diário
Uns dias melhor, outros pior. ao contrário de outros que as vendem, a minha mãe dava ordens. sempre a admirei por isso. e o que era melhor é que dava ordens simples. se não executássemos o que ela mandava fazer não podia ser por não termos entendido as ordens. não tínhamos desculpa. ultimamente tenho andado a pensar que não sei dar ordens. desisto? ou penso melhor no que seja uma ordem antes de a dar. ou pago para aprender a dar ordens. ou faço um esforço para me lembrar da técnica de comunicação da minha mãe para dar ordens com vista a acções particulares. ou passo a vender ou distribuir ordens como fazem os reis das monarquias e os presidentes das repúblicas, sem esperar que possam ser compreendidas já que a acção requerida está só em receber pondo o peito a jeito.
o diário
quando te sentes velho, podes caminhar pelas ruas como caminhas pelos corredores da tua casa. e podes rir-te do que foste como se te risses de qualquer outro dos que em vão conheceste. ou desconheceste, afinal. nada do que possas ter feito é para ti entusiasmante, porque o que está feito está feito e não tem futuro. o teu futuro pode ser ou ter uma forma perturbadora porque sabes que te foste transformando noutro esse outro que tu já não controlas. por isso, lutas contigo mesmo à medida que vais desaparecendo da tua vista. a voz que de ti ouves já não é a mesma e tens vergonha de ter convencido alguém com essa voz pedagógica de trazer por casa, sendo que em casa todos sabem que nenhuma pedagogia há feita das tuas qualidades, antes tudo ficou feito pelas tuas escolhas. quando te sentes velho, não tens outro desejo para além dessa vontade de desaparecer ou mudar de pele. é por isso que entre as tuas escolhas importantes, está a transformação nos gestos: cada vez menos cuidadosos e cada vez mais cuidados. à tua volta giras como se cuidasses de ti em vigília permanente em busca de sinais que ainda não podes ver mas estão lá em algum lugar onde poisas as coisas, as pequenas coisas que escondes ou mostras para esconder as outras pequenas coisas. os sinais estão nas ocultações para ti mesmo que é a forma como queres desaparecer. não tarda estás a fazer um testamento de nadas, talvez da forma de morte e de não funeral que escolhes sem o dizeres aos outros. na forma como desvendas o tédio que a tua vida foi: tanta alegria para nada, tanta alegria sendo tudo e nada, cada escolha como separação do que te foi estranho depois de o teres sido. quando te sentes velho, podes imaginar que podias ter sido outro nas escolhas e podias afinal ter encontrado maior sossego em alguma comunidade estranha mas acolhedora de alguma forma acolhedora que só precisava que não a negasses. mas tu aprendeste a negar sorrindo e quase fizeste isso de forma perfeita, mais recentemente fazendo isso nos momentos certos, sem ser desagradável para os outros, sem seres qualquer acontecimento fora de ti desculpado por te sentires velho. às vezes, pensas mesmo que escolher o momento favorável a certas mudanças fez de ti uma forma de vida adaptada a fazer as grandes mudanças como se de pequenas mudanças se tratasse, como se te fosses desvanecendo sem sobressaltos para ti e para os outros, como se preparasses algum esquecimento de ti. quando te sentes velho, dói-te o joelho e só isso te importa afinal embora não o digas. cada dia te afastas um pouco da vida, esqueces um pouco uma parte da memória e crias uma lembrança do que não existe em ti e nunca existiu. pensas como a tua mãe que o que interessa é a imaginação da vida que não foste, uma vida imaginada, construída fora da realidade das coisas que viveste, uma forma de sorrir sem culpa, uma bengalada que nunca existiu.
o diário
hoje caí na asneira de olhar para o lado. ao meu lado, ia uma senhora com uma bengala que golpeava o ar compassadamente. o ar que nos rodeava bem tentava desviar-se das bengaladas. sem conseguir. o ar atrapalhado do ar deu-me vontade de rir e quando uma gargalhada se preparava para sair a bengalada no ar atingiu-me a gargalhada que saltitava à minha frente. assustado, perdi a vontade de rir. comecei a procurar a vontade de rir pelo chão. quando a vi, baixei-me para a apanhar. e apanhei com uma bengalada mesmo em cheio na mão que acabava de pegar a vontade de rir. o ar que até aí andava a fintar as bengaladas pôs-se de cócoras para ver melhor o meu ar. senti uma lufada de ar, uma gargalhada de ar. com pena vi que tinha perdido toda a vontade de rir e toda a vontade de a procurar. o pior é que não estranhei a falta de vontade. à minha volta, o ar andava às voltas tentando ter graça. eu não lhe achei graça nenhuma. para além do riso, deixei de achar graça. se calhar nunca mais vou achar.
desenho, logo existe
desenho para desconhecer
desenho para reconhecer
desenho para conhecer
desenho para esquecer
desenho para aquecer
bater do coração
entram na sala e a sala enche-se deles de sons de palavras soltas umas pelas outras palavra puxa palavra pairam palavras por toda a sala de palavras. só uns momentos... até que dêem pela falta das minhas palavras e os olhares comecem a substituir as palavras que se vão sumindo sem que outras tomem o seu lugar. até à sala vazia de sons até que o silêncio seja cal: e eles ouçam o bater compassado do meu coração: e eu possa enfim abrir os olhos para falar.
