6 mm

A porta da cozinha dá para um quintal que mais parece um jardim. Em frente da porta, estende-se um carreiro direito, ladeado por uma latada de uvas americanas, assente em loureiros e vigas de granito grosseiro e por plantas estranhas aos olhos de quem conhece as plantas das aldeias do norte. Da porta, o baixote olha como a medir o comprimento do carreiro. Na mão direita, o velhote segura uma malga de azeitonas. Com a mão esquerda, da malga para a boca, levanta uma azeitona num esforço calculado, como um exercício preciso. Vê-se que o gordinho come a azeitona, até sentir que o caroço sobra limpo. Está tenso, como devem estar todos os atletas concentrados nos últimos ensaios. O caroço já está pronto a ser disparado pelo cano formado pelos lábios cerrados. Calçados numas sandálias largas demais, os pés preparam-se para o lançamento iminente. O pé esquerdo finca-se no chão em frente à porta, enquanto o pé direito toma balanço com ajuda da perna que se dobra pelo joelho. De repente, o caroço salta da boca e, imediatamente, o pé aparece projectado para a frente a tempo de pontapear com toda a energia o caroço cuspido. Certeiro, o pontapé apanha em cheio o caroço na sua trajectória descendente atirando-o para a frente na direcção do carreiro. Os olhos do atleta velhote seguem o caroço enquanto podem. Quando perde o caroço de vista, o atleta sabe que bateu o recorde nacional de lançamento de caroço cuspido e solta o seu grito de vitória. Considerado o melhor do mundo, está pronto a seguir para os jogos.

O seu grito abafou tudo por momentos. Quando se prepara para o segundo ensaio, ouve um grito de dor para lá do fim do carreiro. Uma mulher aparece furiosa. O furo de 6 milímetros de diâmetro numa das pernas da mulher está limpo e quase não sangra.

Debalde, a mulher procurara a bala.

O homem vira costas ao carreiro e poisa a malga das azeitonas ali mesmo em cima do frigorífico. Nunca tinha ido tão longe.

esmorizonte


A Marília mandou-me uma fotografia da linha que separa o céu do mar (de Esmoriz, penso eu). Mandou-me a sua linha do horizonte, humanamente interrompida por apetrechos humanos.

a ópera do fantasma

Aqui há muitos anos atrás, escrevi contra exames como se disso dependesse a salvação da humanidade. Atribuía aos exames a maldade absoluta, um último e derradeiro trunfo da reprodução das desigualdades sociais. E tinha razão. Nas minhas tiradas de ira, não precisava de pensar no que era o exame, só pensava no que pensava serem os seus efeitos em termos de selecção social operada pela escola. Contava meticulosamente os jovens oriundos das classes trabalhadoras que chegavam ao ensino superior e os números provavam o meu ponto de vista. Com razão contra o exame, ainda que os meus amigos de infância nem chegassem ao exame.

Mais tarde, professor e em democracia, achava que os exames atenuavam a perturbação social da falta de vagas nas escolas e nas universidades e criavam bolsas de trabalhadores infantis, juvenis e baratos. Reclamava contra os exames e reclamava mais escolas e mais jovens a estudar e menos jovens no mundo do trabalho. E tinha razão. Não me preocupava qualquer noção de exame. Os números do trabalho infantil entre os desfavorecidos existiam para me dar razão. Impossibilitado de me referir a todos os aspectos do sistema social responsável pelo mal, concentrava toda a ira nos exames clamando contra os problemas sociais da juventude. Os exames eram o pretexto. Claro que tinha razões para ser contra.

Tudo foi mudando. Aprovados novos programas de ensino, com base em amplas discussões sociais, muitos problemas persistiam. Havia cada vez mais jovens na escola até me parecerem que já podiam andar por lá todos os que quisessem. Sem haver professores para tanta gente. Estudantes em condições muito diferentes eram submetidos a um mesmo exame nacional? Era contra os exames e, na falta de melhor, aceitava que se compensassem as faltas imputáveis ao sistema nas notas dos exames. Como aceitar perguntas sobre assuntos que podiam nunca ter sido leccionados numa dada escola? Contra os exames nacionais, sempre! E tinha razão. O exame era o momento chave para denunciar a falta de professores, as desigualdades mantidas e criadas.

