AInda a entrevista a Jorge Sampaio.

Da entrevista a Jorge Sampaio , transcrevo de O Público


(...)
P. - Os empresários portugueses estão à altura desse desafio?
R. - Tenho feito o percurso, tão criticado, de mostrar as coisas boas. O meu combate à lamúria vai continuar. Sei que há pessoas que fazem milagres, que há gente nova extremamente bem preparada, multinacionais que decidiram fazer os seus centros de excelência em Portugal. Não podemos render-nos à ideia de que "a malta não sabe matemática", precisamos é de travar uma batalha de vida ou morte para que escolas básicas acompanhem a matemática. É por aí que podemos vencer.
(…)
P. - Alterações do subsídio de desemprego?
R. - Não do subsídio de desemprego, mas o subsídio de doença preocupa-me. Não conheço nada para além do que vi nos jornais, não quero assustar ninguém, mas há uma coisa que é preciso dar a este país: segurança. As pessoas têm medo do desemprego, a vida da maior parte dos portugueses é muito dura, começa às sete da manhã e às vezes acaba às dez, onze da noite. Os portugueses normais, os que são empregados por conta de outrem, os que fazem as fábricas, têm de ter algum carinho. Porque é que são sempre os culpados de tudo? Até porque em Portugal há pobreza, há exclusão. Não vamos dramatizar, mas temos de trazer as pessoas aos mínimos de desenvolvimento, quando o crescimento é negativo temos de lhes assegurar o mínimo...
(…)
Agora se me perguntar onde é que eu gastaria dinheiro, digo-lhe francamente onde gastaria, independentemente de achar, como comandante supremo, que as FA têm de ser reequipadas.
P. - E onde seria?
R. - Nas escolas do ensino básico e secundário. Aí sim, é que iria muito além do que se faz. E pediria voluntários: há tantas pessoas reformadas, com 50 e tal anos, que têm cursos, porque é que não vão dar uma ajuda aos estudantes à tarde nas escolas? Os sindicatos não gostam muito desta ideia, mas sou amigo deles e tenho-lhes dito isto com franqueza. Esta é a grande causa nacional: aumentar a qualificação dos portugueses. Se não aumentarmos, seremos sempre periféricos. Apesar da situação geográfica do país, serão o nosso talento e a nossa capacidade que nos colocará no centro da Europa.
(…)

Louvor e crítica da serenidade.

Nos tempos que correm, eu não preciso de ouvir falar quem fala de acordo com o que penso. Não concordo com muitas opiniões e posições de Jorge Sampaio. E, no entanto, tenho de confessar que, depois de o ter ouvido, fiquei com a sensação de que tinha ouvido o que precisava.
Jorge Sampaio não foge a responder às perguntas. Pronuncia-se calma e normalmente, sem ceder à pressão dos assuntos. Não deixa de dar a opinião pessoal, mesmo quando a decisão presidencial pode não ser concordante em sentido estrito com ela. Aproveita para separar os diversos níveis, as competências e as responsabilidades das diversas instâncias.
Temos sempre a tentação de ter o Presidente da República do lado das nossas leituras e interpretações da Constituição e, no uso das suas competências, de dar sequência aos processos em acordo com o que achamos melhor como legítimo e plausível. É verdade que ele não se decide pela inibição em promulgar algumas leis que, do nosso ponto de vista, desafiam a Constituição. Estamos a pensar em diminuições dramáticas nas responsabilidades do Estado, particularmente na educação e na saúde. Somos contra a transformação dos hospitais em empresas e contra o desinvestimento na educação pública e o afastamento relativamente à gratuitidade dos serviços (obviamente conjugada com a responsabilização dos utentes e o rigor na cobrança fiscal para suportar a prestação social). Achamos mesmo que as últimas leis deste governo para estes domínios vão contra a Constituição. Assim não entende Sampaio. Mas é verdade que Jorge Sampaio combate as tendências liberais representadas pelos entrevistadores, não deixando de chamar a atenção para as obrigações do Estado num serviço nacional de saúde e em serviços públicos de educação e ensino, desde o pré-escolar até ao superior.
Damos particular ênfase às declarações de Jorge Sampaio em favor dos trabalhadores pobres e desprotegidos, a favor dos desempregados e contra as politicas que permitem às empresas tomar iniciativas selvagens contra a estabilidade de emprego e os direitos dos trabalhadores.
Os tempos vão tão difíceis que uma intervenção serena, ainda que humana, contraditória e muito aquém do que seria desejável em criticas à actuação do governo, me ajuda a viver neste tempo e neste lugar. E a ganhar confiança de que vale a pena ser pessoa, ter opinião e princípios.
Precisava de alguma coisa assim em contraste com a histeria tola dos últimos tempos. Não tive o que queria, mas precisava do que tive.

[o aveiro, 30/10/2003]

A casa dos rumores.




Eu gosto de pensar que me acham uma pessoa normal. E isso quer dizer que tenho família, amigos, conhecidos, compromissos sociais e políticos, profissão e colegas de trabalho. Uma única vida? Uma única vida de vidas - vida íntima e privada, vida profissional, vida cultural, académica, social, politica. Para cada uma, a normalidade exige diversos níveis de pensamento, de discurso nos gestos e nas palavras, de actos, etc. Quantos disparates digo eu em casa e ao telefone, com os familiares e amigos? Eu sei, e todos o sabem, que, a quente(!), digo coisas sem consequências sociais porque são filtradas e excluídas pela razão de quem vive em sociedade. Quando o disparate é grande, há logo quem diga: Nem as pensas!. E há sempre quem se ria e me dê o devido desconto. A quem é que nunca foi preciso dar desconto?
As coisas que eu digo e faço nos meus círculos restritos, para terem sentido e serem interpretadas sem dramas por estranhos, exigem explicações detalhadas de contexto, ambiente, da maneira de ser, dos tiques, das rotinas da felicidade, do círculo virtuoso da intimidade, da amizade, da cumplicidade, etc.
Se alguém precisar de escutar os barulhos de um dos meus dias inteiros, não vai ter grandes surpresas se for normal. Mas se quiser compreender a totalidade do que escuta vai pedir uma descrição do meu mundo. Ou não perceberá coisa alguma.
Eu tento cumprir o que da boca me sai para o público e se transforma em compromisso social. Disso presto contas sociais. Espero compreensão, cumplicidade de leituras e lealdade aos que me rodeiam nos diversos círculos em que me movo.
Há os que dizem que quem não deve, não teme. Não devo nem temo? Eu não devo nem dou a minha vida privada a quem quer que seja que nela não entre por direito. E se for um estranho a ter acesso à minha vida privada por direito (que a sociedade lhe confere) assiste-me o direito de esclarecer e de poder continuar a usar os meus códigos próprios, pessoais, privados, … que me tornam único e reconhecível por quem me ama tal como sou em cada um dos círculos concêntricos que se intersectam com os círculos concêntricos de cada uma das outras pessoas.

Eu quero ser eu e o outro, o que escuta e é escutado, o que não trai nem é traído, o que vive livre no seu lugar. Apesar de ter vivido a última semana neste pais, quero ser eu.

[o aveiro; 23/10/2003]

O que lhes está acontecer?

O que lhes está a acontecer é coisa para fazer com que nos aconteçam coisas a nós. O Prego no Sapato chamou-nos a atenção para uma carta ao director escrita, por A. Lima, para O Público. Faz uma viagem entre a história do que viu acontecer e do que viu na televisão como sendo o acontecido. Transcrevemos:


(...)
Ao chegar ao topo da escadaria percorreu dez metros, com dois ou três cumprimentos pelo meio, e entrou de imediato numa sala onde ficou fechado com algumas pessoas durante o restante período que permaneceu na Assembleia da República.