de certo modo, velho em santiago
o homem cumprimenta-me na rua como se casualmente
me reconhecesse a cara de cabisbaixo cheio de mágoa
hesita por momentos e acaba por falar em ira calmamente
sobre o caso da vizinha idosa a quem cortaram a água
o homem fala como se desdobrasse uma ruga da fala
e pergunta como tornámos as pessoas abertas em fechadas
cada uma como um apartamento de si presa ao sofá da sala
lábios secos presos a torneiras de dor secas e caladas
e pergunta repetidamente quem secou as fontes as nascentes
dos caminhos e dos bairros onde só bebe dos contadores
quem tem moedas para metros cúbicos de banhos quentes
a cantar nas canalizações lá fora por alheios corredores
e pergunta se não posso pedir uma fonte para santiago
que a fonte dos amores não é longe mas feita monumento
às portas da cidade sem água à vista diabo que carago
de cidade onde ainda lavar-se a sede pode ser tormento
eu não sei que diga mas vou adiantando que a junta pode
resolver o problema pode lá ser que possa não saber
da freguesa sem pão e água com essa é que me fode
diz o homem enquanto retoma o caminho sem me ver
me reconhecesse a cara de cabisbaixo cheio de mágoa
hesita por momentos e acaba por falar em ira calmamente
sobre o caso da vizinha idosa a quem cortaram a água
o homem fala como se desdobrasse uma ruga da fala
e pergunta como tornámos as pessoas abertas em fechadas
cada uma como um apartamento de si presa ao sofá da sala
lábios secos presos a torneiras de dor secas e caladas
e pergunta repetidamente quem secou as fontes as nascentes
dos caminhos e dos bairros onde só bebe dos contadores
quem tem moedas para metros cúbicos de banhos quentes
a cantar nas canalizações lá fora por alheios corredores
e pergunta se não posso pedir uma fonte para santiago
que a fonte dos amores não é longe mas feita monumento
às portas da cidade sem água à vista diabo que carago
de cidade onde ainda lavar-se a sede pode ser tormento
eu não sei que diga mas vou adiantando que a junta pode
resolver o problema pode lá ser que possa não saber
da freguesa sem pão e água com essa é que me fode
diz o homem enquanto retoma o caminho sem me ver
desenho, logo resiste
Não é verdade. Nada resiste menos que um quadro escrito a branco sobre o negro.
desagradável
não sou nem quero ser perfeito ou cópia de modelo
com medidas ou virtudes escolhidas por alguém que pense ser
modelo perfeito, belo e virtuoso
sou velho demais para seguir caminhos direitos
sou cabeçudo demais para corredores estreitos
e sou gasto demais para não ser intratável e rugoso
e feio à vista e ao ouvido e ao tacto e ao paladar
sou velho demais para saber que sou eterno
não aqui não no céu e não no inferno
mas só porque não sou biodegradável
ou por ser, para tudo e todos, bem desagradável
sou velho demais para saber que um dia de vida
pode ser uma eternidade bem viva
e o eterno pode ser um só instante à deriva
uma partícula de tempo em tempos perdida
amiúde vagueio sem virtude mas sem receio
também sem conta e sem medida
como a vida
ou como a morte ou a falta dela
foi tudo o que ele disse olhando-me como se fosse eu na outra margem
com medidas ou virtudes escolhidas por alguém que pense ser
modelo perfeito, belo e virtuoso
sou velho demais para seguir caminhos direitos
sou cabeçudo demais para corredores estreitos
e sou gasto demais para não ser intratável e rugoso
e feio à vista e ao ouvido e ao tacto e ao paladar
sou velho demais para saber que sou eterno
não aqui não no céu e não no inferno
mas só porque não sou biodegradável
ou por ser, para tudo e todos, bem desagradável
sou velho demais para saber que um dia de vida
pode ser uma eternidade bem viva
e o eterno pode ser um só instante à deriva
uma partícula de tempo em tempos perdida
amiúde vagueio sem virtude mas sem receio
também sem conta e sem medida
como a vida
ou como a morte ou a falta dela
foi tudo o que ele disse olhando-me como se fosse eu na outra margem
onde nos sentamos a ver o mar
para sentirmos o céu imenso deitamo-nos de olhos abertos
vasculhando a terra
para saborearmos a pequenez da terra fincamos os pés no chão
abrindo os olhos à poeira luminosa do céu
para vermos quem amamos fechamos os olhos
e as mágicas pontas dos dedos
a medo
se abrem em corolas das mãos
e se
por momentos
o universo inteiro
sossega nas conchas das nossas mãos
por momentos
pulsa uma vida inteira
vasculhando a terra
para saborearmos a pequenez da terra fincamos os pés no chão
abrindo os olhos à poeira luminosa do céu
para vermos quem amamos fechamos os olhos
e as mágicas pontas dos dedos
a medo
se abrem em corolas das mãos
e se
por momentos
o universo inteiro
sossega nas conchas das nossas mãos
por momentos
pulsa uma vida inteira
Faz bem à Madeira, ...
... não a mim que me habituei a viver sem guelras. Asfixio, pois.
Mas não é como estão pensar. Nem porquê.
... É só humidade excessiva. O que mais poderia ser?
Mas não é como estão pensar. Nem porquê.