Na falta de melhor, aceito o corte e costura dos programas para tentar que o essencial chegasse a cada uma das partes do todo nacional. Com professores espalhados por todo o território e programas mínimos exequíveis, podia aceitar-se um exame de perguntas que se pudessem fazer a toda a gente. Isso fazia mau o exame por ser mau e curto o programa. Pior ainda: professores não ensinavam o que estava prescrito, só treinavam para o exame, enquanto outros desistiam da liberdade de trabalhar os temas do programa mais formativos por não os verem reflectidos nos exames. Contra o exame. Com razão.

De certo modo, tinha começado a ser verdade que o exame respeitava o programa de ensino: questionava aprendizagens de todos os temas, sem esquecer verificação de competências necessárias para acções futuras. Ninguém reclamava qualquer compensação, mas ainda persistiam desajustamentos culturais e de linguagem, contextos e práticas dos professores. E tinha razão em ser contra os exames para exigir que o sistema tornasse acessível ao todo nacional textos com modelos de perguntas possíveis e modelos de respostas esperadas para diminuir os desajustamentos. Muitos professores, se feitos para ensinar, não ensinam mais que um discurso seu como resposta em vez de dar livre curso ao pensamento e à iniciativa.

E continuava a ser contra os exames, para pedir mais tempo para pensar sem pressão, para ler melhor, para responder melhor, cada um a seu tempo. Não pedia mais tempo para mais perguntas e mais difíceis ou inesperadas. Nada disso. Contra os exames, pois claro.

Ao longo da minha vida, o exame não foi mais que o nome do momento propício para reclamar e exigir. E nunca houve o exame porque ele sempre foi variável dependente, espelho de mudanças exigidas e consentidas.

Sem saber nada de particular sobre o exame, reconheço este fantasma sem forma na obra colectiva. Cada vez mais complexa e exigente, a obra. Olho para o pormenor do exame: intrigante nada feito tudo, um tudo nada.


[a página da educação; Agosto de 2008]

a revelação

A última semana revelou-se difícil de viver. Sabemos da morte inevitável para cada um de nós e sabemos da possibilidade da morte dos que nos são próximos em qualquer dia do ano. Mais sabemos da elevada probabilidade de que os nossos doentes morram a qualquer momento. Mas nunca encaramos a separação física definitiva, mesmo quando sabemos que ela já está realizada em sofrimento mais que na morte real. O sofrimento separa-nos uns dos outros mais que a vida. Costumo dizer que a vida manda que nos movimentemos para nos afastarmos uns dos outros. O movimento autónomo é sinal de vida e é sinal de separação. Andamos sempre a procurar elementos separadores enquanto crescemos. Só nos consideramos adultos quando nos separamos. Ansiamos pelas separações. Mas não aceitamos a morte como separação e resistimos-lhe. Agarramo-nos aos vivos enquanto estão vivos. Porque a morte serve para efectuar um corte doloroso, uma separação distinta. Doces separações aquelas que a vida opera no seu curso natural - temos consciência disso quando a morte vem separar com um abismo vazio.

Na última semana não deixei de pensar nas separações. As pátrias, as religiões, os ódios e desprezos, as explorações e violações separam em vida pessoas umas das outras e de tal forma que cada uma delas pode operar a morte de outra sem sofrer a dor de separação vazia que a morte é. E vimos as famílias a precisar dos cadáveres dos familiares como condição para a separação entre a vida e a morte provocada pela guerra, embora não estranhem a separação que dá origem à guerra e que está antes da morte dos soldados. Dizem-me que é preciso encontrarmo-nos com o corpo ou o que dele nos derem para fazer o luto, para aceitar a separação. Não compreendo.

