagem permanente de compromissos vindos de outros tempos ou de outros lugares. Se procuramos dar um lugar ou uma paisagem política a um caso ou outro, ficamos a saber que não há nada a fazer ou há a resignação que sobra para o caso em estudo. E não depende de nós. Haverá outros casos em que, por serem casamentos já consumados, apelam à revogação dos compromissos dos planos e companhia e com carácter de urgência.
Dou por mim a pensar que sempre que apoio uma decisão para um osso - caso descarnado - estou a dar um passo, antes de outro e outro, no vazio da queda para um abismo cheio de casos fechados em si mesmos, cuja soma quer ser a verdade toda da política. Por vezes, dou por mim a olhar a vida comum como um caso sério, caso e casa de estranhos.

Pode alguma coisa ser o que não se vê?


[o aveiro, 18/10/2007]

curso de mudanças subterrâneas

Cada governo ou cada partido ou cada ministro sabe que não pode pedir para o seu tempo médio de vida (enquanto ministro da democracia portuguesa) a possibilidade de executar mudanças sustentáveis e verificar, por resultados escolares consequentes, o alcance das suas políticas. Cada ministro sabe que estará reformado ou morto antes de se conhecer o impacto de uma ou outra das suas decisões de política educativa.
A revisão participada do currículo, iniciada por um governo do partido socialista, foi um processo longo por ter chamado à participação efectiva todos os parceiros sociais, mais ou menos organizados e com interesses contraditórios (mutuamente exclusivos em muitos casos), e pela ambição de definir adaptações aos perfis de competências do ensino secundário a exigir adaptações nas ofertas de ensino e de organização das escolas, muito além de simples adptações de programas de ensino. Os responsáveis governamentais por tais decisões políticas puderam assistir ao arranque do seu programa de mudanças. A proposta original não passou completa para a acção e, mesmo já transformada em acção, veio a ser alterada por medidas avulsas dos ministros que se seguiram, sem que os documentos técnicos tivessem recebido adaptação.
Uma revisão participada, lenta, constitui uma fonte de legitimação das mudanças pela sociedade, procura um sentido social para a mudança que seja consentida pelos agentes educativos que acompanham a sua génese e evolução. Uma boa parte da formação para uma mudança por parte dos professores e outros agentes fica consolidada, ao menos como necessidade sentida, na fase preparatória.
Reforma alguma se compadece de poderes que almejam principiá-las e vir a colher frutos. Em democracia, os poderosos têm contrato a termo certo. Mas incapazes de cumprir os seus nobres papéis de executantes honestos das grandes políticas de regime, os políticos de ocasião anseiam por arranhar uma eternidade de circunstância.
A actual nova ministra actua nessa revisão curricular participada, ainda não completamente transformada em acção. Grande parte dos documentos reguladores da organização de oferta educativa e dos programas de ensino mantêm-se aparentemente em vigor. Mas, ao arrepio da lei escrita, este ministério tem conseguido realizar uma clandestina revolução curricular e organizacional. Estão a ser postas em prática por via autoritária muitas medidas que não passaram nas negociações da revisão participada e sem constarem em papel timbrado. Recados e telefonemas das direcções e secretarias fizeram nascer de quase nada cursos profissionais e transformaram os, até há pouco, cursos tecnológicos de futuro em coisa nenhuma do presente. Sem qualquer ligação às empresas das suas regiões e sem quaisquer acordos protocolares, previstos em lei, as escolas públicas ganharam cursos profissionais e os estudantes que tinham pedido a sua matrícula em cursos tecnológicos acabaram matriculados em cursos profissionais com currículos diferentes, em alguns casos, mesmo com novas disciplinas em que não se inscreveram. E tudo feito sem que aos professores fossem dadas quaisquer oportunidades de formação para os programas que conheceram em Agosto e leccionaram a partir de Setembro.
Estes falsos cursos profissionais têm falsos aspirantes a profisisonais. Professores impreparados para programas práticos e para avaliações subordinadas ao desempenho profissional que nem sequer está no centro das preocupações já que não há empresas de serviços, comerciais ou industriais envolvidas como ambiente, presente ou futuro, de algum desempenho.
Mesmo que a razão prática nos diga haver justiça na aproximação ao trabalho, nada sobrevive em adversativa ideológica, em recusa ao trabalho de hoje, ao estudo. E nada sobrevive no ambiente de desregulação completa da profissão de professor. Profissão, sim! Mas que profissão? Com quantas ferramentas trabalha um professor? Com quais e com quantas pessoas trabalha um professor?


[a página de educação; Novembro de 2007]

olhar através

em busca do tempo passado


Um homem dava o braço a uma mulher e insistia em mostrar-lhe onde tinha feito a tropa. Mas não lembrava bem o caminho nem o nome do seu regimento. Ouvia dizer que tudo tinha acabado ou estava prestes a acabar. De qualquer modo, o que ele via hoje não era o que tinha visto há 40, 50 ou mais anos atrás e estava perdido, tanto para si como para a mulher que, sem querer, começava a duvidar de todas as histórias de tropa fandanga e juventudo que ele lhe contara.
Confirmei todas as mudanças e guiei a sua memória até ao parque e ao quartel, confirmando que os dois quartéis jão não albergavam tropas e que, se ele queria ver onde tinha sido jovem militar, tinha feito bem em voltar agora. Ainda vinha a tempo de ver a guarita de onde espreitara ... o quê?
O que se via então daquela guarita? O que teria ele visto?

GEOMETRIA : A curva do ingénuo revisitado (geogebra)

GEOMETRIA : A curva do ingénuo revisitado (geogebra) : Revisitamos "31 de Janeiro de 2005" de entrada ligada a texto de setembro ...