... É só humidade excessiva. O que mais poderia ser?
a quanto?
valemos quanto? quanto valemos.
a quanto se vendem quantos? uns quantos se vendem a quanto.
um vale quanto? quanto vale um.
quanto vale cada um? em média, a média.
a quanto se vendem quantos? uns quantos se vendem a quanto.
um vale quanto? quanto vale um.
quanto vale cada um? em média, a média.
insulto seguido de provocação
Quem sabe, faz. Quem não sabe, ensina.
Bernard Shaw
Que não sabe ensinar, forma os professores. Quem não sabe formar professores, faz investigação educacional.
acrescentado por António Nóvoa
citado deAntónio Nóvoa . Professores - Imagens do futuro presente.Educa. Lisboa:2009.
Bernard Shaw
Que não sabe ensinar, forma os professores. Quem não sabe formar professores, faz investigação educacional.
acrescentado por António Nóvoa
citado de
o instante da eternidade
Que farás tu se eu arranhar a tua porta?
- Estou pronto. Podes entrar. Vens ficar comigo? Vens buscar-me?
E se eu te der uma chave para a vida eterna?
- Posso usá-la mais tarde?
Porque não aproveitas logo?
- Não queres gozar comigo a inquietação da vida instantânea?
Posso?
- Comigo podes sempre contar ...
- Estou pronto. Podes entrar. Vens ficar comigo? Vens buscar-me?
E se eu te der uma chave para a vida eterna?
- Posso usá-la mais tarde?
Porque não aproveitas logo?
- Não queres gozar comigo a inquietação da vida instantânea?
Posso?
- Comigo podes sempre contar ...
uma manhã
rezo as matinas.
a quem levanto a voz? é a pergunta breve
que me ocorre tão sussurrada como o são as matinas
no seu silêncio vazio que as faz tão leves
até, sem ganhar asas, voarem livres de peso
atraídas por um farrapo de azul
ou por uma mão cheia de nada, a eterna
realidade que, sem o ser, persiste
sem ser alegre e sem ser triste
a quem levanto a voz? é a pergunta breve
que me ocorre tão sussurrada como o são as matinas
no seu silêncio vazio que as faz tão leves
até, sem ganhar asas, voarem livres de peso
atraídas por um farrapo de azul
ou por uma mão cheia de nada, a eterna
realidade que, sem o ser, persiste
sem ser alegre e sem ser triste
novo ano de lições
nestas horas matinais, a aragem fresca fala
a quem quer ouvir a fala da aragem
e, mesmo sabendo da iminente viagem,
sai para o futuro sem antes arrumar a mala
a quem quer ouvir a fala da aragem
e, mesmo sabendo da iminente viagem,
sai para o futuro sem antes arrumar a mala
féretro
quando as portas de Agramonte se abrem para a paisagem,
última e cega dos que, ao nosso lado, fizeram a sua viagem
guiando passos incertos dos incertos caminheiros que somos
abrem-se também para um abismo onde somos o que já fomos
de par em par por um ventinho bom, uma memória da passagem
até lá, ao fundo do imaginário mira douro
última e cega dos que, ao nosso lado, fizeram a sua viagem
guiando passos incertos dos incertos caminheiros que somos
abrem-se também para um abismo onde somos o que já fomos
de par em par por um ventinho bom, uma memória da passagem
até lá, ao fundo do imaginário mira douro
... quase, quase a acordar
Descansei em ti o meu olhar, como só uma ave cansada de voar pode olhar. Digo-te adeus hoje e sei que não posso deixar de te dizer amanhã adeus de novo. De asas cansadas, poisarei no teu beiral, só por um instante te olharei, alisando maquinalmente as minhas penas sem ânsias de voar, mas certo de partir. Parto para longe, onde não possas ouvir-me gritar, depois da volta larga em frente da tua janela. Parto sem partir definitivamente. Digo-te um adeus sumido. Porque não sei mais que dizer ou fazer e os meus gestos têm a economia própria de quem voa. Quem voa assim tão desajeitadamente? ouço o espanto de uma ave verdadeira, enquanto eu caio a pique ... quase, quase a acordar.
féretro
as paredes acolhem a minha sombra
e eu encolho-me até ser uma sobra
da sombra, uma sombra da sombra:
do chão à parede, a linha da dobra.
e eu encolho-me até ser uma sobra
da sombra, uma sombra da sombra:
do chão à parede, a linha da dobra.
a catedral privada
se ninguém ouve a música que enche a nave direita,
menos imaginam o sermão da nave esquerda:
pois só eu sei como é insuportável esta merda
de estar em duas missas cantadas de uma só feita.
menos imaginam o sermão da nave esquerda:
pois só eu sei como é insuportável esta merda
de estar em duas missas cantadas de uma só feita.
Isabel
Na página do ICA - Instituto do Cinema e do AudioVisual - a morte dela foi notícia nestes termos:
Morreu Isabel Alves Costa
Nascida a 30 de Julho de 1946 no Porto, Isabel Alves Costa, que recebeu em 2006 a distinção "Cavaleiro das Artes e das Letras" do Estado francês, faleceu hoje, dias depois de ter completado os 63 anos. Conceituada figura do meio artístico do Porto, Isabel Alves Costa era, actualmente, directora do Museu da Marioneta após, durante 13 anos, ter sido directora artística do Teatro Rivoli. Isabel Alves Costa doutorou-se em Estudos Teatrais pela Universidade de Sorbonne (Paris, França),em 1997, tendo obtido cinco anos antes o diploma de Estudos Aprofundados no Instituto de Estudos Teatrais daquela Universidade. Isabel Alves Costa fazia parte da bolsa de Júris de Selecção do ICA.