Ainda menos compreendo a atitude dos nossos banqueiros e financeiros que conduzem a guerra financeira, abusando e usando o dinheiro de outros para operações que, por não serem controladas, podem gerar lucros fabulosos. Eles não querem saber de onde vem o valor acrescentado ao dinheiro em movimento. Mas sabem que esse valor significa lavagem de dinheiro sujo, venda de armas e material bélico a bandidos, governantes e senhores da guerra, exploração sem limites, ... Eles sabem, na sua santidade aparente, eles sabem que as suas operações matam, que são mandantes de crimes sem nome. Sabem que não podem contar as suas vítimas. Também sabem que não lhes pedirão os cadáveres das vítimas dos seus negócios. Esses banqueiros podem ter usado o meu dinheiro para essa guerra suja.

E eles estão no meio de nós.


[o aveiro; 24/07/2008]

a revelação

dois em um

Há muitos anos atrás, fiquei uns meses a trabalhar numa escola de Aveiro. Devia estar em mudança de São Tomé para Cabo Verde ou em Cabo Verde, de S. Vicente para a Praia. Não sei. Nem sei em que ano. E nem isso interessa. Posso saber do que aconteceu sem saber quando aconteceu. E cansa-me procurar.
Nesse pequeno intervalo (dois ou três meses) leccionei em algumas turmas que me estavam distribuídas. De uma delas, lembro-me de alguns alunos e há quem, passados muitos anos,tenha falado comigo lembrando pequenos episódios desses meses em passagem. Devem ter-se divertido e eu também.

Uma aluna de então, Gabriela(?), contou-me anos depois que me tinha achado muito estranho. Em alguma deslocação com o pai a uma fábrica da região de Aveiro, tinha-me conhecido como motorista (camionista) da empresa. Ela sabia que o seu professor de matemática era camionista de longo curso e até sabia onde eu pegava ao serviço como camionista. Não sei como é que ela resolveu o problema. Mas lembro-me de ter sido dois, realmente dois.

Dos dois, um morreu a meio da tarde da passada sexta feira. Nas horas de espera, conversei com pessoas que não via desde esse tempo antigo. Um deles, Miguel(?), chófer de praça em Vagos, que me levou (e à família) ao aeroporto de então, falou-me de tudo e de nada, de todos e de ninguém (porque eu não sei o que ele pensa que eu sei) e assistiu comigo à passagem do barulhento cortejo de camiões (famílias inteiras na cabina) com histórias de fascínio pelos camiões e do meu fascínio pelos grandes navios sem porto. Por momentos, dei por mim sem saber quem morrera: qual dos dois?

naqueles dias, hoje

hoje, estava lá para ver
as costas de um dedo
a desenhar assinaturas
na fronte distraída

tão tarde e tão cedo
para publicar ternuras
impossíveis em vida

para publicar a despedida
de quando o tempo se dobra
escondendo a parte

que nem parte
nem fica

porque não era...

fez das tripas
coração
e mostrou na rua
o amor
que lhe corria nas veias

os vizinhos dele
acreditaram
no amor
que lhe viam passear
na flor da pele

mas
o instituto
nacional do sangue
não o aceitou
como dador

de sangue

a agenda

Houve um tempo em que Santana e Menezes lutavam denodadamente contra Sócrates. As festas sucediam-se e todos nos sentíamos felizes por vermos o mundo parecer perfeito, agenda de sobras. A bagunça opsdocionista foi de tal ordem que o coro da ordem e da seriedade não tardou a impor-se. Por amor da agenda, devemos dizer que Menezes e Santana nunca chegaram aos calcanhares da agenda de Jardim.

De qualquer modo, há tempos, a agenda da velha senhora veio a votos e recebeu uma maioria de votos piedosos dos seus pares no baile dos pequenos baronatos que dançam com ela a aproximação à agenda do poder que lhes escapa. Alguns deles já debutaram, mas todos fingem que eles se aproximam pela primeira vez da agenda da salvação patriótica.

Os pobres não cabem em si de espanto ao verem como a velha senhora, na agenda de oposição, se apresenta reciclada para a sua defesa quando a única defesa que lhe conhecem foi uma agenda de ataque a todos quantos diz agora defender. Contra o governo que, também ele, se apresenta em agenda de defesa dos que agendam a falta de fé no que lhe dizem.