Durante esse pequeno percurso presenciei o fenómeno verdadeiramente assustador de cerca de 50 jornalistas, fotógrafos e operadores de câmaras num "assalto" completamente desvairado para captarem imagens ou recolherem declarações dos deputados. Corriam, empurravam-se e gritavam, fazendo com que os restantes presentes se afastassem estarrecidos com o que estava a suceder. Foi nessa ocasião que alguns fotógrafos (seis ou sete) saltaram para cima de uma mesa grande, que, com o peso e com outros empurrões desses trabalhadores da comunicação, se partiu com aparato.

(...)
Ao pé de mim, um fotógrafo levantou-se com um ar absolutamente tresloucado, muito vermelho, pingando suor e quase sem conseguir falar, dirigiu-se a quatro deputadas do PS e do PSD que se encontravam a um canto dos Passos Perdidos a observarem, espantadas, toda esta cena e, parecendo que lhes queria bater, gritou-lhes: "Quem é que pôs ali aquela merda."

Nessa altura, já Paulo Pedroso estava a caminho do Rato e aquela meia centena de jornalistas (até tenho dificuldade em chamar-lhes assim) precipitaram-se a correr para ir atrás dele.

(...)


Assim A. Lima termina a sua carta:


Estes são os factos que presenciei, que me fizeram perceber quanto, em Portugal, os verdadeiros profissionais da comunicação social carecem de fazer um debate sério sobre o que lhes anda a acontecer. Não tanto pelo triste espectáculo, mas pelo que, a partir da sua própria excitação, construíram para a opinião pública.

(...) Por favor, seriedade precisa-se!



A forma como estas coisas se passam não pode ser atribuída ao voluntarismo e histerismo de jornalistas jovens e impacientes por fazer e ser notícia. Tem a mão dos chefes que definem políticas e estilos de informação.

E o que lhes está a acontecer, como feras de uma selva de "in"formação, ainda faz acontecer alguma coisinha má a todos nós.

retrato

Desenho 16




Marina - nome, pronome, pormenor.










A Administração do Porto de Aveiro, SA abriu concurso público para atribuição de uma concessão em regime de serviço público com vista à concepção, construção e exploração de uma marina. Ganhou o concurso a empresa “Sociedade de Desenvolvimento e Exploração da Marina da Barra, SA “ que tem o objectivo de rentabilizar um investimento. Assim, o projecto posto à discussão só tem a ver com a especulação imobiliária e a marina não é mais que uma justificação paralela para a ocupação da zona protegida.
Ao longo dos tempos, sucederam-se os alertas sobre as formações das línguas de água e areia e o historial da luta nem sempre vitoriosa do engenho humano contra as dinâmicas naturais em tudo o que respeita à ria no seu conjunto, aos seus braços e especialmente ao controle da foz. A memória do desnivelamento da ponte da Gafanha alimenta inquietações sobre a dinâmica das correntes na ria. A obra projectada implica um estreitamento brutal de um dos braços da ria mais perto do mar. Os estudos a longo prazo sobre as consequências do aquecimento global colocam em risco todo o cordão dunar e é certo que, todos os investimentos feitos (como concessão ou não) em construção civil sobre as dunas e sobre as águas são uma forma de pressão para novas construções para defesa do património construído e do investimento financeiro, na lógica de substituir o natural por margens de betão.
Nenhum estudo de impacte ambiental pode ser justo e razoável se não considerar um futuro alargado e não estabelecer seriamente a realidade futura que almeja o tipo de desenvolvimento em que assentam projectos como o da Marina(?). O estudo que foi apresentado à discussão pública não esconde o que se destrói definitivamente em termos do ecossistema (da água ocupada, lodosa) no que ele representa de extinção para muitas espécies piscícolas que nele crescem e se desenvolvem, antes da idade adulta. Mas não lhe atribui importância, considerando mesmo que a zona estaria degradada (de que ponto de vista? para que fins?) mesmo quando realça estar ela a cumprir uma função primordial no conjunto da ria e da entrada da barra. De resto, o estudo não faz mais do que esconder os impactes negativos da obra projectada sob um rol de pormenores com que os interessados respondem às criticas e dúvidas de todos os que se preocupam mais com o futuro da barra e menos com a promoção da exploração imobiliária combinada com turismo consistente com “desenvolvimento” e “progresso” discutíveis.
Para melhor fazer esquecer as consequências para a ria e as espécies piscícolas, algumas delas de impossível regeneração mesmo a longo prazo, o estudo de impacte esforça-se por alinhar pormenores de futuras intervenções que podem melhorar ou mesmo criar ambientes favoráveis para algumas espécies de aves e para ocupações artesanais marginais ao projecto.
Finalmente, o estudo de impacte ambiental espraia-se em considerações sobre as vantagens de desenvolvimento económico, com a criação de empregos na construção, ou de empregos nos serviços futuros. Não estamos em desacordo com o aumento da densidade populacional ou da oferta turística no concelho de Ílhavo. Mas só podemos achar deprimente que isso se faça sobre pressão na Barra. O número de lugares de estacionamento por habitação e por serviço fornece indicações seguras sobre o que se pretende. E a construção de passagens desniveladas no corpo da Barra não é seguramente motivo para qualquer alivio, se nos lembrarmos dos congestionamentos diários na IP5 nos acessos à cidade de Aveiro. Os fins de semana e os dias de verão são uma outra história triste que garante a indigência do planeamento intermunicipal para as redes viárias e os transportes.
Para a Barra, podemos aprovar infra-estruturas para actividades náuticas, integradas em “cadeia de apoios” ao longo da costa. Não podemos estar de acordo com um projecto que faz sombra à marina e a torna num insignificante pormenor ou nome de pesadelo.

Quantos anos tem o futuro?


[o aveiro; 16/10/2003]


O inimigo rumor

O que mais irrita nesta coisa toda é a falta de clareza da generalidade dos comentqadores políticos que se esgueiram das salas dos actos e factos e acham que os actos e factos errados são consequências inevitáveis das leis, dos modelos de organização e dos sistemas. Como se as pessoas educadas não tivessem liberdade para fazer bem em vez de fazer mal. Como se fosse uma maldição inevitável termos ministérios a embrulhar-se nos assuntos uns dos outros e minudências interfamiliares típicas das paróquias pequenas.
Não é o morgado que obriga o mestre escola a tratar de modo diferente o seu filho mais parvo. De facto, é o feitor (e o mestre escola, com ajuda do padre e do barbeiro) quem toma iniciativas visando agradar ao morgado, ao patrão, etc. Acredito na palavra do morgado quando garante não ter obrigado pessoas a dar um tratamento desigual para o seu filho mais inteligente. Também não acredito na ingenuidade do morgado. Um morgado bem educado ou bem formado interromperia o ciclo da sabujice.

Chamadas de atenção

Chamo a atenção para o artigo de BÁRBARA WONG (n'O Público) Liceu Francês Atribui Bonificações às Notas dos Alunos que esclarece a questão da situação de favor dos estudantes do Liceu Francês de Lisboa. Com a devida vénia, transcrevo parte dele:


Ao PÚBLICO, Meira Soares explica que o que aconteceu até agora é que a tutela aceitava as classificações fornecidas pelo Charles Lepierre - que tem "regras internas" para calcular as notas dos alunos -, em vez das certificadas pela Academia de Toulouse, uma espécie de direcção regional de educação do Ministério da Educação francês, que superintende a escola em Portugal.

Só que, a partir deste ano, depois de aprovado o decreto-lei 26/2003, a CNAES tem poderes para validar, ou não, as notas que são apresentadas pelas escolas internacionais. E o que a comissão pediu a todas as instituições é que mostrem os documentos emitidos pelas entidades competentes do país de origem, de maneira a que os seus alunos possam concorrer de igual para igual com os do sistema português. Afinal, as classificações das provas de ingresso dos estudantes portugueses também são validadas pelo Júri Nacional de Exames.