Transcrevo para agora e aqui, um texto que escrevi, há mais de 20 anos, inspirado num incidente que fez da professora contratada Isabel uma professora desempregada. Soube disso por Manuela Ferreira, então educadora num lugar de Castelo de Paiva. Conhecia a Isabel há muitos anos, encontrei-a muitas vezes, mas nunca falámos disso. No texto escrito é tudo ficção (ou quase). Real é a solidariedade de então e a memória de hoje. Trago-a à minha memória como professora contratada.... no seu movimento e drama, como a vida é.
Movimento e Drama
Quando ela entrava na sala, eles já lá estavam sentados pelo chão. E já tinham arrumado para os lados as mesas e as cadeiras. Ao meio da sala tinham deixado a mesma velha cadeira de sempre.
Ela trazia pelos ombros uma manta exótica, a tiracolo uma saca de pano, duas rugas cavadas perto dos olhos, o cabelo atado por um elástico de notas e um sorriso tímido deformando-lhe a boca.
Amélia da Fonte Seca pousa o saco na mesa mais perto da porta, despia pela cabeça a manta que a fazia parecer grande e forte que ia fazer monte por cima do saco. Sobrava sua figura magra e pequena moldada pelas calças pretas coçadas e pela camisola preta de gola alta.
Eles já se tinham preparado e, por isso, o mundo era a sala com o seu espesso silêncio, o de habitantes que esqueceram tudo o que não é a respiração que se ouve.
Neste mundo não corre a mais leve aragem.
Amélia conhce-os bem. Demorou-os nos primeiros exercícios de relaxamento, de apagar as marcas das inibições do uso do corpo em relação consigo e com os outros corpos, nos exercícios do mais profundo acordo e desacordo “consigo mesmo”. Sabe que estão preparados para, a partir de nada, criar outra realidade e vivê-la.
E é como se tivesse crescido o corpo da Amélia, quando se ouviu a sua própria voz:
Filipe! Estás a ouvir o vento? Começou mesmo agora a soprar. E é tão bom neste dia de calor. Primeiro suavemente e depois cada vez mais forte.
O Filipe e os outros olharam-se e começaram a ver. Parecia que o cabelo da Amélia se tinha soltado ao vento e ondulava. E o sorriso dela era deliciado e era como se os dedos abertos dela estivessem a ser refrescados e que o vento estivesse limpando o suor. Todos, incluindo a Mariana que não vai em cantigas, sentiam o vento cada vez mais forte e começaram a ver o mar a desdobrar-se onde antes o soalho não era mais que um tapete coçado. E viram-na desenhar no ar ondas que no ar ficavam bem visíveis.
Apagou a luz. Fechou as cortinas e disse:
Hoje vamos ver os gatos e os ratos. Os seus movimentos para um drama. Olhem para os meus olhos. São amarelos e brilham.
E a Mariana viu que havia naquela escuridão os olhos de um gato. Amarelos e brilhantes.
Quando a Amélia fechou os olhos e os voltou a abrir nada se via. Disse:
Os meus olhos de rato são pretos e baços. O gato não me vê e eu vejo-o e ando por perto. O meu corpo é cinzento e baço. Quando o gato me cheiram, os olhos brilham-lhe (e viram-se os olhos do gato Filipe brilhando), mas eu escorro por baixo das mesas e pelos buracos (e sentiu-se a Mariana correndo para baixo da mesa do fundo).
A voz da Amélia, depois a voz do tímido Joaquim de Albergaria, criaram uma tempestade. E viu-se a faísca que o Joaquim criou e viu-se a trajectória dos olhos amarelos do Filipe que saltava para abraçar com as suas garras o rato Mariana, descoberto pelo flash do relâmpago. Sentiram que a Mariana estava morta e era arrastada para o canto mais tranquilo onde o gato Filipe despedaçava as suas presas.
Amélia acendeu a luz, abriu as cortinas. E disse que tinha sido bom.
Vestiu a manta, pegou no saco, verificou se tinha o passe para regressar ao Porto e lembrou o ensaio de 6ª.
Foi assim e diferente a vida da Amélia. Tinha abandonado tudo ao tempo da pura euforia para pegar e largar futuros professores do ensino primário, capazes do movimento e do drama.
Trabalhou. Recebeu o seu magro salário de contratada a prazo. Feliz uns dias. Cansada sempre. Mas das suas aulas criadoras de vento, ficaram sulcos indeléveis nas aulas de gerações de professores. Alguns, regressados à terra, por lá andam criando tempestades e inventando o drama do gato e do rato e mudando a face do mundo.
Mas Amélia da Fonte Seca não tinha uma ciência exacta para dar, nem tinha procurado licenciatura para se segurar e segurar outros contratos melhores. E um dia o Ministério descobriu que tinha de eliminar uma despesa. Procurou a despesa como um gato atrás do rato. Uma faísca iluminou o canto do Magistéio emq eu Amélia se escondia. As garras de tinta vermelha dispensaram para o canto dos desempregados a Amélia da Fonte Seca.