A semana passada ficou marcada pela estreia de nova agenda na bancada opsdocionista. De tudo se disse antes: virtudes magníficas, todos reconheciam ter o agenda. Depois do primeiro confronto sobre o estado da nação, li o que escreveram os repórteres de escaramuças, os relatores do politiquês, os professores que dão notas de agenda enquanto empurram com a língua, boca fora, as palavras que se despenham no balde do tudo ou nada, cheio de perdigotos e das lágrimas dos contribuintes para a televisão do estado da nação.

Até eu tenho pena de mim por ter de assistir aos espectáculos em volta da agenda. Os espectáculos em volta do discurso humano são feitos para desvalorizar as reais acções humanas. Pobre do homem que, honradamente, estudou e fez o seu papel o melhor que soube. Eu até compreendi o que ele disse e o que quis defender. Sem concordar com ele, pareceu-me uma honrada tentativa de agenda. Milhares de bocas falaram sobre o estado da nação e não há quem se lembre de uma palavra dita pelos actores que usaram da voz no anfiteatro.

Cumpre-se a agenda. Esquecidas as promessas, as políticas, as pessoas... cumpre-se a agenda.

[o aveiro; 17/07/2008]

desenho, logo existe

o descanso

Pareceu-me poder dizer que, em certas alturas da vida do homem que ando a perseguir, ele traz a cabeça pousada no ombro como se quisesse ver quem o persegue até eu ter a certeza que ele me está a ver. Ele quer que eu veja cada pormenor dos seus pequenos actos desinteressantes até me ver compor o quadro completo de tudo o que lhe tinha reprovado de forma desabrida.

O homem, que eu persigo pertinaz, não se deixa ficar num dos lados da sua vida na esperança que me aborreça e adormeça. Ele mostra-me mesmo nos mais obscuros pensamentos e deixa que eu veja o que ele não sabe. De certo modo, deixa-me ver o seu obscuro modo de fazer ou o seu modo de pensar e até o seu modo de falar nas reuniões. Olho para ele vendo como ele olha os textos. Ele deixa-me ver os acordos e desacordos das primeiras leituras. E deixa-me ver como cada opinião o influencia. Ele deixa-me ver como hesita demasiado até soltar uma tentativa de acordo numa dúvida que deve pairar ou numa sugestão que toma o lugar da dúvida. Ele deixa-me ver como toma o lugar do outro até perceber que mais vale ler como ele, na esperança que todos leiam desse modo esse mal o menos.

De vez em quando, o homem solta-se e deixa que o discurso se solte em alta voz como quem procura respostas nos olhares e nos esgares de quem ouve. De vez em quando, o homem deixa-me ver uma pergunta que se destaca do discurso como se fora uma faca afiada ou uma gargalhada inesperada surgida da dobra onde guarda as memórias detalhadas dos outros, essas que não são para usar. Tenho a certeza que ele dá por mim, que o persigo todos os minutos da sua vida para ganhar a vida, e começo a pensar que ele me dá tudo quanto eu preciso de saber para que eu não me canse. Há detalhes que nem me lembrava de apontar se não fosse a importância que ele lhes dá ao sublinhá-los.

Quando escrevo os meus relatórios, tenho de me controlar para não descrever detalhes que pareçam impossíveis pela observação que eu posso fazer a uma distância que não me denuncie. Tudo me é dado ver e saber sobre o homem que persigo e já sei que só durmo quando ele dorme, sem precisar de pensar nisso.

Eu sou o homem que persigo. Cada vez que um determinado quadro pode ser exposto, descanso. A crítica ao quadro exposto, ainda que errada, é uma crítica sobre o quadro que se pode ver. Porque haverá tanta gente a criticar o que não sabe e nem existe?

[o aveiro; 10/07/2008]

desenho, logo existem

desenho, logo existe

os impostos inaceitáveis

Por dá cá aquela palha, ouvimos badalar a necessidade de baixar os impostos como cura para todos os males. Há dirigentes políticos, a começar pelos autarcas, que anunciam como sua virtude a vontade e a decisão de baixar impostos.