Como o Liceu Francês tem critérios internos para as classificações, as notas acabam por divergir das emitidas por Toulouse em vários pontos. Segundo documentos a que o PÚBLICO teve acesso, um aluno com oito valores a Matemática, certificado por Toulouse, vê essa nota subir para 12 valores, segundo as tais regras internas de classificação da escola.

Esse certificado, com as notas do final do secundário, é assinado pelo director e autenticado com o selo do serviço cultural da Embaixada de França. Nesse mesmo documento, pode ler-se que as classificações só são válidas para o sistema de ensino português.




Meira Soares, presidente do CNAES, não desmente o essencial deste artigo, na sua
resposta
publicada também n'O Público,

O cheiro nas farsas do poder.

1. Nos últimos dias, a comunicação social prestou um serviço relevante à comunidade. Denunciou alguma situação de favor atribuída aos estudantes de alguma das escolas internacionais de Lisboa. Isto é muito importante. Convém não esquecermos que é possível que a maioria dos estudantes do Liceu Francês de Lisboa seja constituída por portugueses residentes em Portugal, na companhia dos seus pais portugueses. Quem são estes portugueses estrangeiros que acham normal terem protecção especial? São estranhos aos portugueses comuns. Pelo menos.

2. É claro que tudo se tornou demasiado claro com o caso da filha do Ministro dos Negócios Estrangeiros que, além da situação de favor como aluna do Liceu Francês de Lisboa, quis acrescentar a integração no contingente especial para alunos residentes no estrangeiro, considerado no regime especial de acesso ao ensino superior português, criado para proteger certos jovens estrangeiros ou portugueses a estudar no estrangeiro por deslocação prolongada dos pais em serviço. Não realizou os exames nacionais, mas isso não foi suficiente e arranjou uma vaga. (Insisto: Porque é que as classificações internas do Liceu Francês não precisam de ser aferidas pelo sistema de exames português? Para estudantes portugueses que querem ingressar no ensino superior português, porquê?)

3. Demite-se Pedro Lynce, após as públicas denúncias do requerimento do ilegítimo (feito pela estudante dos negócios estrangeiros) e dos despachos ilícitos sobre ele feitos pelos responsáveis do Ministério que tutela o ensino superior. A demissão é rodeada de grandes declarações de dignidade, honra, elevado espírito de serviço, respeito pela lei, etc por parte de todos os que puderam e quiseram falar como altifalantes do governo e dos partidos do governo. Estabelecem-se mesmo debates sobre o valor inviolável da palavra de honra dos homens de bem sacrificados no altar do serviço da pátria, a bem da nação, etc.

4. Havia ainda páginas da farsa por publicar. E, nessas páginas, se desvenda uma teia de ante-projectos e projectos de despachos que aparentam não ter sido tentados senão para resolver o caso. Convites, deslizes, propostas, … Houve muito trabalho técnico esforçado, muito dedicado serviço público para uso privado. Para quê ou para quem?
Finalmente, Martins da Cruz demite-se. E, de novo, um coro canta as abstractas dignidade e honra, as qualidades do serviço do demitido, etc na tentativa vã de se sobrepor a todas as vozes que nos devolvem, pela informação dos factos, a dignidade de homens livres e iguais num estado de dever e de direito. Quem merece ser investigado?

5. Eu dou muito valor à palavra de honra dos homens de bem. Na terra da minha infância, a palavra de honra valia mais que assinatura. Nem se falava na honra, … dava-se a palavra.

6. O encenador das farsas do poder insistiu nos cheiros para criar o ambiente, tão próximo quanto possível da realidade. Chegou a altura das cenas em que cheira mal, muito mal mesmo.


[o aveiro, 9/10/2003]

Os passos reencontrados, de Carlos Marques Queirós

Desenho 12


O José Carlos Soares lembrou-me dois livros que estimo. Um deles, Escrever é um engano de Carlos Saraiva Pinto, já o tenho numa gaveta da escrivaninha. E que bom que era se o Carlos Marques Queirós deixasse abrir uma nova gaveta de luz com Os Passos Reencontrados



os filólogos preferem os primeiros rebentos
das rosas, os meses do outono, os corações
repletos, mas ele vê no trabalho da plaina
as aparas e suspeita do sorriso das rosas.

não sobra integridade. todas as tábuas
irão por sobre a borda. o seu ofício é
de topógrafo, deixar as marcas na sua criação
que a hostilidade desenhou lá fora.


livros de poesia

OS PASSOS REENCONTRADOS - Carlos Marques Queirós, na ASA

ESCREVER FOI UM ENGANO - Carlos Saraiva Pinto, nO Correio dos Navios... e na página do arsélio.


verdadeiramente anti-light, apesar de nos inundarem de luz... e de sombra.

Flores de papel

Desenho 11





Acabei de saber que finalmente saíu em papel o Areia de Same de José Carlos Soares.



Solta um bando
um sono de meninas
branco. Parado

brinco e deixo
que demore
o que da queda

é sombra. Deixo que devore
a descarnada relva filosófica.


Didáctica do Alemão

Na sexta feira passada, fui assistir a uma dissertação sobre a opacidade (lexical?) do alemão, como língua, para os aprendentes (porque falarão assim?). Parece que temos um primeiro mestre em didáctica do Alemão. Parabéns ao novo mestre. Para além do que aprendi, ainda desenhei algumas coisas no caderninho de colo.

Desenho 10 - opaco para não se saber quem é tirolês.





Desenho sem Lynce

Desenho 9 - da minha antiguidade





Algumas cenas da vida íntima do governo podem ser confrangedoras. Não gostei coisa alguma de ver e saber o que se pode passar com os acessos ao ensino superior e, menos que tudo, gostei de tomar conhecimento das manobras internas que se aceitavam ao liceu francês que, em vez de utilizarem notas certificadas pela frança, se utilizavam notas atribuídas segundo regras internas (que não correspondiam às notas certificadas pelas autoridades). O ministro do ensino superior sempre me pareceu um parolo(talvez pela maneira de falar e por algumas tolices verbais (a conjugação do verbo haver não lhe era familiar) que não o ajudavam a ser ministro). Mas parece-me desagradável que uma crise de governo acabe com o sacrifício do único lynce que eu podia ver em liberdade. Dispensar o ministro da lyncenciaturas é um erro. Ganharam os ecologistas que há muito se revoltavam contra a exploração do Lynce no cativeiro do governo. Mas custa-me. Passo a ver o lynce muito menos vezes.

A forma da sala de estar.

1.
A forma da sala de estar tem muita importância. Veja-se o cuidado posto na sala de estar da reunião magna do Partido Popular. Em vez da disposição de uma típica sala de estar, preferiram uma arena central e a forma de circo americano para estar. Como se houvesse um combate de boxe ou uma deambulação de feras amestradas para serem vistas por todos os lados, excluído o estreito túnel de entrada das feras, dos palhaços, dos lutadores.

As demonstrações da arena dão razão a quem diz que PP quer dizer muito Paulo Portas e pouco Partido Popular. De facto, já não é só no investimento da autoridade pessoal sobre o presente. Paulo Portas até propiciou uma reescrita da história do CDS/PP que passou a ser só PP – já não existem os protagonistas dos anos passados. Só restou a referência a Amaro da Costa que, para P. Portas, tem a vantagem de estar morto. Portas apagou todos os restantes nomes da memória do CDS/PP de que recordamos alguns: Freitas do Amaral, Lucas Pires, Adriano Moreira e Manuel Monteiro. Estamos em crer que P. Portas tem medo dos vivos e não acredita na alma eterna de quem quer que seja.