Não é pura coincidência se esta história lembrar alguma realidade que não é das criadas pela Amélia. Talvez a Amélia exista e exista este movimento e este drama.
O Filipe e a Mariana dizem que o Joaquim de Albergaria já não distinguia os dois mundos e, por isso, partiu para lá onde decretou que nada disto pode acontecer. Perturbador é viver deste lado do espelho. •
dedo no ar.4, 1ª série, 24/01/1986, rádio independente de aveiro, pela vo de josé antónio moreira
Morreu Isabel Alves Costa
Nascida a 30 de Julho de 1946 no Porto, Isabel Alves Costa, que recebeu em 2006 a distinção "Cavaleiro das Artes e das Letras" do Estado francês, faleceu hoje, dias depois de ter completado os 63 anos. Conceituada figura do meio artístico do Porto, Isabel Alves Costa era, actualmente, directora do Museu da Marioneta após, durante 13 anos, ter sido directora artística do Teatro Rivoli. Isabel Alves Costa doutorou-se em Estudos Teatrais pela Universidade de Sorbonne (Paris, França),em 1997, tendo obtido cinco anos antes o diploma de Estudos Aprofundados no Instituto de Estudos Teatrais daquela Universidade. Isabel Alves Costa fazia parte da bolsa de Júris de Selecção do ICA.
Transcrevo para agora e aqui, um texto que escrevi, há mais de 20 anos, inspirado num incidente que fez da professora contratada Isabel uma professora desempregada. Soube disso por Manuela Ferreira, então educadora num lugar de Castelo de Paiva. Conhecia a Isabel há muitos anos, encontrei-a muitas vezes, mas nunca falámos disso. No texto escrito é tudo ficção (ou quase). Real é a solidariedade de então e a memória de hoje. Trago-a à minha memória como professora contratada.... no seu movimento e drama, como a vida é.
Movimento e Drama
Quando ela entrava na sala, eles já lá estavam sentados pelo chão. E já tinham arrumado para os lados as mesas e as cadeiras. Ao meio da sala tinham deixado a mesma velha cadeira de sempre.
Ela trazia pelos ombros uma manta exótica, a tiracolo uma saca de pano, duas rugas cavadas perto dos olhos, o cabelo atado por um elástico de notas e um sorriso tímido deformando-lhe a boca.
Amélia da Fonte Seca pousa o saco na mesa mais perto da porta, despia pela cabeça a manta que a fazia parecer grande e forte que ia fazer monte por cima do saco. Sobrava sua figura magra e pequena moldada pelas calças pretas coçadas e pela camisola preta de gola alta.
Eles já se tinham preparado e, por isso, o mundo era a sala com o seu espesso silêncio, o de habitantes que esqueceram tudo o que não é a respiração que se ouve.
Neste mundo não corre a mais leve aragem.
Amélia conhce-os bem. Demorou-os nos primeiros exercícios de relaxamento, de apagar as marcas das inibições do uso do corpo em relação consigo e com os outros corpos, nos exercícios do mais profundo acordo e desacordo “consigo mesmo”. Sabe que estão preparados para, a partir de nada, criar outra realidade e vivê-la.
E é como se tivesse crescido o corpo da Amélia, quando se ouviu a sua própria voz:
Filipe! Estás a ouvir o vento? Começou mesmo agora a soprar. E é tão bom neste dia de calor. Primeiro suavemente e depois cada vez mais forte.
O Filipe e os outros olharam-se e começaram a ver. Parecia que o cabelo da Amélia se tinha soltado ao vento e ondulava. E o sorriso dela era deliciado e era como se os dedos abertos dela estivessem a ser refrescados e que o vento estivesse limpando o suor. Todos, incluindo a Mariana que não vai em cantigas, sentiam o vento cada vez mais forte e começaram a ver o mar a desdobrar-se onde antes o soalho não era mais que um tapete coçado. E viram-na desenhar no ar ondas que no ar ficavam bem visíveis.
Apagou a luz. Fechou as cortinas e disse:
Hoje vamos ver os gatos e os ratos. Os seus movimentos para um drama. Olhem para os meus olhos. São amarelos e brilham.
E a Mariana viu que havia naquela escuridão os olhos de um gato. Amarelos e brilhantes.
Quando a Amélia fechou os olhos e os voltou a abrir nada se via. Disse:
Os meus olhos de rato são pretos e baços. O gato não me vê e eu vejo-o e ando por perto. O meu corpo é cinzento e baço. Quando o gato me cheiram, os olhos brilham-lhe (e viram-se os olhos do gato Filipe brilhando), mas eu escorro por baixo das mesas e pelos buracos (e sentiu-se a Mariana correndo para baixo da mesa do fundo).
A voz da Amélia, depois a voz do tímido Joaquim de Albergaria, criaram uma tempestade. E viu-se a faísca que o Joaquim criou e viu-se a trajectória dos olhos amarelos do Filipe que saltava para abraçar com as suas garras o rato Mariana, descoberto pelo flash do relâmpago. Sentiram que a Mariana estava morta e era arrastada para o canto mais tranquilo onde o gato Filipe despedaçava as suas presas.
Amélia acendeu a luz, abriu as cortinas. E disse que tinha sido bom.
Vestiu a manta, pegou no saco, verificou se tinha o passe para regressar ao Porto e lembrou o ensaio de 6ª.