Ao defender a entrega a privados da prestação de alguns serviços fundamentais, com o argumento de que funcionariam melhor, os presidentes de câmara, vereadores e gestores da coisa pública desvalorizam a sua capacidade de gestão e acção. Ou não são eles os responsáveis dos serviços que querem alienar para outros que façam melhor? Ou não são eles que, ao mesmo tempo e a todo o tempo, garantem aos eleitores que são capazes de tudo fazer bem até merecerem ser reconduzidos nos seus lugares de gestores da coisa pública?

Não tenho nada contra os impostos cobrados claramente. Parecem-me baixos para os serviços sociais que suportam, se forem bons serviços e em boa hora prestados.
Serviços bons e claros nunca são caros. Sou contra os impostos que não estão declarados e são cobrados de forma cobarde e clandestina. Caras são as horas de vida que pequenas e poderosas repartições nos roubam. Caras são as horas de espera para o momento de protelar decisões. Caros são os impostos que pagamos ao sermos convocados para reuniões em que os dirigentes não conseguem tomar decisões e se deixam manietar pelos truques e tiques dos pequenos poderes nas suas administrações. Caras são as horas que vivemos sem qualquer proveito e onde a única novidade é o papel (ou a nova informação) que passou a faltar hoje e não faltava ontem e sem que o dirigente em presença denuncie, contrarie e mostre que percebe a incúria, o desleixo, a fraude, o prejuízo que tal arrastar de situações cria aos utentes. A administração aparece-nos tolhida por pequenos técnicos que passam mais tempo em corredores de conversa (de empatar umas vezes para agilizar demais outras) que em trabalho a apoiar decisões.

Por vezes, damos por nós a pensar que esse é o sistema onde vivem os que querem ver reduzidos os impostos com finalidade à vista e, por isso, a exigir prestação de contas, para os substituir por arranjos e combinações entre cúmplices do estado das coisas a que chegámos.

Há quem finja que estes impostos não são cobrados. Como ilusionistas disparam palavras contra todos os impostos. Sob a toalha dessas palavras e do medo, escondem os impostos dos dias e dos passos perdidos.

[o aveiro; 03/06/2008]

desenho, logo existe

desenho, logo existe

tempo quente

Quando me esqueço de quem sou
Uma alma toca o alarme da minha porta
E à maneira dos ferros em brasa engoma-me
As palavras uma a uma antes que eu saia.

Piedosa a alma passa o seu pano de vapor
Alisando-me a testa e uma ruga cavada
Como vale de lágrimas entre o olhar perdido
E os lábios gretados pela cal da sede.

Depois é ver-me passear à soleira
Magnífico como um dente de ouro
Preso por um cordel ao trinco da porta
Que alguém abrirá ao passar.

exames... de consciência

Como passar estes dias sem falar de exames? Há exames. E todos nos afadigamos em dizer que isto vai mal. Os exames vão mal. Os alunos têm melhores resultados? Isso é mau: os exames são fáceis demais. Os alunos têm maus resultados? Isso é mau, mas não são os exames que são mais difíceis, o que acontece é que são maus os ministros, os programas, as escolas ou os professores em geral. Como passar no exame destes dias?
Os exames são mais fáceis? São mais difíceis? São diferentes? São iguais? São tudo isso, devemos dizer em abono da verdade. E há quem diga cada uma das coisas, com toda a razão cada um dos que fala quando compara com alguma coisa que tem na cabeça e que os outros não conhecem.
Hoje em dia, os exames são mais acessíveis? São, de facto são. Desde há um bom par de anos que se tem vindo (finalmente!) a publicar as perguntas que se fazem e se podem fazer sobre os programas e até mesmo as respostas que se esperam. Para esperar o quê? Que os alunos tenham piores resultados? É mau que os alunos saibam que tipo de perguntas se podem e devem fazer no fim de um ciclo de escolaridade? Não, não é. É mau que muitos alunos percebam que as questões que lhes podem ser postas são acessíveis no sentido que procuram que eles mostrem se estudaram e compreenderam o que de essencial se espera deles? Mais transparência do sistema dá mais confiança, e, com mais tempo para pensar, preparar e escrever as respostas não é natural que tenhamos melhores resultados?
Assim é, mas nada nos permite diminuir e espalhar a crença que melhores resultados do trabalho actual só podem ser uma fraude. Uns serão...