De resto, P. Portas fez as suas declarações de sobrevivência dentro da coligação e profissões de fé na verticalidade das suas convicções de direita: não tem vergonha de ser cristão de direita, não tem vergonha de ser patriota, não tem vergonha de defender o que pensa sobre a imigração, o aborto, etc … não tem vergonha. Como diria a minha mãe, depois de o ver enterrar os vivos, “não tem vergonha nenhuma!”. Talvez seja mais justo dizer que P. Portas não fala das coisas de que tem vergonha.

2.
Foram publicados os “rankings” das escolas. Mais uma vez, comparam-se escolas públicas com escolas privadas e o nosso Ministro insiste que tudo depende dos projectos educativos das escolas, como se dependesse de cada escola pública ter um projecto educativo do mesmo modo que uma privada o pode ter. Eu também penso que tudo depende dos projectos educativos, mas … das famílias, sendo que há famílias que não podem ou não sabem ter projectos educativos e escolares para os seus filhos. As escolas de Aveiro sobem ou descem de um ano para o outro nos “rankings” sem ter havido quaisquer mudanças a não ser uma: os estudantes (e os pais) de um ano não são os mesmo do ano anterior. Não diminuo o papel das escolas que precisam de melhorar, diminuo o significado do “ranking”. Cada escola é uma sala de estar de famílias da cidade.

3.
Lembram-se das trocas de acusações à política geral e à coordenação dos diversos serviços ligados à floresta, à prevenção e ao combate dos incêndios florestais? Houve demissões. Antes, demitiram-se de tomar as medidas mais adequadas e de fazer nomeações na base da competência. Depois, demitem-se as pessoas ainda antes das lições politicas. E aparecem as denúncias, neste momento com carácter de urgência, das já conhecidas corrupções (pequenas e grandes) dos comandantes dos bombeiros locais. Porquê assim e neste momento? Os bombeiros combatem os incêndios. Quem combate estes convenientes fogos de baralhação informativa? Na sala de estar de cada um, a consciência tem de armar-se em extintor.

[o aveiro; 2/10/2003]

2001 - Regresso ao trabalho. Regresso à escola.

O Público de sábado passado (e penso que outros jornais) publicaram as listas seriadas das escolas considerados os resultados deste ano. O Público dedicou a esta questão um caderno destacável.
Ainda não tive tempo de olhar com cuidado para a lista seriada deste ano e para os artigos de análise que constituem o caderno "Estado das escolas portuguesas". O título do caderno é, concerteza, a obra: chamam maximizante à abcissa de um valor mínimo da função informação sobre a coisa das escolas portuguesas. Esquecida a presunção da coisa, não podemos deixar de elogiar a vontade de influenciar as escolas para o bem e para o mal. Também vale a pena ler o artigo Regar a areia de António Barreto da edição de domingo.

Quando o "ranking" foi publicado pela primeira vez, escrevi para o jornal local o texto que se segue. Depois dessa primeira publicação, os resultados considerados para o "ranking" da escola em que trabalho foram piorando e a média desceu cerca de 1 valor. Não creio que a competência e o empenho dos docentes tenha baixado de nível, nem acredito que tenha havido alterações de monta em quaisquer aspectos. O que mudou? A resposta não pode ser dada pelo "ranking", mas é preciso reflectir sobre a escola. Lá isso.... Conseguiremos ter novas ideias em 2003?



Regresso ao trabalho. Regresso à escola.

Diversos jornais publicaram diversas listas seriando as escolas secundárias por alguma ordem ditada pela consideração de resultados no exames do 12º ano deste ou daquele conjunto de disciplinas, extraídos da globalidade dos dados divulgados pelo Ministério da Educação.

A divulgação de resultados, mesmo que em parte, de algum serviço público há-de servir sempre para fazer reflectir os profissionais desse serviço e os membros das comunidades que eles servem. Ainda mais quando os resultados são muito claros quanto a um profundo deslizamento para a negativa de resultados dos exames de alunos considerados aptos pelos professores que os acompanharam nos seus desempenhos em 3 anos da escolaridade secundária e depois de os terem submetido a provas globais em 2 anos.

Do ponto de vista geral, não se ficou a saber o que não se esperava. Os comentadores podem dizer o que diziam antes: há problemas graves no ensino secundário, há dois países, um do litoral e outro do interior, um de ricos e outro de pobres, e mais umas tantas coisas comparativas entre as escolas privadas e as públicas. Também se podem atribuir as culpas ao presente e ao passado das políticas, das legislaturas, das governações. Antigos governantes podem até fingir que o problema é dos actuais governantes, as instituições académicas dos diversos níveis de ensino, as comunidades académicas, científicas e profissionais podem acusar-se umas às outras de conspirações prejudiciais ao ensino, etc.

O que nós sabemos é que temos um problema difícil de resolver, que não estamos a conseguir resolver e que as escolas não vão resolver sozinhas. Mas convém dizer que não estamos pior que antigamente, no tempo em que o ensino secundário era só para alguns poucos. Estamos melhor, mas pouco melhor. Há muito mais gente nesta escola e é preciso mudá-la para obter resultados. Antigamente, só ia estudar quem tinha muito interesse nisso (interesse próprio, da família,…) e, mesmo entre esses, havia um relativo grande insucesso. As competências que as famílias e o estado atribuíam às escolas para garantir o sucesso escolar da elite era extremamente elevado, cedendo muito pouco à individualidade dos filhos estudantes e, antes, exigindo esforço, responsabilidade e disciplina (obediência, sem restrições) aos seus filhos perante a escola e o trabalho escolar.

Houve, entretanto, e a acompanhar a massificação da escola, uma revolução no que respeita ao acesso à informação e aos bens de consumo (também de cultura), aumentando brutalmente a confusão e a ideia da facilidade em ter o saber (e o sucesso também) mesmo sendo ignorante, iletrado, sem saber ler nem escrever. E gerações de pais ainda longe do saber escolar.

As escolas privadas não podem ser comparadas com as públicas, não só porque seleccionam os seus alunos, mas principalmente porque são seleccionados pelas famílias dos seus alunos no que isto significa de mandato pedido e meio estabelecido. A importância atribuída ao saber escolar e aos resultados dos exames resulta para as escolas privadas num enriquecimento do mandato e dos meios, num fortalecimento da hierarquia, num aumento de exigência consentido pelos pais, em disciplina, etc. Os alunos das escolas privadas têm mais horas de matemática, apoiadas nos professores, se for caso disso. Os pais querem, a escola dá, o aluno é obrigado a trabalhar essa hora de vida.

A única coisa espantosa nesta publicitação das listas é a fraqueza das médias das melhores escolas privadas e também de algumas das públicas (em que os utentes são classificados como muito perto do saber escolar, aquilo a que chamam a classe média e média alta). Profundamente preocupantes são os resultados das melhores escolas privadas.

Nas escolas públicas, a maioria das famílias não só quer pouco, como espera pouco e às vezes até impede que a escola faça o pouco que pode e tem de fazer (no cumprimento da lei que nos torna publicamente iguais). Basta ver os papéis assinados pelos pais e encarregados de educação para justificar o injustificável nos filhos, as explicações desculpabilizantes para os actos reprováveis das crianças e jovens, as complicações para conseguir aprovar uma hora mais de trabalho escolar quando tal é possível, … Pobre mandato, mais pobres meios tanto da parte do estado como das famílias..

Numa escola como a José Estêvão, a confiar no Público, entre as 20 melhores escolas públicas do país e a 37ª entre todas as escolas do país, o que é verdade é que temos um pequeno conjunto de alunos provenientes de famílias que dão elevada importância ao saber escolar e exigem dos seus filhos um desempenho elevado que permita o prosseguimento de estudos, como é natural numa cidade em desenvolvimento… E são estes que seguram as médias.