Foi assim e diferente a vida da Amélia. Tinha abandonado tudo ao tempo da pura euforia para pegar e largar futuros professores do ensino primário, capazes do movimento e do drama.
Trabalhou. Recebeu o seu magro salário de contratada a prazo. Feliz uns dias. Cansada sempre. Mas das suas aulas criadoras de vento, ficaram sulcos indeléveis nas aulas de gerações de professores. Alguns, regressados à terra, por lá andam criando tempestades e inventando o drama do gato e do rato e mudando a face do mundo.
Mas Amélia da Fonte Seca não tinha uma ciência exacta para dar, nem tinha procurado licenciatura para se segurar e segurar outros contratos melhores. E um dia o Ministério descobriu que tinha de eliminar uma despesa. Procurou a despesa como um gato atrás do rato. Uma faísca iluminou o canto do Magistéio emq eu Amélia se escondia. As garras de tinta vermelha dispensaram para o canto dos desempregados a Amélia da Fonte Seca.
Não é pura coincidência se esta história lembrar alguma realidade que não é das criadas pela Amélia. Talvez a Amélia exista e exista este movimento e este drama.
O Filipe e a Mariana dizem que o Joaquim de Albergaria já não distinguia os dois mundos e, por isso, partiu para lá onde decretou que nada disto pode acontecer. Perturbador é viver deste lado do espelho. •
dedo no ar.4, 1ª série, 24/01/1986, rádio independente de aveiro, pela vo de josé antónio moreira
fim a gosto
lembro-me do tempo em que o mês de agosto aquecia ao rubro as pedras e a areia e eu cortava a respiração sem desfitar as lagartixas até elas desistirem da cauda entre os meus dedos
e isso foi antes de eu brincar ao jogo do sério
lembro-me também de haver assuntos que precisavam de tanto tempo para serem estudados que eu nunca estudava por não ter tanto tempo assim ou era o calor de agosto a entorpecer-me a vontade
e isso foi antes de eu brincar ao jogo da velhice
agora eu passo o mês de agosto a cansar-me numa banheira de água salgada na esperança de caminhar normalmente o resto do ano e não haver quem dê por ela até que mesmo eu pense que não há problema e tudo está bem
sabendo que tudo está bem quando acaba em bem
e isso é agora em que quem está a acabar sou eu :-)
e isso foi antes de eu brincar ao jogo do sério
lembro-me também de haver assuntos que precisavam de tanto tempo para serem estudados que eu nunca estudava por não ter tanto tempo assim ou era o calor de agosto a entorpecer-me a vontade
e isso foi antes de eu brincar ao jogo da velhice
agora eu passo o mês de agosto a cansar-me numa banheira de água salgada na esperança de caminhar normalmente o resto do ano e não haver quem dê por ela até que mesmo eu pense que não há problema e tudo está bem
sabendo que tudo está bem quando acaba em bem
e isso é agora em que quem está a acabar sou eu :-)
ouvir sempre?
mesmo quando deixam de falar comigo
e deixo eu de falar, continuo a ouvir
o que fiz de mim para ser esta algazarra dentro da minha cabeça?
e deixo eu de falar, continuo a ouvir
o que fiz de mim para ser esta algazarra dentro da minha cabeça?
do terceiro livro
(...)
6.
Senhor, dá a cada um a sua própria morte.
Morrer que venha dessa vida
Durante a qual amou, sentido encontrou, teve má sorte.
(...)
Rilke (Teresa Furtado), O livro da pobreza e da morte, em O livro de horas. Teofanias. Assírio e Alvim
6.
Senhor, dá a cada um a sua própria morte.
Morrer que venha dessa vida
Durante a qual amou, sentido encontrou, teve má sorte.
(...)
Rilke (Teresa Furtado), O livro da pobreza e da morte, em O livro de horas. Teofanias. Assírio e Alvim
consequência do tédio
A Criação foi o primeiro acto de sabotagem.
E M Cioran; Silogismos da amargura.
somos nós
6)
Somos nós. A arrogância da fala como a lâmina que nos faltava para rasgar um véu, um nevoeiro, uma manta de chuva de verão sobre os olhos cansados. Somos nós, um dedo no ar para nos dar lugar a fazer uma pergunta por fazer, a pergunta nunca feita. Somos nós o dedo no ar que ninguém vê porque nós falamos dele para sermos ouvidos, para declarar que há sempre uma pergunta a que ninguém responde e há sempre uma pergunta por fazer. Não sabemos pronunciar essa pergunta. E é só por isso que não sabemos as palavras da resposta.
Somos também nós os que se calam.
Somos nós. A arrogância da fala como a lâmina que nos faltava para rasgar um véu, um nevoeiro, uma manta de chuva de verão sobre os olhos cansados. Somos nós, um dedo no ar para nos dar lugar a fazer uma pergunta por fazer, a pergunta nunca feita. Somos nós o dedo no ar que ninguém vê porque nós falamos dele para sermos ouvidos, para declarar que há sempre uma pergunta a que ninguém responde e há sempre uma pergunta por fazer. Não sabemos pronunciar essa pergunta. E é só por isso que não sabemos as palavras da resposta.