Criticáveis são, certamente, políticas e medidas no sistema educativo dos últimos anos. Também dos responsáveis pelos exames.
Quem havia de se lembrar de um motivo para louvar os últimos governos tão diferentes em partidos e em partidas que nos pregam? Eu. Que fizeram eles de bom? Mantiveram uma organização com autonomia - o GAVE - a dirigir a concepção e elaboração de provas de exame, de testes intermédios, de publicações de perguntas e respostas. A todos eles, muito obrigado por esse pequeno nada que é afinal o tudo nada que fez alguma diferença.

Se temos de aumentar a exigência sobre os sistemas, exigindo ao mesmo tempo cada vez mais dos jovens, dos professores, das escolas? Claro, sempre! Como se faz isso? Exigindo. O que é que isso poderá ter a ver com a palavra fácil? Nada.


[o aveiro; 26/06/2008]

(arte) postal



desenho em postais do correio, desenho em folhinhas a6, desenho em papel de mesa, desenho em guardanapos, e, sempre que possível, para compensar a falta de palavras, no verso escrevo endereço e colo o selo. as pessoas que recebem as folhinhas pelo correio nunca me escreveram de volta sobre qualquer dos desenhos que lhes enviei. de vez em quando, preocupo-me em saber se as folhas volantes chegaram ao seu destino. e só.
as mais incríveis folhinhas têm chegado ao seu destino e os correios de portugal ainda não pararam de me surpreender. do que eu mais gosto e o que eu mais admiro é a diligência dos carteiros no seu circuito.

admirar de admirar mesmo.

negativo de um postal, só o negativo que ora mostro.

o girassol dissidente

Recebi o teu postal de reunião. Foi bom, por uma vez, ter na caixa de correio algo diferente de uma factura para pagar!
Em troca, mando-te este girassol dissidente que nasceu aqui perto da minha casa.
Abraço
Marília

Perguntei-lhe:
- Um girassol virou-se para ti e os outros viraram-te as costas? Porquê?
Ela respondeu:
- Estes girassóis são muito esquisitos. Estão sempre virados para o mesmo sítio, no caso para nascente, independentemente da posição do sol. Excepto um, o de primeiro plano, que está sempre voltado para poente. Chamei-lhes transgénicos. Não mudaram de posição. Fotografei-os. Ficaram na mesma. Nem um se voltou para mim, nem os outros me viraram as costas. São mesmo assim, bonitos mas, esquisitos.
Darão semente?