A situação não é boa. Há um elevado número dos nossos alunos que, em provas de exame, não correspondem aos resultados obtidos na frequência. Isso é preocupante. Temos de melhorar as escolas. E para isso temos de melhorar muito o envolvimento dos pais na escola e especialmente o empenhamento dos pais no sentido de incentivar a responsabilização, a disciplina, o esforço dos seus filhos.

Não temos soluções de um dia para o outro para um atraso de 20 anos ou mais. Sabemos que uma parte do problema só pode ser resolvido por um regresso ao trabalho, à disciplina, ao esforço, ao interesse, à responsabilidade. Mas isso vai ter de ser feito com exemplos a seguir. A escola ainda vai ser um exemplo a seguir. Para já, talvez precise de exemplos que possa seguir. Nenhum paleio a pode salvar.


(Out. 2001)

olá   arsélio

ainda às apalpadelas a ver se encontro a porta e chave, vou tentar entrar no teu lado esquerdo.
que pena não escreverem para ti -não sabem o que perdem.
eu detesto escrever em teclados, não me apetece emendar a gramática tonta da pressa nem de retirar as letras atrevidas que se me atravessAM NA ESCRITA.
OLHA, CRESCERAM!
se eu conseguir entender onde carregar para enviar este abraço, ele irá.
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prefiro soul darkness birds on the wire, essas belas tretas...

As árvores, as sementes



No Funchal, a Escola da Levada está rodeada de árvores. O vento soprou poucas vezes e mansinho. Mas mesmo assim, passaram por mim a voar algumas sementes voadoras. Algumas já eu conhecia de outros lugares. Novidade foi o que me parecia ser uma voadora bola de 4 folhas levíssima. Quando abri o embrulho voador, vejo um habitáculo para 3 sementes viajantes. Aqui ficam fotografadas sobre tampos de mesas da Escola da Levada. Os tampos de mesa das escolas são de materiais pobres. São belos os tampos pobres. Não são?

Em vez de ....

Hoje, em vez de colocar por aqui uma fotografia mal tirada por mim, recomendo uma volta por algumas fotografias do amigo murtoseiro Manuel Arcêncio que acontecem em Irraquéchato.

Depois deste gesto que vos leva até boas fotografias, fico mais aliviado e menos inibido para colocar algumas das minhas impressões (sem ter de pedir desculpa).

Desenho 8 - Antigo desenho de uma reunião "come olhos"



Já sentia a falta de um desenho para me descansar. Gosto de desenhar. Em folhinhas pequeninas ou nas toalhas de papel ou em folhas secas de uma árvore que as deixe cair dentro do meu sonho no sono descansado.

Li e recomendo

Ainda há poucos dias, recomendava um artigo de Ana Sá Lopes. Pois hoje aqui estou a recomendar um outro."Estado de Direito, 'Estado das Coisas' ". Aparentemente sobre o mesmo assunto "justiça, pedofilia, abuso sexual de menores,…", recomendaria a leitura do editorial de O Público da autoria de Eduardo Dâmaso, "O TC e a Casa Pia ".
Do mesmo jornal, para além do ranking das escolas (que merece um caderno destacável e a que voltaremos aqui certamente), recomendo a carta aberta de Pacheco Pereira a Lobo Xavier sobre a coerência, a que deu o título de "Missão Impossível" e que aparece no ABRUPTO . O Abrupto já se livrou da publicidade de topo. Como terá feito?

Edifício que educa

Na semana passada, estive a trabalhar com professores de Matemática numa escola do Funchal. A Escola da Levada situa-se numa encosta. Das janelas da escola, podemos ver os quintais verdes de bananeiras, os jardins e a cidade a espreguiçar-se até ao mar. Mas se olharmos para mais perto, vemos os campos de jogos da escola ainda sem alunos. Os campos (e são muitos) estão cercados, bem marcados, com os pisos tratados. Olhando com mais atenção, vemos homens a trabalhar nos campos de jogos da escola. De fato macaco, consertam as madeiras e os ferros das balizas. Já estive várias vezes nessa escola e sempre me deixou feliz a boa conservação dos equipamentos que ia vendo.
Visitei também algumas escolas de Aveiro. Ando feliz por ver que muitas têm melhorado as condições e se têm tornado mais habitáveis para todos os que nelas trabalham (funcionários, professores e estudantes) e acolhedoras para os que as visitam. O caso mais recente de recuperação e melhoria bem visível é o da Escola Mário Sacramento.

Falo de escolas, porque é o mundo em que cresci e trabalho. E falo das obras de recuperação (e manutenção) porque tenho para mim que os cidadãos ou se formam em escolas e cidades que lhes sirvam de casa saudável que aprendam a respeitar e a preservar ou se deformam para o desprezo pelo serviço público de educação, outros serviços, espaços e equipamentos públicos. A falta de condições dos espaços escolares (a começar pelas de higiene) ao longo das últimas décadas (e ainda hoje) é um indicador de pobreza mental. Ninguém aprende a respeitar a cidade e a nação (o seu património natural e construído) com palavras. As palavras dos professores sobre a cidade não anunciam a cidade a partir do deserto. São antes palavras ditas sobre o que a cidade deve ser, em salas degradadas no avesso das palavras proferidas e ouvidas dentro dos muros da cidade.

Entrei para uma escola primária sem condições (nas outras aldeias não existiam ou eram bem piores), passei por liceus e faculdades em que a pobreza de meios e a falta de condições eram mais visíveis que a ciência e a cultura. E trabalhei em várias escolas tão degradadas quanto milagrosas já que, apesar das suas condições, formaram cidadãos exigentes, zeladores e construtores da cidade. Precisamos que os pais e mães dos actuais estudantes não aceitem as escolas tal como as viveram e exijam espaços escolares dignos para os seus filhos.

Pelo meu lado, fico feliz pela manutenção dos campos de jogos da escola da Levada e assim estou a desejar para as escolas de Aveiro campos com bons pisos e com os equipamentos necessários bem cuidados. Quando me entusiasmo com as obras de recuperação de uma escola, quando me maravilho com uma biblioteca escolar luminosa e confortável (como a da Escola Mário Sacramento) estou a dizer que todas as escolas precisam de bibliotecas luminosas e confortáveis. Porque as boas escolas educam. A civilização da escola exige bons edifícios escolares. O edifício e seus equipamentos educam mais que as palavras e também denunciam o valor que os poderes atribuem à educação.

Os cidadãos passam muito tempo nas escolas da cidade. Aprendemos a abraçar a cidade e o mundo, enquanto subimos os andaimes para os trabalhos da casa que a cidade é.

[o aveiro, 25/09/2003]

Política para a imigração deste governo(?) ou do Portas(?)

No artigo "Portas que se fecham e se abrem" congratulava-me pelas divergências entre Pacheco Pereira e Paulo Portas e dava a entender que isso era bom em parte porque significava que a política de Portas podia não ser a da coligação no poder. Ou mesmo que fosse, essa divergência abria uma fenda ainda que envergonhada. Devo vir aqui dizer que no fundmental concordo com o que Ana Sá Lopes escreve no Público do passado dia 20, sob o título "O gémeo diferente". Desse artigo de Ana Sá Lopes, com a devida vénia, transcrevo dois parágrafos:

(...) Quando o secretário de Estado Feliciano Barreiras Duarte classifica como "demagógica uma visão extremista que diz que Portugal não precisa de ter imigrantes porque estão a tirar trabalho aos portugueses", não é movido por qualquer arroubo unipessoal: foi certamente autorizado por Durão Barroso para conter, em termos de imagem governamental, a deriva populista de Paulo Portas, segurando o PSD num papel mais tranquilizador, social-democrata, que rejeita discursos negativos sobre a imigração para agregar o eleitorado moderado.