Somos também nós os que se calam.
somos nós
5)
Somos nós as férias de nós, a arrogância maior de nos vermos cansados de tudo e ao mesmo tempo capazes da arrogância de pensar que nos podemos retemperar até nos podermos ver com outros olhos, uns aos outros, um mês mais adiante. Somos nós quando adormecemos sobre os problemas que queremos resolver ou quando adormecemos para nos esquecer do que nos aflige agora na arrogância maior de jurarmos que o tempo cura como um esquecimento sem dor alguma. Somos nós na arrogância da absolvição dos nossos pecados quando os citamos em baixa voz para ouvidos cegos e mudos por definição. Só nós nos arrogamos o direito da possibilidade de esquecer a lista que ditamos de cor. A necessidade e a possibilidade são as formas que a nossa natureza assume como a arrogância última e a mais crédula e a mais cruel de todas. A necessidade e a possibilidade são armas de arrogância. A maior arrogância e os actos mais cruéis repousam sobre a necessidade e a possibilidade. E a absolvição dada por nós, uns aos outros.
Somos nós, também somos nós quando falamos disso como se tirássemos férias uns dos outros para nos amarmos mais adiante, para amarmos os outros como a nós mesmos, depois das feridas abertas por combates desgastantes e imorais, depois das cicatrizes fechadas por uma biologia animal, por uma oficina de pequenos concertos e uma indústria de cola tudo. Somos nós quando voltamos ao princípio e somos nós quando nos aproximamos do fim e somos nós quando remediamos, quando recomeçamos no meio de tudo como se acabássemos de nascer uns para os outros e virgens disponíveis para sermos aprendizes da vida, a mesma que maldizemos tantas vezes. Também somos nós.
Somos nós as férias de nós, a arrogância maior de nos vermos cansados de tudo e ao mesmo tempo capazes da arrogância de pensar que nos podemos retemperar até nos podermos ver com outros olhos, uns aos outros, um mês mais adiante. Somos nós quando adormecemos sobre os problemas que queremos resolver ou quando adormecemos para nos esquecer do que nos aflige agora na arrogância maior de jurarmos que o tempo cura como um esquecimento sem dor alguma. Somos nós na arrogância da absolvição dos nossos pecados quando os citamos em baixa voz para ouvidos cegos e mudos por definição. Só nós nos arrogamos o direito da possibilidade de esquecer a lista que ditamos de cor. A necessidade e a possibilidade são as formas que a nossa natureza assume como a arrogância última e a mais crédula e a mais cruel de todas. A necessidade e a possibilidade são armas de arrogância. A maior arrogância e os actos mais cruéis repousam sobre a necessidade e a possibilidade. E a absolvição dada por nós, uns aos outros.
Somos nós, também somos nós quando falamos disso como se tirássemos férias uns dos outros para nos amarmos mais adiante, para amarmos os outros como a nós mesmos, depois das feridas abertas por combates desgastantes e imorais, depois das cicatrizes fechadas por uma biologia animal, por uma oficina de pequenos concertos e uma indústria de cola tudo. Somos nós quando voltamos ao princípio e somos nós quando nos aproximamos do fim e somos nós quando remediamos, quando recomeçamos no meio de tudo como se acabássemos de nascer uns para os outros e virgens disponíveis para sermos aprendizes da vida, a mesma que maldizemos tantas vezes. Também somos nós.
somos nós
4)
Somos nós sentados nas varandas altas vendo todos os outros como formigas laboriosas lá em baixo. Com as mãos firmadas na balaustrada, somos nós, de pé sobre as duas patas traseiras que imaginamos todos os outros incapazes, como formigas de um destino curto ou de uma determinação menor que não é a sua, de cada formiga que não sabe mais que o seu lugar na fila do carreiro para um formigueiro sem emoções. Somos nós quando falamos de nós como um formigueiro de emoções. Somos nós capazes de chorar e de rir de si, por si e para si, como se nenhum outro ser houvesse capaz da tragédia e da comédia. Somos nós capazes de imitar todos os outros seres e de pensar conhecê-los, de os classificar e nomear como se eles não passassem de nomeações, isso mesmo, nomes de coisas. Somos nós, equilibrados sobre as duas patas como se isso nos tornasse outros, únicos e capazes de toda a criação e de toda a compreensão sobre coisas e criaturas, capazes de escrever as escrituras com as mãos livres para a acção inteligente, mesmo se vã. Somos nós. A arrogância de ser o criador, os criadores.
Também somos nós, arrogantes construtores das escolas que nos treinam para seguir a formiga que vai à nossa frente, quando descobrirmos o argumento que segue o argumento escrito pelo que vai à nossa frente e nos deixa o seu património como deixa as suas caganitas a marcar o caminho, o carreiro nos tempos mais escuros. Também somos nós os que sabem treinar os que nos seguem sendo nós, apesar disso ser o contrário da arrogância original e da individualidade felina, feroz, escandalosamente animal, escandalosa por ser humana.
Somos nós sentados nas varandas altas vendo todos os outros como formigas laboriosas lá em baixo. Com as mãos firmadas na balaustrada, somos nós, de pé sobre as duas patas traseiras que imaginamos todos os outros incapazes, como formigas de um destino curto ou de uma determinação menor que não é a sua, de cada formiga que não sabe mais que o seu lugar na fila do carreiro para um formigueiro sem emoções. Somos nós quando falamos de nós como um formigueiro de emoções. Somos nós capazes de chorar e de rir de si, por si e para si, como se nenhum outro ser houvesse capaz da tragédia e da comédia. Somos nós capazes de imitar todos os outros seres e de pensar conhecê-los, de os classificar e nomear como se eles não passassem de nomeações, isso mesmo, nomes de coisas. Somos nós, equilibrados sobre as duas patas como se isso nos tornasse outros, únicos e capazes de toda a criação e de toda a compreensão sobre coisas e criaturas, capazes de escrever as escrituras com as mãos livres para a acção inteligente, mesmo se vã. Somos nós. A arrogância de ser o criador, os criadores.