a vontade

Não aceito um Não. Ainda há pouco disseste que eu era o maior e agora dizes-me Não? Não pode ser. Nada é pior que um Não! O pior Não é aquele que se segue a grandes declarações de amor e dedicação! O pior Não é aquele que está rodeado de pequenos sins, é aquele que nós rodeamos de todos os carinhos para ser um sim. Não me faças isso, não me digas Não!
Quando eu te mando fazer isto ou aquilo é para teu bem e, por isso, está fora de causa que digas que Não fazes! Que diabo te leva a dizer Não? Não consigo compreender o teu Não. Claro que nunca me passaria pela cabeça preocupar-me com um sim senhor, pois claro! Quando dizes sim aos meus pedidos e aos meus desejos isso é tão natural que não me interrogo sobre as razões que te levam a dizer-me sim. Natural é estares de acordo comigo. Todos sabemos quem tem razão. Quem tem razão sou eu. Mesmo que eu mal te explique porque hás-de gostar de mim, natural é que gostes de mim e me digas sim, sim, sim. Não? Que ideia mais infeliz a tua!
Onde foste buscar coragem para me dizer Não? Parece impossível! Todos os meus amigos e conhecidos só podem aconselhar-te a dizer que sim ao que eu quero. Está tudo tratado para o teu sim, Se disseres que sim, vamos ser felizes para sempre! Como podes duvidar? Não te chegam as minhas promessas? Antes de dizer Não, bem podias ter pedido qualquer coisinha que te interessasse. Eu nunca te diria Não! Podia mandar-te mesmo um braçado de rosas, um maço de notas, um beijo, uma carta de amor, um cartão de boas festas e até mesmo boas festas antecipadas. Isso tudo. Não, eu não me importava nada de te prometer mundos e fundos. Ou até dar-te fundos. Agora, dizer-me Não, depois de todas as minhas promessas e depois de teres conhecimento que todos os meus conhecidos e amigos (que são toda a gente, com sabes) já me disseram sim! Parece impossível! Diz-me porquê! Eu preciso de saber porquê. Um Não, porquê?
Quem és tu para me dizer Não? Afinal quem pensas que és? Não, não podemos aceitar o teu Não. O teu Não não tem sentido. É um contra-senso. E é um contratempo!
Não te compreendo! O que é que queres? Um divórcio? É isso que tu queres? Não é melhor pararmos para reflectir? Eu sei que se pensares melhor vais dizer sim, não é? Não é? Diz alguma coisa! Vá, diz alguma coisa que me ajude a perceber. Quem julgas que és? O que é que tu queres, afinal? Dizes Não e pronto? Isso é assim? Isto não fica assim!
Quem é que tu pensas que és?

A Irlanda.

[o aveiro; 19/06/2008]

a linha dos olhos

a linha dos olhos

galafura


quem se alimenta de pedra
faz-se pedra

não se desfaz em pó e cinza
ao entardecer

galafura


até ao rio por esta vereda

leva os teus olhos
a serpente que se afoga

a... sair das cascas

torga que cresce

cada um

és a tua história:
aquela que guardas
em gavetas da memória
até formares a nuvem de palavras
cuspidas como uma corrente de ar

gelado como o corpo da tua voz.


és a tua história:
aquela que ouvimos soltar-se da tua boca
e vemos palavra a palavra
pendurada no arame esticado
de um estendal de rua

ou sobre o abismo a cabeça a caminho da lua

a viagem

a santa mulher oscila e imagina
que é o passeio da rua que oscila

um santo homem da mesma viagem
olha para ela e sorri no olhar

um abraço abre os braços dos dois
que desatam a rir desfeitos no ar

que nuvem os leva? o crente diz
que nuvem assim é feita de dois

a chave da porta de saída

Ainda há pessoas. Cada pessoa, na sua cidade, vive rodeada de pessoas. A cidade de cada pessoa é, em primeiro lugar, a sua vizinhança. Pelas ruas em que passo, há muitas pessoas que conheço e me reconhecem. Em alguns momentos do dia a dia, muitas mais há que não conheço nem me conhecem. De certo modo, ao passar pelas ruas da minha vizinhança, eu sei quem não conheço. De vez em quando, sou assaltado por dúvidas ou estranheza a respeito de uma cara. Talvez porque a tenha visto muito frequentemente na minha vizinhança. A minha vizinhança é visitada por muitos estranhos a ela. Claro que, a certas horas do dia, é como se estivéssemos a ser visitados por automóveis e é como se não víssemos pessoas.

Ainda há pessoas. Quando ficamos cercados por automóveis, ficamos cercados por pessoas que não vimos. E elas também não olham para as pessoas daqui, porque vieram cheias de pressa ver qualquer outra coisa e anseiam ir embora para as suas vizinhanças. As nossas ruas mais frágeis ficam esburacadas em pouco tempo, pelo peso das pessoas que chegam e partem velozes. Quem manda na cidade, deve saber disso. Mas adia a reparação das ruas que não são as suas ou não são as ruas dos que têm poder para mandar nos que mandam fazer. Ainda há pessoas. Mas nas ruas da minha vizinhança, não há pessoa que tenha poder para mandar fazer. O único poder que resta à minha vizinhança é o de falar ou escrever a dar notícia.