Temos, assim, a coligação a funcionar em plenitude, dividindo tarefas: Durão Barroso, no sossego político de quem já aprovou a nova lei da imigração que fixa anualmente "o montante" de entradas, pode dedicar-se ao discurso humanista, tolerante, não chocando a "esquerda" do seu partido, o PSD. Paulo Portas, com todo o prazer, ocupa-se dos extremos da direita, cujo eleitorado corre o risco de vir a ser seduzido pela Nova Democracia de Manuel Monteiro.

Madeira - Árvores do Fanal 2




Fotografia de J. Luis Freitas

Madeira - Árvores do Fanal 1




Fotografia de J. Luis Freitas



Da caminhada da Ribeira Funda ao Fanal, fixo árvores solitárias que olham as nuvens do alto das escarpas. Não sei porquê, lembram-me Rilke e as elegias de Duino.

Na encosta do Pico Ana Ferreira - Porto Santo

Do Funchal guardo principalmente o colo imenso da Phytalacca dioica (conhecida pela Bela Sombra) mesmo ali na esquina do jardim que dá para o hotel em que me guardo, quando vou trabalhar à Madeira. Hei-de mostrar aqui esse colo imenso e também o que vejo quando olho da Escola da Levada (o nome oficial é outro). Mas há também o que não vejo e provavelmente não verei e, desta vez, o meu computador recebeu centenas de fotografias das caminhadas do amigo José Luís, professor de Matemática. De uma caminhada pelo Porto Santo, aqui vos mostro o aspecto de uma encosta do Pico Ana Ferreira.




Fotografia digital de J. Luis Freitas

No aeroporto das pedras rubras

me encontro e a utilizar uma máquina simpática que me dá acesso completo à internet (e graciosamente!). O voo para a Madeira está atrasado, mas eu posso nem dar pela demora na chegada à ilha encantada pela proposta não negociável (e irrecusável:-) de revisão constitucional de AhhhhAhhhhJardim. Vou ler o correio.

Portas que se fecham e se abrem.

No último fim de semana, Paulo Portas fez o seu regresso à politica na qualidade de dirigente do Partido Popular. Com o seu tradicional jeito para feiras, festas e romarias, o PP fez a sua “rentrée” no Pavilhão das Feiras. Em Aveiro, claro.

Nestas alturas, os partidos apresentam as ideias a que querem dar um novo impulso. Como partido da coligação no poder, o PP afirma-se solidário com a politica do governo PSD/PP. Esperamos que a politica do governo de coligação não seja a politica do PP, embora haja quem diga que tem mais peso nas decisões do governo do que o que lhe foi conferido pelos votos dos eleitores. Isso são contas da coligação. Mau seria, de facto, se um partido minoritário de direita fosse dominante num governo feito na base essencial dos votos noutro partido (do centro). As intervenções de Aveiro mostram um P. Popular a avançar com ideias que pretendem influenciar futuras políticas da coligação. Em boa medida, como já tinha feito em anteriores campanhas, P. Portas exagera para obter alguma coisa no que respeita à imigração. As ideias reduzem-se a algum populismo rasteiro: “somos portugueses, temos problemas económicos e muito desemprego, logo temos de fechar as portas aos imigrantes que demandam Portugal”.

Quando Pacheco Pereira vem a terreno combater, publicamente e de forma radical, as ideias de Paulo Portas, ficamos a saber que o que P. Portas defende está longe de ser consensual na coligação do poder. P. Pereira escreve mesmo que P. Portas, com as suas intervenções está a pôr em causa a politica de Administração Interna da coligação. Haja saúde. Brindo a isso, porque será dramático se a nossa politica for fechar as portas aos imigrantes, porquanto somos um pais de emigrantes, muitos deles em países com tantas dificuldades económicas como o nosso e com muitos mais desempregados. O nosso pais já tem grandes constrangimentos relativamente à imigração por via dos tratados europeus e dificilmente suportará novos- O que diz P. Portas só serve para atiçar algumas atitudes e movimentos e ressuscitar valores bolorentos tão queridos de alguma da direita portuguesa. E obviamente serve para cativar e segurar votos xenófobos e associados. A intervenção de politica interna de P. Portas serve para pressionar a coligação e é enunciado auto-proclamado da ideologia mais ou menos isolacionista e trauliteira.

P. Pereira apresenta os seus pontos de vista em tudo contrários aos de P. Portas e acrescenta mesmo, a título de exemplo, que o desemprego dos operários portugueses não se resolve com o emprego dos imigrantes. Exactamente pelas mesmas razões que garantem não valer a pena fechar portas ou expulsar os portugueses da França porque eles estão em empregos que não são tomados pelos desempregados franceses (no que isso pudesse ser significativo).

Também ficamos a saber que o P. Popular quer reforçar a sua frente de combate no campo da ideologia (e da cultura? da arte? da…?) que, a acreditar neles, é mais campo em que dominam as esquerdas. P. Pereira é quem trava essas guerras e fá-lo sozinho.

Gostei de ter escrito um artigo sobre os vários PPs em disputa. Saio para a esquerda do palco e refresco-me na sombra de saber que estão em desacordo.


[o aveiro; 18/09/2003]


Arafat Mártir? Ariel doido?

Vim aqui só para chamar a atenção para o editorial do Público, hoje escrito por Nuno Pacheco. Levanto-me de manhã cedo e leio o jornal. Muitas vezes penso que não resisto a entristecer-me. Umas vezes porque leio opiniões que me parecem completamente ao lado das pessoas que eu conheci e as escrevem. Outras porque as notícias e as opiniões dão-nos a vida tal qual ela está a ser e não está a ser bem. Há povos que vivem a morte em vida.

Para além de outros textos sobre a actual situação, o texto pequeno de Nuno Pacheco, Arafat mártir?, é muito recomendável, do meu ponto de vista (que é sempre o meu ponto de fuga).

Inducassao

"Começar a trabalhar aos 16 anos é demasiadamente tarde para se aprender uma profissão". Estas pérolas cairam da boca de um autarca, licenciado em Direito, durante a primeira sessão do Conselho Municipal de Educação da minha territa.
Percebi, acho eu, que o homem quer que o seu partido altere a legislação, permitindo que as entidades patronais tenham ao seu serviço crianças menores de 15 anos para "aprenderem a trabalhar e a ganhar o gosto pelo trabalho".
No país da Europa cujos cidadãos têm a menor taxa de escolarização da Comunidade, esta frase é simbólica, profética, lapidar.

Desenho 7 - da concentração em reunião chique




11 de Setembro


11 de Setembro é o dia de fantasmas, esqueletos do nosso armário que ocupa todo o espaço desde a actual civilização à barbárie actual.

1. Há dois anos, o ataque terrorista contra Nova Iorque abalou o nosso mundo e não foi senão um assomo do terror que ajudou a espalhar um pouco por todo o mundo. Quantas vítimas inocentes morreram nesse dia? Quantas vítimas depois disso?
O que deu? Guerra total- escreve Pacheco Pereira (Público).

2. Não posso deixar de recordar o dia do golpe de estado no Chile, de há 30 anos. Quantas vítimas? No dia, nos dias seguintes, nos meses seguintes, nos anos seguintes, ? quantas vítimas?
E quantos sonhos quiseram matar? Só que os sonhos não morrem. Para perceber isso, nada melhor do que ler Memorial dos anos felizes de Luís Sepúlveda (Público, também)

Um dia não são dias?

Reparo que o José já entrou por aqui a perguntar se já chegou. Há perguntas mais inteligentes, mas uma pergunta qualquer é melhor que nada. Já podemos ser quatro, a saber: José Carlos Pinto Soares - professor de filosofia, poeta e tudo; Manuel Arcêncio da Silva - professor de latim, murtoseiro e tudo; Delfim Rodrigues - professor de artes, artista plástico e tudo. Desejo do fundo do coração que eles escrevam no lado esquerdo (sobre o qual me deito quando quero esmagar o coração (Carlos de Oliveira?)) se o quiserem fazer. Ou que desenhem, ou que pintem a manta. Eu fico aqui sentado a olhar para o meu computador moribundo e choro.