Também somos nós, arrogantes construtores das escolas que nos treinam para seguir a formiga que vai à nossa frente, quando descobrirmos o argumento que segue o argumento escrito pelo que vai à nossa frente e nos deixa o seu património como deixa as suas caganitas a marcar o caminho, o carreiro nos tempos mais escuros. Também somos nós os que sabem treinar os que nos seguem sendo nós, apesar disso ser o contrário da arrogância original e da individualidade felina, feroz, escandalosamente animal, escandalosa por ser humana.
somos nós
3)
Somos nós quando interpretamos o cheiro do mar e só nós contamos os cheiros, um depois do outro, distintos como agulhas de pinheiro caindo do ar a pique sobre as narinas abertas e ao mesmo tempo fechadas para tudo o resto, para todos os restos, para os restantes há quem diga cheiros que o não são. Haverá cheiros que o não são? Os nossos cheiros constituem-se na nossa arrogância. O que cheira bem é a nossa arrogância a dizê-lo. O que cheira mal é a a nossa arrogância a declará-lo. O que não é cheiro que se cheire é a nossa natureza a nomear uma estranheza, é a nossa arrogância a fechar uma fronteira, a levantar um muro intransponível. Somos nós a não querer cheirar, a não querer meter o nariz onde não fomos chamados.
Somos nós quando nos interrogamos sobre os cheiros que o não são e cheiramos as escondidas dos cheiros que o não são, de que ninguém fala, que ninguém quer cheirar, que ninguém cheira para todos os efeitos. Somos nós quando abrimos o laboratório para fabricar cheiros que ninguém quer cheirar. Somos nós quando somos curiosos até para o que nos ofende o olfacto. Também somos nós.
Somos nós quando interpretamos o cheiro do mar e só nós contamos os cheiros, um depois do outro, distintos como agulhas de pinheiro caindo do ar a pique sobre as narinas abertas e ao mesmo tempo fechadas para tudo o resto, para todos os restos, para os restantes há quem diga cheiros que o não são. Haverá cheiros que o não são? Os nossos cheiros constituem-se na nossa arrogância. O que cheira bem é a nossa arrogância a dizê-lo. O que cheira mal é a a nossa arrogância a declará-lo. O que não é cheiro que se cheire é a nossa natureza a nomear uma estranheza, é a nossa arrogância a fechar uma fronteira, a levantar um muro intransponível. Somos nós a não querer cheirar, a não querer meter o nariz onde não fomos chamados.
Somos nós quando nos interrogamos sobre os cheiros que o não são e cheiramos as escondidas dos cheiros que o não são, de que ninguém fala, que ninguém quer cheirar, que ninguém cheira para todos os efeitos. Somos nós quando abrimos o laboratório para fabricar cheiros que ninguém quer cheirar. Somos nós quando somos curiosos até para o que nos ofende o olfacto. Também somos nós.
somos nós
2)
Somos nós quando ordenamos o nosso mundo em gestos que o representam. Quando aprendemos os gestos que ordenam a nossa compreensão e ensinamos uma forma de ver e de olhar, ou uma forma de dar a ver ou dar ao nosso olhar. Os nossos que são nós olham as coisas como se o fizessem pelos nossos olhos procurando uma visão igual à que espalhámos como nossa. A nossa visão do mundo é a nossa arrogância, a nossa natureza, a natureza que nos separa dos outros.
E somos nós quando olhamos alguma coisa, algum objecto estranho, como visão de outro mundo e nos atrai olhar para ele. E nos arrojamos ao desejo de subjugar a visão a outra visão mais global, como um novo continente que pode ser nosso por mergulharmos nele e sermos parte dele. O nosso olhar multifacetado a reconhecer na cabeça do insecto humano mais olhos que corpo, mais visão que mão, mais visão que linguagem, mais visão que uma unidade feita dos pequenos reconhecimentos no nosso território de conhecimentos em redor, em redil.
Somos nós quando ordenamos o nosso mundo em gestos que o representam. Quando aprendemos os gestos que ordenam a nossa compreensão e ensinamos uma forma de ver e de olhar, ou uma forma de dar a ver ou dar ao nosso olhar. Os nossos que são nós olham as coisas como se o fizessem pelos nossos olhos procurando uma visão igual à que espalhámos como nossa. A nossa visão do mundo é a nossa arrogância, a nossa natureza, a natureza que nos separa dos outros.
E somos nós quando olhamos alguma coisa, algum objecto estranho, como visão de outro mundo e nos atrai olhar para ele. E nos arrojamos ao desejo de subjugar a visão a outra visão mais global, como um novo continente que pode ser nosso por mergulharmos nele e sermos parte dele. O nosso olhar multifacetado a reconhecer na cabeça do insecto humano mais olhos que corpo, mais visão que mão, mais visão que linguagem, mais visão que uma unidade feita dos pequenos reconhecimentos no nosso território de conhecimentos em redor, em redil.
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