Ainda há pessoas. Há políticos que são populares e reconhecidos pelas pessoas, porque as recebem, deixando que elas falem e dando a entender que as ouvem. Ainda há pessoas que esperam mais do falar do que a fala e esperam mais das pessoas com quem falam do que das nuvens a quem rezam. E que há mais desencontro que encontro em políticos que ouvem e falam sem tomar devida nota de coisa alguma, sem dar acção às palavras que ouvem e ainda menos às que falam. Ainda há pessoas que pesam as palavras que dizem e pesam as palavras que ouvem. Ainda há pessoas que sabem o peso do nada feito sobre o tudo nada dito.

Ainda há pessoas que (pres)sentem nas palavras ditas em infindáveis (des)encontros a maldade de quem pode estragar e adiar a vida dos outros como se a vida dos outros fosse coisa pouca. Ao mesmo tempo que, maldosamente, fingem uma simpatia sem limites de tempo para as dificuldades verdadeiras, engraxam e criam facilidades instantâneas aos grandes negócios e negociantes que não podem esperar.

Só que ... ainda há pessoas a achar que estes políticos são "estranhos" em qualquer lugar do mundo.

[o aveiro; 12/06/2008]

a oficina

o tempo todo a estudar matemática e lógica e disso só me sobrou uma melancólica dúvida quando escrevo.
hesito entre - disso, não sei nada!- e - disso , sei nada!

raqueu zangado?


como sou visto pela raquel?

a mão esboçada

a disciplina do regime

No âmbito das comemorações da passagem dos 40 anos sobre Maio de 1968, para uso escolar, realizou-se uma sessão em que se relatavam acontecimentos históricos da década de 60 (do século passado!) e, relativamente a algumas questões, os jovens apresentadores questionavam pessoas presentes que representavam papéis previamente distribuídos. A mim, cabia-me o papel de dirigente associativo ou estudantil e devia responder, nessa qualidade, com uma opinião sobre a repressão policial da época.
Pareceu-me que esperavam de mim que falasse da PIDE, das prisões e torturas de militantes políticos, da tropa de choque e da violência policial contra manifestantes e activistas, contra grevistas, etc...
Eu tinha aceite esse encargo. De facto, parece-me muito educativo, para os jovens que a não conheceram, (d)enunciar os aspectos da violência policial do antigo regime contra todo o tipo de iniciativa popular que escapasse ao seu controle e o pusesse em causa. E isso acabei por fazer, pelo menos em parte, denunciando a proibição e a repressão das movimentações populares, atropelos a liberdades e elementares direitos de associação e manifestação, com descrição breve da situação do movimento estudantil de Lisboa, Coimbra e Porto.
Mas acabei, sem que tal fizesse parte das minhas intenções iniciais, a diminuir a importância da repressão policial do regime fascista, exercida com particular violência contra militantes e activistas que com ela contavam, para dar toda a importância à mobilização forçada de todos os mancebos para a guerra colonial. Reclamei uma importância especial para essa violência que tocava todas as famílias portuguesas mesmo que não tomassem acção, nem manifestassem qualquer desamor ao regime. A guerra mais suja é aquela que se dirige indiscriminadamente contra todos os que, de um lado ou de outro, se tornam parte activa quando percebem, longe de todos os seus, que é matar ou morrer. Sem querer matar e sem querer morrer, sem saber matar e sem saber morrer, de cada uma das famílias portuguesas de cada uma das mais pequenas localidades, vimos partir jovens que regressavam velhos vivos, estropiados mental e fisicamente, ou mortos para sempre jovens. De Angola, da Guiné, de Moçambique. Sem querer matar ou morrer, outros partiam para o estrangeiro sem esperança de regresso.

Dei por bem gasta a minha voz contra a guerra colonial que o regime colonial travou também (e principalmente) contra o povo português.
Abril e Maio cheiram a liberdade. E eu gosto.

[o aveiro; 29/05/2008]

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