Hoje não é o dia 11 de Setembro.


A verdadeira mentira
Arsélio Martins

Para os políticos que nos governam quais são os modelos de virtudes, de sociedades, de política, de democracia, de governos? Pelo que eles nos dizem, os modelos que gostam de imitar e seguir são, em primeiro lugar, os dos Estados Unidos da América e do Reino Unido. Não são?

Acontece que, nos últimos tempos, os dirigentes desses governos têm vindo a prestar contas, sendo submetidos a inquéritos sobre as mentiras que serviram de justificação para a invasão e ocupação do Iraque. No Reino Unido, já houve vítimas políticas e até, lamentavelmente, uma vítima mortal. A mentira mata.

O nosso Primeiro Ministro afiançou publicamente ao nosso parlamento e ao nosso povo que tinha visto as provas da existência de armas de destruição maciça no Iraque prontas a ser utilizadas contra a humanidade. Só as pode ter visto pelas mãos de quem não tem sabido mostrá-las aos seus povos e parlamentos. Não mentiu? Pode ser que tenha só sido enganado. Mas não se sente obrigado a comparecer perante o seu parlamento e o seu povo pedindo desculpa?

Em democracia, podemos estar em desacordo total uns com os outros, e tomar decisões contrárias perante os mesmos verdadeiros factos. Mas não podemos criar factos falsos para justificar participações em guerras de invasão e ocupação à margem do direito internacional e contra a Organização das Nações Unidas. Um grave sintoma de doença de uma democracia é o desprezo pela honra e pela verdade. Desde há mais de um mês que desejo ardentemente ver um sinal sério de combate à doença por parte dos órgãos de soberania. E nada! Como eu gostava que, nestas questões, os nossos políticos fossem tão rápidos a seguir os seus modelos como na corrida em apoio das guerras que os seus modelos inventam.

George Bush imaginou e fez guerras contra povos e nações com alguns objectivos tão miseráveis como assassinar ditadores e terroristas e o controle da produção do petróleo. Osama e Sadam são tenebrosas criaturas e, à semelhança de outros, devem ser procurados pela comunidade internacional para serem julgados por crimes contra a humanidade. Inventor de guerras infinitas, Bush tem agora de pedir mais dinheiro, arranjar tropas e quer partilhar os riscos em vidas humanas e os custos da ocupação e reconstrução do Iraque. Procura mesmo convencer as Nações Unidas a participar até militarmente na sua ocupação. Ainda não o conseguiu. Mas já o nosso Ministro da Administração Interna declara que as tropas da nossa Guarda Nacional Republicana podem ir para o Iraque já que vão cumprir objectivos das Nações Unidas. As Nações Unidas não sabem ainda.

Quem me dera viver em paz num país de governantes honrados. Pior do que a vergonha dessa dúvida, é saber que portugueses podem partir para o Iraque e, às ordens de quem?, reprimir manifestações populares contra a ocupação. Em meu nome, não! Não é um chavão vazio: Um povo não é livre quando reprime outros povos. Pensava que nunca mais teria de o repetir.

Com quantas verdadeiras mentiras podemos viver?

[o aveiro, 11/09/2003]

Desenho 6




ola...cheguei??
Por falar em máscaras, aqui deixo uma máscara ou uma má cara.

Desenho 5




Em Aveiro, algumas obras que foram demorando muito mais do que a decência podia suportar estão agora a chegar ao seu termo. Gosto de ver. Para já, apresentou-se a Praça Marquês de Pombal e vai apresentar-se o Teatro Aveirense em breve.

Deixo-vos hoje a capitania inclinada e segura pelos cabelos da nossa veneza antiga. Quando voltar a apresentar-se de pé e ao novo estilo (fachada como máscara veneziana), darei conta da novidade (fotograficamente, claro).

A capitania




Desenho 4 - de uma reunião chique na primavera da esquerda





A madrugada de amanhã leva-me de comboio para Lisboa, onde se realiza uma reunião da esquerda chique (a confiar no que dizem). Nessas reuniões, para não me distrair, ouço e escrevo e desenho. E cheguei a pintar com restos de café. Até que um dia, ao procurar o Miquel do ponto de Miquel (geometria euclideana e não EPC-libidinosa), encontrei o Zoo Imaginário - http://www.miquelaparici.com - de um catalão(?) que faz umas belas "aquaferelas" e ainda mais belas esculturas. Aqui estou eu a presumir que alguém, nem que seja por engano, vai passar pelo lado esquerdo e vai querer visitar o ZI do Miquel Aparici. Eu gosto. Provavelmente não mais aquaférelarei, por vergonha.

Vá lá ver os animais do Zoo Imaginário de Miquel Aparici, se puder.



Desenho 3






Memórias do elefante


Amei-te desmedidamente. O filho que gerámos tem os olhos vesgos, orelhas de elefante e uma tromba potente, sensível e fina de urso formigueiro. Mas é o nosso filho.
E passámos a vida a olhar embebecidos para o nosso filho, fruto do nosso amor. Quando escurecia, o nosso filho abria os olhos e iluminava dois cantos do quarto em que nos escondíamos do mundo. Ceávamos à meia luz que os seus olhos acendiamm cheios de ternura. Quando nos deitávamos, ele fechava os olhos, embalava-nos empurrando o berço com a sua potente tromba e, nas noites de calor, refrescava-nos com o movimento calmo das orelhas. Quando adormecíamos, ele comia os insectos que ousavam incomodar-nos.

Somos felizes. Mais felizes somos porque te amei desmedidamente várias vezes e temos agora um rancho de filhos que olhamos embebecidos, porque têm os olhos vesgos e muito brilhantes, orelhas de elfantes e trombas potentes, sensíveis e finas de ursos formigueiros.
Quando nos mudámos para esta rua, ela era habitada. Pouco depois de nós chegarmos, os vizinhos começaram a ir-se embora. A última a partir foi uma velhota muito pobre de quem nos despedimos com simpatia. Não percebemos porque é que ela nos perguntou se não tínhamos espelhos.

[pretextos, na antiga Rádio Independente de Aveiro]

Desenho 2 - do delírio







A criação da actualidade
Arsélio Martins

Cada um de nós tem uma vida para esquecer e outra para lembrar. Todos os dias tentamos esquecer o que não nos agrada ou não conseguimos resolver. Só nos interessam problemas que tenham solução à vista e façam da nossa vida uma sucessão de vitórias quotidianas ainda que pequenas. Precisamos disso como pão para a boca. Quando acordamos para fracassos diários, procuramos afogar as nossas mágoas num lago de mágoas, primeiro com a esperança que olhem por nós, depois com a tentação de mergulharmos a vida à volta no absimo dos farrapos que somos. O que é humano não me é estranho, mas nada me custa mais do que não saber o que fazer quando os irmãos se embriagam com o fel da vida corrente. Sem poder esquecer, mas incapaz de devolver uma esperança de vida simples, afogo os necessários gestos e as palavras que não sei. Sinto-me doente.

Mais doente me sinto, porque o país inteiro vive a actualidade de conveniência para iludir as complicações (e também a beleza) da vida real. Os jornais e as estações de televisão fazem de pequenos acontecimentos ou de farrapos de vidinhas o sumo de cada dia. Repetem este ou aquele aspecto de coisa nenhuma, mexem e remexem nesta ou naqulea ferida e evitam lancetar outras que bem precisavam de ser drenadas. Ora se colam aos sofrimentos individuais para não falarem das responsabilidades políticas, ora seguem os passos de um juíz ou o contorcionsimo de modelos que se amam a si mesmos e são cabeças de cartaz por terem cabeça com área mas sem volume. Escondem o drama nacional dos incêndios florestais a tratar pelo governo da nação sob uma soma de dramas individuais a pedirem o tratamento da caridade. Criam o tribunal popular de uns costumes para esconder outros crimes e outros costumes. Por vezes, tenho a sensação que a actualidade é uma ficção que se vai criando nos pormenores mais ou menos sórdidos de umas vidinhas para esconder a realidade que, mesmo quando dói, é mesmo a nossa, aquela que vale a pena conhecer e enfrentar, para nos reconhecermos irmãos do bem e do mal. Fugimos de quê? Fugimos de quem? Quem a vida esquece, na morte apodrece.

A respeito do processo de pedofilia (que voltou embrulhado em justa desconfiança!) li os textos mais tristes da minha vida. Um dos textos que li trata todos os intervenientes pelos nomes próprios — polícias, juízes, procuradores, políticos, … — e de tal forma o faz que me senti como que apanhado na teia de uma aranha divina. Há uma teoria da conspiração que liga acontecimentos e os atribui a uma fonte de poder absoluto A prática da conspiração de hoje reside no poder de decidir o que é a actualidade. O que de facto foi o dia de hoje nunca saberei. O que eu imagino que a realidade seja, já há muito deixou de existir e … fico doente por insistir na vida tal como ela é.
Com a dor a dançar em pontas na minha alma, ligo-me à televisão. E adormeço

[o aveiro, 4/09/2003]

Desenho 1

Vou também tentar recuperar alguns desenhos de reuniões antigas que foram enviados a amigos e inimigos e dos quais não guardei mais do que imagens e sombras. Por exemplo:




Pedras

Tento mostrar pedras de aveiro. A qualidade é pobre para que o tempo não se vire contra elas. Gosto de olhar a fachada do museu pela noite dentro. Do mesmo modo, algumas árvores ganham vida diferente à luz da noite. Foi o que aconteceu à árvore do museu que ficará sempre aqui ao nosso lado.




Um sinal do presente.
Arsélio Martins

Os dias da última semana não se limitam a passar. Carregam sinais de miséria e de terror. Cada dia cai como um murro na boca da alma. Chegam-me do Iraque, da Índia ou da Rússia os dias carregados de terror. Não deixo de me vergar às dores de cada dia. Nenhum dia é longínquo passado, nenhum lugar é longe daqui, nenhuma vítima me é estranha. Acontece tudo de mal agora e são meus vizinhos os que > sofrem.

Mas hoje decidi que não vou por aí. Nem vou desatar gargalhadas de tristeza por conta dos figurões nacionais a quem o ridículo não mata. Eles não estão quietos nem calados, mas eu estou por fora cá por dentro.

Decidi ser feliz e olhar para outros que nem aparecem nos jornais, porque são normais e competentes nos seus afazeres e me dão os sinais que me dizem que, apesar da desgraça das gralhas do poder, o mundo vai em frente.

Estamos numa casa de aldeia do nosso distrito. Na sala ao lado, trabalham operários da construção de uma pequena empresa que constrói e repara casas. Eles arranjam tectos, pintam paredes, limpam destroços. Durante o dia e também pela noite dentro quando o trabalho aperta, um ou dois, raramente três, cumprem planos de trabalho, metodicamente. Quando não há barulho das máquinas, ouvimos a música que ouvem sem interrupção. Não raras vezes, ouvimo-los cantar como outras vozes as canções que se ouvem no rádio, inglesas na sua maioria. Com satisfação, os ouvimos. Por vezes, o mais jovem aplicador de placas recebe visitas. Reparo que não interrompe o seu trabalho, antes requer a ajuda dos amigos visitantes enquanto conversam, no que me é dado ver.

Mas não foi o mais jovem quem me aguçou a curiosidade. Ouço, sem querer ouvir, a conversa entre dois dos mais velhos trabalhadores da reparação. Algumas palavras chamam-me a atenção, parecem-me palavras típicas do quotidiano dos informáticos — algumas são aquelas abreviaturas que toda a gente diz sem saber muito bem o que é: jpeg, mpeg, bit, megabytes, ram, … — mas também ouvi conselhos sobre os cuidados a ter com os discos, desfragmentações, internet, música e filmes no computador.

Entre trabalhadores da construção de há cinco, dez anos, quem imaginaria qualquer conversa de âmbito tecnológico exterior à profissão, superior ao necessário para o exercício da profissão, …para o lazer, para a cultura geral? De uma pequena empresa numa aldeia?

Para mim, cada um destes pequenos sinais é um presente. Podem não querer dizer coisa alguma. São só sinais sobre o presente do futuro.


[o aveiro, 28/8/2003]
Há mais de um ano, em Julho de 2002, escrevi para o jornal um texto sobre os processos no pcp e a forma como vi a reclamação dos renovadores ao tribunal constitucional. A memória prega-nos partidas e, sei porquê!, lembrei-me do tempo em redor desse texto. Decidi transcrevê-lo para aqui. Esta publicação não tem qualquer interesse para quem não interessa. Há dias assim.


No fojo do lobo, todos somos lobos.
Arsélio Martins


A paisagem é quase inóspita. Algumas poucas árvores bem altas chamam a atenção no descampado. Aproximamo-nos e podemos ver uma construção: vê-se que ali foram arrumadas algumas das pedras que Deus espalhou a esmo, durante a distracção de uns momentos em que brincou a atirar pedrinhas contra o mundo acabado de criar.

Homens muralharam um acidentado terreno e lá dentro não se encontra mais mão de homem que num cavado feito em rocha meio enterrada. Num dos extremos há ainda uma pequena elevação natural feita de pedras maiores que devem ter ficado juntas acidentalmente quando escorregaram das mãos de um Deus já cansado de brincar.

Os homens carregaram a cabra doente e degolaram-na, deixando o sangue cair no cavado da pedra do sacrifício. Logo a seguir, saíram para bem longe dali, num jogo de medrosas escondidas. Talvez um mais decidido (ou escolhido pelos outros) tenha ficado escondido entre as pedras da pequena elevação.

O lobo que fareja, aproxima-se da cabra sem reparar na baixa muralha que em volta dela se ergue. Repara, tarde demais, que toda a muralha ganhou vida. Os lobisomens voltaram e, tão raivosos quanto medrosos, mostram varapaus afiados e pedras. Acossado, o lobo procura uma saída. Mas, para onde quer que vá, recebe uma chuvada de pedras e paus afiados. Esconde-se num dos lados da elevação, protegido da muralha assassina mais próxima e o mais longe possível do resto da muralha. Perdeu o apetite. Descansa por momentos, lambendo algumas das feridas feitas pelas pedras e pelos paus quando tentava escapar por cima da muralha. De repente, recebe uma pedrada e uma picadela violenta proveniente da elevação. Alguém procura expulsá-lo daquele frágil refúgio ali no descampado.
Agora não quer saltar a muralha, mas também não pode ficar ali. Experimenta então atacar o lobisomem que se escondia na pequena elevação. Em vão. Uiva contra a lua, mas depois que se perdeu por uma oportunidade de refeição, nenhuma alcateia há que lhe dê força e companhia. Uiva mesmo assim, contra todas as regras (já que denuncia o espírito do lugar), como se esperasse apaziguar ou amedrontar a muralha de lobisomens em seu redor.
Corre para o centro do círculo muralhado. Uiva de dor, até parecer que nem se importa de ser domesticado por regras de qualquer família lobisumana que o aceite.

Uiva ainda na esperança de ser ouvido pelo Tribunal Constitucional.

[o aveiro, julho de 2002]

as duas pastas

Trago sempre duas pastas dentífricas dentro da pasta onde guardo também alguma roupa interior e lenços de assoar. Nunca me foram úteis a...